Surpreender com
familiaridade pode parecer um paradoxo, mas tem feito parte da essência do
trabalho em banda desenhada de Diniz Conefrey. De Herberto Hélder
(“Arquipélagos”/“Os labirintos da água”), ao México pré-colombiano (“O livro
dos dias”), à BD abstrata (“Meteorologias”), a busca de formas e ritmos é
contínua, criando ambientes hipnóticos compostos de cores, traços, texturas,
palavras. O seu mais recente livro “Judea” (Pianola) adapta a novela “Youth”/“Mocidade”,
de Joseph Conrad (1898), narrada pelo alter-ego putativo do escritor Charles
Marlow, o mesmo de “Lord Jim” ou “Heart of Darkness”. E, se à primeira vista o
livro surpreende pela aparente demarcação de um trilho criativo recente, a
distância percorrida é curta; com “Judea” o autor ensaia alternativas que a
princípio parecem mistas e de compromisso, mas que coalescem de modo inesperado
numa nova síntese.
Tal como noutras obras
de Conrad (e de Conefrey) “Judea” é um relato iniciático de viagem, apresentado
enquanto memória de um Navio (ou de um marinheiro?) que perdeu as graças do mar
(ou para quem o mar perdeu a graça). A história-base é falsamente simples: o
velho veleiro enferrujado “Judea”, uma rota acidentada de Inglaterra ao Índico,
uma carga de carvão no porão. Como se não bastassem os habituais riscos de uma
longa aventura marítima (vento, calmaria, o mar revolto), esta viagem em
particular parece amaldiçoada desde início, e, num culminar de adversidades, a
carga entra em combustão espontânea. Sem que nenhuma estratégia consiga apagar
o fogo, apesar de todos os esforços obstinados (quase românticos) para salvar
um navio que se tenta transcender, a viagem torna-se um longo arrastar rumo a
um fim inexorável, com a tripulação a tentar agarrar-se à vida pairando sobre uma
bomba-relógio que a pode surpreender a qualquer momento. Se algumas personagens
humanas adquirem voz própria, o principal protagonista é o próprio malogrado
navio, cuja essência para os marinheiros oscila entre a única salvaguarda da
fúria do mar, e o risco de destruição iminente que trás no seu âmago; com o
céu, o oceano, e mesmo a terra firme e outros navios a evitarem conceder um
porto seguro. É esta dualidade segurança/morte (e concreto/abstrato) que Diniz
Conefrey trabalha, utilizando de modo soberbo o preto e branco, onde o desenho
consegue a proeza de evocar cores (o vermelho do fogo, o azul do mar), que só
as palavras do argumento têm o direito de expressar.
Considerando a evolução
do olhar criativo é iluminador ver como o interesse na BD abstrata, visível no
anterior “Meteorologias” (Quarto de Jade), é integrado em “Judea”, numa mescla
de convoluções de penhascos, vagas, nuvens e fumo, que chegam a ocupar páginas
inteiras com uma ferocidade insuspeita, e um estranho cunho de intemporalidade
que toca todos os elementos. As diversas tempestades, sejam naturais (o mar, o
vento, a costa), sejam artificiais (o fogo), sejam os humores da tripulação,
são integradas numa só, com o contraste entre o traço preciso de personagens e
motivos náuticos, e a força telúrica dos elementos mais abstratos a evocar um
poder tanto mais violento quanto o texto o parece negar. Se a opção narrativa
reconhecível é profundamente enriquecida pela abstração, esta, por sua vez, e usando
o pretexto de ser mar/céu/fogo/fumo, poderia parecer oca sem a âncora que as
madeiras podres e a angústia dos marinheiros lhe concedem. Desse ponto de vista
“Judea” demonstra de que modo uma estrutura narrativa “clássica” pode ser útil enquanto
uma espécie de base criativa reconhecível que “fixa” a leitura, permitindo, em
simultâneo, a introdução de outro tipo de elementos disruptivos. A
familiaridade é uma excelente ferramenta para desarmar espectativas, e permitir
a construção de algo novo com o leitor, sem que ele disso se aperceba.
Judea. Argumento e desenhos de Diniz Conefrey (adaptando
“Youth”/“Mocidade” de Joseph Conrad).
Pianola Editores. 84 pp., 16 Euros.
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