sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

METÁSTASES


Há temas mais duros e difíceis do que outros. Há mesmo temas que não sabemos sequer como começar a abordar; ou como reagir se outros os abordam, sobretudo quando os abordam de forma simultaneamente crua e inteligente. Mas há também um preço a pagar pelo silêncio, pelo arrumar de problemas onde (esperemos) não nos assombrem. O conjunto de ilustrações mudas que compõem o livro “cancer” de Tilda Markström (Mmmnnnrrrg) são uma resposta possível a este tipo de inquietações, um conjunto de notáveis desenhos à volta do (de um) cancro, da sua evolução e, sem rodeios, da morte que dele resultou, já que nem sempre a Arte resgata. 

Mas “cancer” é também uma reflexão sobre a perda e de como a dor pode formar metástases, tanto como o tumor em si. A qualidade evocativa e sintética das ilustrações conta uma história clara e inexorável sem necessidade de palavras. Mas, para além de alguns pormenores do traço, são as iniciais a denunciar o autor. De facto, Tiago Manuel lança aqui mais um dos seus heterónimos, uma pintora sueca com um estilo mais simples e mais direto na sua simbologia do que a maioria dos heterónimos anteriores. Uma autora capaz de fazer passar imagens líricas, seguidas de violência, seguidas de dor, seguidas de várias formas de ausência, sendo as piores as que se adivinham sem se ver. Desde o diagnóstico, aos tratamentos e suas sequelas, à morte adivinhada por um cobertor vazio, seguimos um percurso de desagregação quase desejando não o fazer, mas não evitando virar as páginas. Para ir atrás da aranha/caranguejo que representa a doença, a teia que a espalha, as cicatrizes de mastectomia, as próteses, as metástases vermelhas, implacáveis, conquistando todo o corpo. Lançar este livro numa época natalícia pode parecer estranho, mas é exatamente o que a obra pede. Chocar, não no sentido de chocante, mas no sentido de abordar (atropelar?) o leitor de frente.

Em “cancer” há pormenores reveladores quanto ao modo íntimo com que Tiago Manuel aqui se expõe. A obra, diz a ficha técnica, estava pronta há treze anos. “Tilda Markström” faleceu em 2012, de acordo com a biografia apresentada; é duvidoso que a voltaremos a apreciar. As cartas (bilingues, português e inglês) que procuram contextualizar a perda de uma companheira no final do livro (de modo um pouco supérfluo, até) soam a um ambiente familiar do sul da Europa, embora nem toda a vida familiar na Suécia seja certamente como a retratou Bergman. E o vulto fantasmagórico que ampara a paciente na parte final é claramente masculino. Pouco importa. Com os desenhos que compõem “cancer” Tilda Markström ajudou Tiago Manuel a por em imagens algo que se percebe muito doloroso. Criando uma sublimação brilhante que, e isto é o que mais importa, transcende as circunstâncias concretas da sua génese, podendo (devendo) ser apreciado por todos os que algumas vez sofreram perdas. Por todos, portanto. Desse ponto de vista este heterónimo cumpriu plenamente o seu papel. Que descanse agora em paz.


cancer. Texto e desenhos de Tilda Markström (Tiago Manuel). Mmmnnnrrrg. 102 pp., 20 Euros.

CANÇÕES


Talvez o sinal mais intenso de uma (certa) maioridade na banda desenhada portuguesa seja, não tanto o considerável volume editorial, mas o consolidar de identidades fortes e coerentes nas editoras/editores mais interessantes. Algo que, e este é o principal mérito, torna as suas visões complementares, potencialmente abrindo o mercado a diferentes tipos de leitores, no sentido em que não é muito difícil perceber porque motivo uma obra foi editada pela Kingpin Books (Mário Freitas), e não pela GFloy (José de Freitas). Ou distinguir os interesses da Polvo (Rui Brito) dos da Mmmnnnrrrg/Chili Com Carne (Marcos Farrajota).

No caso da Kingpin Books há um fio condutor de um certo onirismo fantástico que perpassa as obras editadas a diferentes níveis, mesmo quando estas ancoram no real. Nem sempre resulta em pleno, mas o trabalho editorial tem sido digno de registo, como no mediático “O Elixir da Eterna Juventude”. Com argumento de Fernando Dórdio e desenhos de Osvaldo Medina este é, de facto, um livro que orbita (e fagocita) canções de Sérgio Godinho, com as letras dessas canções (ou suas referências) a comporem a maior parte do argumento. De resto o protagonista é uma versão do próprio Sérgio Godinho, surgindo, para além de personagens tiradas da sua obra, o Carteiro de António Mafra, Jeremias o Fora-da-Lei (Jorge Palma) e Zeca Afonso, avisando (agora e sempre) contra os Vampiros. A meta-narrativa assume-se em pleno quando a personagem “Sérgio Godinho” encontra a personagem “Fernando Dórdio”, que lhe orienta a demanda em busca do sentido da obra, rumo à imortalidade (artística). Esta é, pois, uma BD escrita em tom de homenagem, mas cujos mecanismos se ressentem da escolha de letras das canções como principal “cola” narrativa. Cada canção é um mundo, e tentar fazer de um concerto de mundos independentes (embora com referências comuns) uma história forte e una no estilo de Dórdio (“Agentes do C.A.O.S”; “Inspetor Franco: Caos e Ordem”) nunca seria tarefa fácil. Por outro lado, talvez um ensaio final/memória descritiva tivesse sido útil para situar leitores não tão familiares com o universo. 

Do ponto de vista gráfico Osvaldo Medina tem-se revelado um talentoso executante, pela fluidez do traço, o modo como compreende a linguagem e o marcar de ritmos narrativos (“A fórmula de felicidade”, “Kong, the King”), embora com menor fulgor no realismo “puro”. Curiosamente Medina admite ter como caraterística a rapidez de execução e, talvez essa capacidade o limite nalgumas obras recentes. Se na biografia de Agostinho Neto é a quantidade de texto que funciona como travão, resultando num livro ilustrado (e não tanto BD), em “O Elixir da Eterna Juventude” notam-se problemas na representação, expressões e movimento. O desenho é aqui mais rígido do que noutras colaborações com Fernando Dórdio, talvez prejudicado pela necessidade de ligação a pessoas reais/reconhecíveis. E a cor, oscilando entre uma neutralidade baça e uma agressividade exagerada, também não ajuda.
Em suma, “O Elixir da Eterna Juventude” é uma excelente ideia que merece ser descoberta por fãs de Sérgio Godinho, que se poderão dedicar à arqueologia das letras, e, sobretudo, a tentar “ouvir” as sonoridades das músicas ao longo do livro. Mas é uma BD que se estranha, e da qual se gostaria de ter gostado mais. Como o primeiro gomo da tangerina.


O Elixir da Eterna Juventude. Argumento de Fernando Dórdio, desenhos de Osvaldo Medina (cor de Joel de Souza). Kingpin Books. 90 pp., 13 Euros.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

PONTE


A essência, resumida, do Festival de Banda Desenhada da Amadora é que vale sempre a pena visitar pela qualidade expositiva e dilúvio de lançamentos que representa. Há, no entanto, fragilidades organizativas e critérios que se têm tornado monocromáticos, evidentes nos prémios concedidos pelo Festival, de resto irrelevantes fora do universo estrito da BD. Dito isto, “Deserto/Nuvem” de Francisco Sousa Lobo (Chili Com Carne) é um livro excelente que merece ampla divulgação, a juntar aos prémios de melhor álbum português, e (mais questionável) melhor argumento.

A obra é, na verdade, composta por dois livros, unidos umbilicalmente pelos fins, numa encadernação magnífica, que sublinha o trabalho de autor e editor. O ponto de partida comum é a vida dos monges no Convento de Santa Maria Scala Coeli, mais conhecido como Convento da Cartuxa, em Évora (no concreto); e as escolhas radicais de clausura, contemplação, afastamento do mundo e silêncio, preconizadas pela Ordem fundada por São Bruno de Colónia em 1084, e de como se relacionam com outros modos de vivenciar o catolicismo (enquanto conceitos).
Em ambos os livros se entranham o desenho e planificação ascéticos de Sousa Lobo, definidos por espaços vazios e marcados por uma única cor a jogar com o preto e branco. “Deserto” (com o subtítulo, Francisco Sousa Lobo à volta da Cartuxa) tem a cor da terra seca do Alentejo, e nele o autor revela um pouco da história familiar que culmina na sua viagem de uma semana, para conhecer o Convento e os seus habitantes por dentro, e fazer uma banda desenhada. Com o azul como cor de acento, “Nuvem” (Francisco Sousa Lobo sobre a Cartuxa de Évora) consiste numa série de cartas gráficas do autor aos monges cartuxos, nas quais reflete sobre diferentes aspetos que cruzam visões da religião (católica) e da arte, misturados com o seu percurso e referências pessoais. Cartas que, dado o isolamento dos seus destinatários anónimos, nunca teriam resposta. Uma obra mais “interna” outra mais “externa”; uma jogando com princípios (que talvez nunca se concretizem), a outra apreciando realidades que talvez desiludam (por nunca espelharem a ideia que se tem dos princípios). Não se trata aqui só de pensar a contemplação enquanto arte, mas questionar se não pode também ser (outra) máscara, se fica algo por dizer no silêncio que valha a pena ser dito. Até porque, ao “falar” enquanto autor Sousa Lobo quebra o ideal que admira, mas ao qual não consegue aderir. E, como em outros trabalhos seus, tocam-se as fronteiras entre religião organizada e misticismo, incluindo a instabilidade mental associada a ambos. E não menos à Arte, porventura.


 No caminho que levou a “Deserto/Nuvem”, que se pressente longo e hesitante (a vários níveis), Sousa Lobo tenta construir pontes frágeis entre estes vários aspetos, como o harmónio de cartão que une os livros. E, sobretudo, procura acreditar nelas. Para além do fascínio com a vida e opções dos cartuxos, e os paralelos que o autor estabelece com a sua arte, este é sobretudo um catálogo de dúvidas sem resposta. Como se duas obras semifalhadas ou incompletas se resgatassem e engrandecessem mutuamente pela união enquanto gémeas siamesas invertidas; o onirismo poético de uma elevando-se na realidade de um Alentejo moribundo e sem rumo da outra; a qual, por sua vez, ancora a anterior. Na sua construção inclassificável este é um excecional trabalho de Francisco Sousa Lobo, com elogios extensíveis à Chili Com Carne. Seria uma pena se (como os trabalhos de autores como António Jorge Gonçalves, Tiago Manuel ou Diniz Conefrey) não passasse bem para lá do universo da banda desenhada e dos seus rituais.


Deserto/Nuvem. Argumento e desenhos de Francisco Sousa Lobo. Chili Com Carne. 64 + 124 pp., 18 Euros.

BIENAL


Quando alguém, geralmente bem-intencionado, usa a expressão “descentralizar”, a interpretação comum é que quer dizer “fazer umas coisas no Porto”. O que nada tem de mal, como é óbvio. Mas talvez tenha outro mérito montar do nada algo como uma Bienal de Ilustração em Guimarães (BIG, 2017). Para além do evento em si, é uma prova que há ainda gente que faz, sem lamentos, numa cidade/região que tem crescido (também) com a formação nesta área. E destaca-se pela qualidade que, desde o catálogo à escolha de autores, só não surpreende porque não se esperaria outra coisa do seu mentor: o pintor, ilustrador e autor de BD Tiago Manuel. Que até é de Viana do Castelo.

Até 31 de Dezembro, em vários espaços da cidade descobrem-se trabalhos de autores consagrados e menos, realizados em diferentes contextos, num esforço genuíno de revelar o presente sem esquecer o passado. O qual muitas vezes se recorda em estilo, como sucede com o elegante trabalho de Luís Filipe de Abreu, homenageado com o Prémio de Carreira, e que se reconhece instantaneamente de livros escolares, selos ou notas. Mas, com muito poucas exceções, todos os trabalhos expostos são dignos de registo, e marcam diferentes opções estilísticas na ilustração nacional, desde alguma familiaridade, a descobertas ousadas e surpreendentes; do figurativo e onírico, ao político. Há, no entanto, uma certa tendência para privilegiar autores que compartilham um regime de cumplicidades estéticas e filosóficas com as diversas pessoas envolvidas na organização. Algo que até ajuda na criação de uma certa unidade, e é natural num evento de estreia; mas que talvez possa ser trabalhado em edições futuras.
O fundamental é isto: tal como, por exemplo, o Festival de BD de Beja, a primeira edição da Bienal de Ilustração de Guimarães podia ter sido noutro sítio qualquer (incluindo, naturalmente, Lisboa). E mereceria os mesmos elogios.

PIRITE


Aquando da publicação de “Miracleman”, com o material escrito para a personagem por Alan Moore nos anos 1980 referiu-se que, de relevante, faltavam as histórias de Neil Gaiman. E, prosseguindo o seu excelente trabalho, a G. Floy Studio apresenta agora “Miracleman: A idade do ouro”, que reúne argumentos de Gaiman magnificamente ilustrados, com estilos adaptados a cada história, por Mark Buckingham. Realizadas nos inícios da década de 90, às histórias que compõem este volume deveriam seguir-se os arcos narrativos “Silver Age” e “Dark Ages”; o primeiro ainda iniciado, o segundo esboçado. Para já é o que temos, e vale muito a pena conhecer.

Note-se, desde logo, que não faz sentido apreciar este volume sem ter lido as histórias de Moore, que estabelecem o contexto sobre o qual Gaiman constrói. Há até alguma reverência na abordagem, incluindo uma prosa a espaços rebuscada, que a tradução acentua. Mas, se após uma desconstrução brilhante do universo de super-heróis Moore parecia não saber muito bem o que construir sobre as suas ruínas (fá-lo-ia em “Watchmen”), Gaiman é inteligente nas escolhas. Para além de trabalhar as consequências lógicas de um mundo governado por um super-herói que, no fundo, funciona como Deus; o que Gaiman faz de notável é balizar as suas personagens para além do contexto fantástico em que se movimentam. “A idade do ouro” não é bem sobre Miracleman, mas sobre a sua influência em alguns dos seus súbditos “normais”. De que modo reagiria a sociedade à presença de um Deus “real”, interventivo e omnipresente, e dos seus filhos mais do que humanos? Que peregrinações e pedidos lhe fariam (e como responderia ele)? O que aconteceria a profissões geradas por conflito e guerra num mundo de harmonia? E a paz oferecida por Miracleman seria suportável para todos, ou haveria nostálgicos pelos “bons velhos tempos”? Embora se notem hesitações no criar de um todo a partir das várias histórias independentes (o juntar de todas as personagens na última história é revelador disso mesmo), se isto parece uma antecipação a alguns momentos de “Sandman”, a série marcante de Gaiman, é muito natural; histórias de pessoas normais postas perante circunstâncias extraordinárias (por vezes sem as compreender) são onde o autor mais brilha.

Claro que nem sempre a fórmula resulta em pleno. Adaptando um conto do próprio Gaiman “Como falar com raparigas em festas” (Bertrand Editora) conta com o desenho dos notáveis autores brasileiros Gabriel Bá e Fábio Moon (“Daytripper”). As espectativas eram elevadas, e talvez por isso se sinta alguma frustração pela ligeireza do projeto. O desenho é dinâmico e a ideia excelente, mais uma vez baseada numa realidade banal. Um jovem adolescente (no qual se reflete o próprio Gaiman) sente dificuldades em falar com as deslumbrantes raparigas presentes numa festa, porque parecem ser de outro planeta. E se fossem mesmo? Ou encarnações de lendas, de formas poéticas, de mitos? Mas a BD em si nunca funciona tão bem como a ideia, sobretudo porque não se decide sobre qual a lógica a apresentar aos leitores, quanto é suposto que saibam, quanto é suposto ser revelado. Na verdade, como em “Miracleman”, talvez tivesse sido interessante incluir um posfácio, ou notas de leitura.

Em resumo: se em “Miracleman” Gaiman ainda não era o grande argumentista de “Sandman”, em “Como falar com raparigas em festas” já não é. Mas o que escreve vale, em ambos os casos, muito mais do que a maioria, e os desenhos dos seus colaboradores nestes projetos são excelentes. Sem ser bem ouro, brilha, provoca, e encanta na mesma.

Miracleman: A idade do ouro. Argumento de Neil Gaiman, desenhos de Mark Buckingham (cores de D’Israeli). G. Floy Studio. 192 pp., 16 €.
Como falar com raparigas em festas. Argumento de Neil Gaiman, desenhos de Fábio Moon e Gabriel Bá. Bertrand Editora. 64 pp., 14,40 €.

AUTORES


Já aqui se referiu que a Arte de Autor tem assumido a linha editorial que vinha da Meribérica e ASA, de certo modo interrompida (fora exceções pontuais) aquando da entrada desta última no grupo Leya. Note-se que o trabalho editorial é muito bom, e há apostas contemporâneas interessantes (“Eu, Assasino”, “O azul é uma cor quente”). Mas a ligação é clara quando, por exemplo, não se podendo editar “Blake & Mortimer” (um sucesso de vendas cujos direitos não seriam fáceis de adquirir), se editam paródias menores dessa série (“SOS Meteorologia”, de Veys e Barral), ou uma biografia do seu criador, Edgar Pierre Jacobs, com o mesmo tipo de registo gráfico. No entanto, e apesar de tom ainda assim reverencial que a obra adota, “A Marca Jacobs”, de Rodolphe e Alloing é um trabalho que vale a pena conhecer, sendo sobretudo interessante o percurso histórico e os acasos e rivalidades que levaram à construção do chamado estilo “linha-clara” (com Hergé como importante “personagem secundária”, neste caso).
Por outro lado, e para além de “Corto Maltese”, a editora tem apostado em criadores italianos, republicando a série “Druuna” de Paolo Eleuteri Serpieri (n. 1944), incluindo os dois primeiros episódios (“Morbus Gravis” e “Druuna”, aqui designado “Delta”) num único tomo. Uma história de ficção-cientifica num mundo em dissolução, e numa era (1986-87) em que os “mutantes” gerados por exposição a radioatividade substituíam os “zombies” enquanto “leitmotiv” desestabilizador, “Druuna” pode ser lida como glosando os perigos e a opressão de um mundo tecnológico que perdeu a alma. Ou enquanto desculpa para um registo de erotismo “soft-core” com variantes S&M às quais a protagonista é submetida, por necessidades narrativas, e de modo algum por facilidade ou voyeurismo... Ou, sem ironia (até porque a edição é “para adultos”), como ambas as coisas. De facto, o desenho de Serpieri é fabuloso dentro do género realista, a história interessante e o universo convincente (sobretudo nas partes mais esquálidas). Apesar de tudo, “Druuna” mantém qualidades e merece ser (re)apreciada hoje, sobretudo por quem não a conhecer.



Um outro autor da mesma geração em que a editora aposta é Milo Manara (n. 1945), lançando o mais recente (a excelente primeira parte de “Caravaggio”) e um dos mais antigos, “O Rei Macaco” (1977), uma colaboração com o argumentista Silverio Pisu (1937-2004). É certo que é inevitável ligar “Druuna” às “mulheres de Manara”, considerando, não só o traço de ambos os autores, mas o modo estereotipado com que retratam figuras femininas, e ao facto de Manara ter a mesma tendência de Serpieri para descair num erotismo avulso (como muitos pintores “clássicos” que raramente são criticados por isso, poder-se-ia argumentar). Mas o preto e branco de “O Rei Macaco” está muito distante, por exemplo, de “O Clic”. O argumento de Pisu recria a antiga lenda chinesa do mesmo nome, seguindo os principais momentos do protagonista homónimo de forma bastante fiel, da cosmologia à evolução do herói (de rebelde, a imortal, a burocrata, a libertador, a prisioneiro). Injetando aqui e ali modernidade nas lições sobre crescimento, poder e orgulho que estão na base da narrativa. Mas esta é uma história imaginada na Itália dos anos 1970, e alguns elementos não budistas ou taoistas refletem também um momento sociopolítico mais ou menos revolucionário (se bem que não cego, nem dogmático), ao qual a história (também) de adapta.

Na verdade, se há crítica a fazer às excelentes edições de “O Rei Macaco” e “Druuna” é que se perdeu a oportunidade para uma contextualização apropriada, que vincasse o seu lugar histórico. Mesmo que os livros “valham por si mesmos” e apenas se tenha pensado num público que já os conhece (o que é legítimo, mas redutor), já não são exatamente os que foram lidos há 30-40 anos. O mundo mudou, e poucos livros ficam na mesma.

O Rei Macaco. Argumento de Silverio Pisu, desenhos de Milo Manara. Arte de Autor. 90 pp. 20 Euros.
Druuna (Morbus Gravis & Delta). Argumento e desenhos de Paolo Eleuteri Serpieri. Arte de Autor. 150 pp. 21 Euros.

CAMINHAR


O interesse mais generalizado pela banda desenhada japonesa (“mangá”) no ocidente relacionou-se, numa primeira instância, com material que servia de base a desenhos animados. De tal modo que muitos olharam inicialmente para o “mangá” (com as suas particularidades narrativas e gráficas, ritmos alucinantes e desenho esquemático tipificado, sobretudo nas figuras humanas) como algo menor, porque não há nada mais atreito a estigmatizar do que estigmatizados. Não foi só um autor a mudar essa perceção, mas não há dúvida que a carreira de Jiro Taniguchi (1947-2017), talvez o mais “ocidental” dos “mangaká”, contribuiu para isso, como atenta, entre muitos outros reconhecimentos, ter sido nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras em França em 2011. Em Portugal, e para além de outros livros, basta sinalizar que o recente lançamento de “O homem que passeia” pela Devir é já a segunda versão desta obra, desta feita editada no sentido de leitura original (do “fim” para o “princípio” do livro, e da direita para a esquerda na página), embora a diferença a esse nível seja mínima; se é que existe, a não ser que se leia em japonês (por algum motivo se fala em “tradução”). Seja como for, esta é uma obra importante que quem não conhece deve conhecer, e os “poemas gráficos” de Taniguchi são mesmo muito recomendáveis para leitores atentos que dizem não gostar de BD.

Em “O homem que passeia” há dois tipos de relatos curtos (nunca são bem “histórias”), a maioria poder-se-ia designar como “domésticos”, os últimos três centrados em mulheres (agora) ausentes. Em qualquer caso com um protagonista anónimo que (re)descobre recantos familiares ou subúrbios desconhecidos caminhando, encontrando paisagens, locais e gente anónima, fazendo recados concretos, ou vagueando ao acaso. Nestas histórias contemplativas de espírito quase “zen” onde se parece passar muito pouco (e com muito poucas palavras) há dois elementos que chamam a atenção. Primeiro, o detalhe no desenho primoroso a preto e branco (na antítese dos clichés sobre “mangá”), criando um universo que o argumento, a uma primeira vista, não parece pedir, mas que por isso mesmo se torna tão vivo e profundo. Segundo, o facto de um leitor não conseguir deixar de projetar naqueles momentos algo de si mesmo, quanto mais não seja para preencher a história do protagonista que caminha; tentar entender (ou inventar) o que, literal e figurativamente, o move. Se há momentos em que há vontade de entrar sem hesitações no universo, e nos rendermos à serenidade meditativa que emana das páginas, outras há em que a vontade é ficar de fora, imaginar os segredos ou frustrações que o protagonista também deve carregar consigo, e que sublinha caminhando.
Esta última leitura surge mais nas últimas histórias, porquanto mais concretas ao nível de um argumento convencional. Se bem que só a última, o relato do sabor a perda que ficou de uma relação adúltera, entretanto terminada, se aproxima de uma forma mais convencional; contando também com um desenho mais contrastante e menos detalhado, de certo modo a vincar a diferença também do ponto de vista gráfico. Nas restantes voltamos a passear por quotidianos presentes ou perdidos, reais ou (ligeiramente) imaginados, tendo como ponto comum uma presença feminina que serve como pretexto para divagações mentais e temáticas, como um espelho dos percursos aleatórios de protagonistas que parecem buscar experiências novas ou memórias adulteradas, perdidas há muito tempo atrás.

As historias de Jiro Taniguchi não são propriamente “simples”. Quer dizer, são se o leitor assim quiser, e dependendo do que nelas quiser projetar. Sobretudo, convidam a andar; relembram que o caminho pode ser bastante mais interessante que o destino. Espera-se que este caminho editorial da Devir, a prometer novas obras de referência em termos de BD japonesa, seja igualmente bem-sucedido.


O homem que passeia. Argumento e desenhos de Jiro Taniguchi. Devir. 250 pp., 20 Euros.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

CORTO


Nada mais apropriado do que uma ressurreição para uma revisitação, mais a mais quando a editora Arte de Autor assume a “herança” de uma linha que vem da Meribérica/ASA, e que é estranho chamar “clássica”, porque só o é para a nossa tradição de mercado (mesmo assim, já não tanto); e ainda menos designar “franco-belga”, já que a maioria das apostas com impacto até são de autores italianos. Como Manara e Serpieri. Ou Hugo Pratt (1927-1995).

Nota prévia: o meu filho (n. 2000) chama-se Hugo porque “Maltês” não é nome próprio, e “Corto” seria pior ainda... Mas é bom recordar que “A balada do mar salgado” (1967) é um relato de aventuras nos Mares do Sul com o Oceano Pacífico como maior figura, e apenas capas posteriores põem o marinheiro maltês em destaque. Corto foi-se sobrepondo a Caïn e Pandora Grovesnore, aos loucos Rasputine e “Monge”, aos nobres condenados Crânio e Slütter. Ficou Rasputine como contraponto para o futuro, Caïn e Pandora como destinos que poderiam ter sido, mas só no final nasce o Corto Maltese protagonista. O interesse hipnótico deste livro é o entrelaçar de temas e a profundidade das personagens com percursos complexos, nas quais é difícil apontar “bons” e “maus”, dando-se igual peso a ponto de vistas díspares (alemães e ingleses; indígenas e ocidentais). Há ação, viagens, aventura, mitologia, antropologia, geografia, política, geoestratégia, intrigas familiares. Com um fundo que inclui o início da guerra de 1914-18, onde manobras obscuras e fins justificarão meios (sacrificando Slütter); bem como o confronto entre colonialismo e independentismo (promovendo os adaptáveis Tarao e Sbrindolin, sacrificando o mais genuíno Crânio). 

Apesar de leituras do livro mencionarem a influência de Joseph Conrad, Jack London ou Robert Louis Stevenson, a inspiração para esta história terá sido “A Lagoa Azuldo irlandês Henry De Vere Stacpoole (1908), com Caïn e Pandora no lugar de Dicky e Emmeline Lestrange (uma versão em filme lançou Brooke Shields). Só que Caïn cita Rimbaud e Stevenson, e é impossível não ver na personagem “Monge” uma versão do Kurtz de Conrad. Pratt era exímio a provocar com o óbvio e a trabalhar referências menos reconhecidas (daí também a admiração de Umberto Eco).


É certo que nem todas as aventuras de Corto Maltese atingem o mesmo nível. “A balada” e “Fábula de Veneza” estão numa ponta, “Mu” na outra. E onde situar o relato no Alaska e Yukon “Sob o sol da meia noite” (2015), a primeira “ressurreição” levada a cabo pelos espanhóis Juan Díaz Canales, e Rubén Pellejero? Uma história razoável que Pratt podia ter imaginado? Ou um falhanço que tenta um registo mais prattiano do que Pratt? A segunda. E isto porque se Pellejero é até uma escolha lógica, dado o seu estilo ser influenciado por Pratt (ver “Dieter Lumpen”, com Jorge Zentner), a aproximação mimética falha precisamente pela proximidade, em momentos-chave o estilo foge para o registo mais redondo, habitual no autor. Por outro lado, os problemas de erudição à solta sem valor narrativo que Canales já tinha evidenciado por vezes em “Blacksad” são aqui (sem o magnífico desenho de Juanjo Guarnido) muito evidentes. “Sob o sol da meia noite” pisca o olho ao cânone (Rasputine, Pandora, London), mas inclui demasiadas coisas: revoluções e causas perdidas, histórias de amor, loucura, heroísmo, exploração (de nativos inuit, de mulheres). Que fluem de forma forçada porque não há tempo para trabalhar bem nenhuma delas, e não surgem personagens que não pareçam caricaturas, apesar dos nomes históricos, que vão de Virginia Prentiss (a ama negra de Jack London) e Matthew Henson (o explorador negro do Ártico que acompanhou Robert Peary), ao boxeur Frank Slavin, ao explorador e baleeiro George Comer e sua companheira inuit Shoofly (e Pameolik, que “junta” Slütter e Crânio); acabando no homem da indústria do petróleo (e guerra) Joe Boyle, que simboliza o substituir da aventura pelo empreendedorismo. Há cópias tão boas (ou melhores) que os originais. Não é o caso. Felizmente a Arte de Autor teve a feliz ideia de proporcionar ambos.

A balada do mar salgado. Argumento e desenhos de Hugo Pratt. Arte de Autor. 183 pp., 26,95 Euros.
Sob o sol da meia noite. Argumento de Juan Díaz Canales desenhos de Rubén Pellejero. Arte de Autor. 82 pp., 18,65 Euros.







sábado, 2 de setembro de 2017

MULHERES


A maré impressionante de edições de qualidade nos mais variados géneros (com destaque para as coleções “Novelas Gráficas” Levoir/PÚBLICO) tem um efeito secundário muito bem-vindo: a possibilidade de surgirem apostas em obras menos óbvias. É o caso dos dois livros da dupla franco-dinamarquesa baseada em Estrasburgo e constituída pela argumentista Anne-Caroline Pandolfo e pelo desenhador Terkel Risbjerg, editadas pela GFloy. Muito diferentes em tom, estilo e natureza das protagonistas, em ambos se sente um olhar empenhado em torno de questões de género, um olhar do/no feminino.
“O astrágalo” adapta “L’astragale” (1965), romance da escritora francesa Albertine Sarrazin (1937-1967), cuja curta e agitada existência (de abandono, abuso, institucionalização, crime e prisão) deu origem a três obras semiautobiográficas, das quais esta é a mais conhecida. Já o recém-editado “A Leoa” é uma ambiciosa BD biográfica sobre a grande escritora dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962). Em ambas há um claro interesse em mostrar a posição subalterna que as mulheres tiveram (têm) que transcender, e o modo com um universo masculino as tentou (tenta) controlar. É certo que as protagonistas não podiam ser mais diferentes: uma marginal de classe baixa sem grande educação formal, e uma burguesa nobre por casamento, a quem, apesar de tudo, foram dadas oportunidades. Mas a leitura conjunta mostra bem a posição dos autores, entendida do histórico ao contemporâneo: a opressão é a mesma, varia o grau e o modo como é exercida. No caso de “O astrágalo” o simbolismo de ser a fratura de um pequeno osso do pé (que dá o nome ao livro) a deixar Anne à mercê do mundo não deixa de ser sintomático.
Note-se que em ambas as obras o foco é, não bem o controlo, mas as estratégias para dele se libertar. Nomeadamente através da marginalidade, quer literal (“O astrágalo”), quer via a figura tutelar de um pai que não encaixava na sociedade dinamarquesa (e que acabaria por se suicidar), mais tarde através dos grandes espaços africanos e seus habitantes (“A Leoa”). Mas há outro ponto importante a unir estas histórias: os “fracassos” de Anne/Albertine enquanto ladra e de Karen enquanto agricultora em África talvez as tenham conduzido ao sucesso na escrita, embora se sublinhe que Blixen assinou a princípio com o pseudónimo masculino Isak Dinesen, e teve a honra duvidosa de ter tido os seus manuscritos rejeitados por todos os editores dinamarqueses, com o sucesso no seu país natal a ser posterior à sua “descoberta” no mundo anglo-saxónico. E, sobretudo em “A Leoa”, é notório o foco na vontade da protagonista em projetar a incompreensão que lhe era votada no sentido de compreender o Outro.

Para além deste posicionamento temático há ainda a relação texto/imagem. Desse ponto de vista não se pode dizer que o desenho de Terkel Risbjerg seja particularmente virtuoso ou inspirador, sobretudo no tratamento da figura humana. Mas o seu registo, num constante fugir da representação realista, tem uma qualidade efabulatória interessante, que complementa bem a escrita de Anne-Caroline Pandolfo. A qual, por sua vez, tende a ser muito pouco subtil, reforçando em permanência os motes e linhas de ação, como por exemplo no repetir dos simbolismos referenciais que rodeiam a vida de Blixen. É, pois, o desenho a ter o principal papel na criação de nuances, quer utilizando um traço decidido a preto e branco (com grandes manchas de negro) a caraterizar o ambiente que rodeia a protagonista em “O astrágalo”; quer as cores suaves em tom de aguarela a marcar o onírico, a fantasia e os grandes espaços em “A Leoa”. Nas obras desta dupla é de facto evidente uma das caraterísticas mais interessantes da banda desenhada, no sentido em que o todo é mais do que a soma das partes.


O astrágalo. GFloy, 224 pp., 14 Euros.
A Leoa: Um Retrato Gráfico de Karen Blixen. GFloy, 192 pp., 18 Euros.
Argumento de Anne-Caroline Pandolfo, desenhos de Terkel Risbjerg.



sábado, 5 de agosto de 2017

AUTORIA


Numa cultura obcecada com quem é quem e fez o quê quando, as questões de autoria são prementes, sobretudo quando se trata de algo visto como positivo. Em arte esse reconhecimento parece óbvio e necessário, fora exceções como Banksy, e deixando de lado criações coletivas. Pelo menos até nos lembrarmos que muitos trabalhos clássicos (da arquitetura, à poesia e textos místico-religiosos) são coletivos, com uma ligação a nomes (a existir) muitas vezes ténue, feita para nos “proteger” de ter de considerar obras fundadoras como anónimas, órfãs de autor. As histórias entrelaçadas que compõem “Nagual” (Quarto de Jade) jogam com esta ideia.

“Nagual” inspira-se nas pinturas murais de Teotihuacan, a grande cidade-estado multiétnica do México pré-colombiano, que teve grande pujança em meados do primeiro milénio, entrando posteriormente em declínio. Anterior à dominância dos Astecas, que lhe deram o nome pelo qual é conhecida hoje, era considerada por eles como o berço dos deuses, as suas imponentes pirâmides abandonadas uma fonte de mistérios já nessa altura. Utilizando um preto e branco de contraste vibrante e com poucas zonas de sombra (dadas pelo texto), nas seis narrativas que compõem “Nagual” assistimos aos vários passos da criação de um mundo, até desembocar nas criaturas que o tentam interpretar, com lendas e gravuras. Usando uma mescla hipnótica de formas geométricas e representações estilizadas de elementos mitológicos (serpentes emplumadas, jaguares, aves, árvores, coiotes, humanos) diretamente inspiradas na arte pré-colombianas, glosa-se o nascimento de céu, estrelas, montanhas, rios, canções, violências, medos. Que levam a reflexões clássicas, das tentativas de interpretar os mistérios da existência, à fúria quanto às suas limitações e inevitável fim. E com o conceito de nagual enquanto transmutação (física ou psicológica) de ser humano em animal pairando sobre cada ser que se introduz na narrativa. Como muitas vezes sucede em relatos que se querem fundadores, o texto tende a entusiasmar-se num excesso de simbolismo lírico que se pode tornar cansativo, apesar do vigor poético do desenho. Desse ponto de vista as últimas histórias, que introduzem claramente os humanos-intérpretes (“O Umbigo da Terra” e Zacuala”), são particularmente conseguidas; no sentido em que confrontam o concreto com as representações, e fazem melhor uso da ligação entre texto e imagem.

Uma questão não-acessória, e que liga à introdução do texto, é que em lado nenhum de “Nagual” aparece o nome do autor. Sugerindo uma criação coletiva anónima que espelha a realidade atual de Teotihuacan, cujo poder se esvaiu com o próprio (desconhecido) nome original, e cuja mitologia, como o nagual, pode dar origem a transmutações inesperadas (no frontispício do livro surge uma imagem da estilizada “lucha libre” mexicana...). Mas, tal como com os alter-egos de Tiago Manuel, a autoria é óbvia para quem segue o trabalho de Diniz Conefrey, e assumida no site da Quarto de Jade, editora que dinamiza com Maria João Worm. “Nagual” prolonga uma linha de exploração gráfica e conceptual que vem do notável “Livro dos dias” (também sobre o México pré-colombiano) mas também, num certo sentido, do abstrato “Meteorologias” (em que “anónima” era a temática). Mas quem encontrar o livro sem esse contexto (e/ou num futuro distante, quiçá pós-apocalíptico...) pode não ter acesso a esta informação. Encarará “Nagual” como hoje se admiram tapeçarias, cerâmicas, esculturas e pinturas nos mais variados contextos, cujas autorias se foram sumindo no tempo. Terá de construir em volta a sua própria mitologia.


Nagual. Argumento e desenhos de Diniz Conefrey. Quarto de Jade. 136 pp., 21 Euros.