terça-feira, 7 de março de 2017

TEMPESTADES


Surpreender com familiaridade pode parecer um paradoxo, mas tem feito parte da essência do trabalho em banda desenhada de Diniz Conefrey. De Herberto Hélder (“Arquipélagos”/“Os labirintos da água”), ao México pré-colombiano (“O livro dos dias”), à BD abstrata (“Meteorologias”), a busca de formas e ritmos é contínua, criando ambientes hipnóticos compostos de cores, traços, texturas, palavras. O seu mais recente livro “Judea” (Pianola) adapta a novela “Youth”/“Mocidade”, de Joseph Conrad (1898), narrada pelo alter-ego putativo do escritor Charles Marlow, o mesmo de “Lord Jim” ou “Heart of Darkness”. E, se à primeira vista o livro surpreende pela aparente demarcação de um trilho criativo recente, a distância percorrida é curta; com “Judea” o autor ensaia alternativas que a princípio parecem mistas e de compromisso, mas que coalescem de modo inesperado numa nova síntese.

Tal como noutras obras de Conrad (e de Conefrey) “Judea” é um relato iniciático de viagem, apresentado enquanto memória de um Navio (ou de um marinheiro?) que perdeu as graças do mar (ou para quem o mar perdeu a graça). A história-base é falsamente simples: o velho veleiro enferrujado “Judea”, uma rota acidentada de Inglaterra ao Índico, uma carga de carvão no porão. Como se não bastassem os habituais riscos de uma longa aventura marítima (vento, calmaria, o mar revolto), esta viagem em particular parece amaldiçoada desde início, e, num culminar de adversidades, a carga entra em combustão espontânea. Sem que nenhuma estratégia consiga apagar o fogo, apesar de todos os esforços obstinados (quase românticos) para salvar um navio que se tenta transcender, a viagem torna-se um longo arrastar rumo a um fim inexorável, com a tripulação a tentar agarrar-se à vida pairando sobre uma bomba-relógio que a pode surpreender a qualquer momento. Se algumas personagens humanas adquirem voz própria, o principal protagonista é o próprio malogrado navio, cuja essência para os marinheiros oscila entre a única salvaguarda da fúria do mar, e o risco de destruição iminente que trás no seu âmago; com o céu, o oceano, e mesmo a terra firme e outros navios a evitarem conceder um porto seguro. É esta dualidade segurança/morte (e concreto/abstrato) que Diniz Conefrey trabalha, utilizando de modo soberbo o preto e branco, onde o desenho consegue a proeza de evocar cores (o vermelho do fogo, o azul do mar), que só as palavras do argumento têm o direito de expressar.

Considerando a evolução do olhar criativo é iluminador ver como o interesse na BD abstrata, visível no anterior “Meteorologias” (Quarto de Jade), é integrado em “Judea”, numa mescla de convoluções de penhascos, vagas, nuvens e fumo, que chegam a ocupar páginas inteiras com uma ferocidade insuspeita, e um estranho cunho de intemporalidade que toca todos os elementos. As diversas tempestades, sejam naturais (o mar, o vento, a costa), sejam artificiais (o fogo), sejam os humores da tripulação, são integradas numa só, com o contraste entre o traço preciso de personagens e motivos náuticos, e a força telúrica dos elementos mais abstratos a evocar um poder tanto mais violento quanto o texto o parece negar. Se a opção narrativa reconhecível é profundamente enriquecida pela abstração, esta, por sua vez, e usando o pretexto de ser mar/céu/fogo/fumo, poderia parecer oca sem a âncora que as madeiras podres e a angústia dos marinheiros lhe concedem. Desse ponto de vista “Judea” demonstra de que modo uma estrutura narrativa “clássica” pode ser útil enquanto uma espécie de base criativa reconhecível que “fixa” a leitura, permitindo, em simultâneo, a introdução de outro tipo de elementos disruptivos. A familiaridade é uma excelente ferramenta para desarmar espectativas, e permitir a construção de algo novo com o leitor, sem que ele disso se aperceba.

Judea. Argumento e desenhos de Diniz Conefrey (adaptando “Youth”/“Mocidade”  de Joseph Conrad). Pianola Editores. 84 pp., 16 Euros.




domingo, 5 de março de 2017

JUSTIFICAÇÕES


Quando tudo parece correr bem é difícil questionar o estado das coisas. Em contraposição, e considerando o mundo nos últimos anos, não deixa de ser natural que se privilegie hoje a reflexão sobre instituições e ideias que deveriam funcionar muito bem no papel, mas que já não parecem capazes de responder a novos desafios. Ou deveremos mesmo duvidar do papel em que foram inicialmente escritas?

O muito interessante “Democracia: Uma história sobre a coragem de mudar o mundo” (Bertrand) procura contextualizar o estabelecimento do modelo democrático inicial em Atenas, não só em termos das suas limitações, mas do modo como se relaciona com uma visão contemporânea das relações de poder e de quem o exerce, dois mil e quinhentos anos depois.  A aposta editorial está certamente ligada ao sucesso do livro anterior da mesma equipa gráfica, “Logicomix”, sobre a obra científica e filosófica de Bertrand Russell, mas se nesse livro o papel dos argumentistas Apostolos Dioxiadis e Christos Papadimitriou era decisivo, “Democracia” é um projeto pessoal do desenhador grego Alecos Papadatos, concebido com o argumentista Abraham Kawa. A história foca-se nas tribulações de um jovem ateniense, que conta as suas aventuras aos companheiros de armas antes da famosa batalha contra os persas em Maratona, com histórias dentro de histórias em que deuses, lenda e realidade se confundem. Graças a esses mecanismos narrativos percorre-se a história, política e governação da cidade de Atenas, quem exerce o poder, de que modo o exerce, e que outras alternativas se poderiam propor. Mas alternativas para quê, exatamente? De modo a garantir maior representatividade? Dar voz a quem não a tem? Apenas para assegurar pragmaticamente um governo onde as pessoas (as que tinham esse direito em Atenas, sublinhe-se) se sentissem ouvidas, mesmo que na verdade apenas fossem habilmente instrumentalizadas?
A ambição de tentar referir demasiados assuntos (por vezes com pormenores que levam muito tempo a enquadrar), fazem com que o resultado possa ser algo pesado, com um equilíbrio tenso entre História e estória. Ou seja: sente-se alguma dificuldade em criar situações e personagens que “cumpram” as funções expositivas que os autores delinearam sem isso parecer forçado. Mas é louvável o modo como se procuram evitar finais felizes artificiais e estereótipos, embora nem sempre seja possível, mormente do ponto de vista gráfico. Sobretudo é inevitável ler “Democracia” à luz contemporânea, e essa era uma intenção clara dos autores. As manobras políticas descritas ao longo do livro podem girar em torno das alterações para o primeiro modelo dito democrático em Atenas, mas é evidente que a democracia e o carisma heroico de uns podem ser o elitismo e a tirania de outros, e os fins acabam quase sempre por justificar os meios. 

Na verdade, as justificações de deuses e humanos sucedem-se em “Democracia”, mas não deixam de vincar que o poder é, simplesmente, aquilo que sempre foi: poder. Gerido com força, dinheiro, retórica. Nesse sentido é interessante ver os espartanos enquanto força militar ocupante, a arte clássica grega (vasos, estátuas, templos) enquanto veículo de propaganda; e sobretudo o Oráculo de Delfos enquanto Agência de Rating, ou uma qualquer entidade reguladora, tanto mais perigosa quanto é descaradamente manipulável sem o parecer. Também, como sempre, a manipulação tem intenções, e não é certo que as “boas” sejam necessariamente melhores do que as “más”. Embora o livro termine com uma mensagem de confiança, o caminho narrativo trilhado vai um pouco ao arrepio do subtítulo da obra, no sentido em que o mundo não pareceu mudar assim tanto, a vigilância tem de ser permanente, e todos os erros e atropelos podem ser justificados com boa fé, a pior fé de todas. Limitarmo-nos a repetir Churchill e defender que a Democracia é o pior sistema de governo à exceção de todos os outros é, hoje, uma escapatória curta.


Democracia: Uma história sobre a coragem de mudar o mundo. Conceito de Alecos Papadatos, história de Alecos Papadatos e Abraham Kawa, argumento de Abraham Kawa, desenhos de Alecos Papadatos com cores de Annie di Donna. Bertrand Editora. 240 pp., 19 Euros.