segunda-feira, 28 de novembro de 2016

UNIÕES



A ideia é simples na sua genialidade: como conciliar diferentes universos ficcionais partindo da premissa que as distintas personagens tivessem sido contemporâneas? Não seria lógico pensar que Dr. Jeckyl/Mr.Hyde de Stevenson, Mina Murray (de “Drácula”), Alan Quartermain (de “As Minas do Rei Salomão”), Capitão Nemo de Jules Verne, o sexualmente camaleónico Orlando de Virginia Woolf, ou o Homem Invisível de H.G. Wells pudessem ter formado um grupo de super-heróis “pré-históricos”, embebidos na geopolítica do seu tempo, e lutando contra o Professor Moriarty e Fu Manchu? Essa é a premissa por detrás de “A Liga dos Cavalheiros Extraordinários”, série escrita por Alan Moore e desenhada por Kevin O’Neil, de que saiu recentemente o terceiro volume, “Século” (Devir).

Após início na DC Comics este volume (2009-2012) é publicado por pequenas editoras (Top Shelf nos EUA, Knockabout no RU), com o controlo total dos autores; e, se a “Liga” já era uma série delirante, a dupla inglesa aproveita a liberdade para construir uma reflexão em torno da evolução da sociedade e da cultura popular, no meio da qual a história apocalíptica em si acaba quase por ser secundária. Desde logo há uma simplificação de personagens, apesar de Moore incluir várias referências mais ou menos obscuras, em “Século” conta sobretudo o triângulo amoroso Mina/Orlando/Alan (Orlando como “joker” sexual na relação a três), com a descendência do Capitão Nemo como elemento perturbador. O “truque” primário da imortalidade dos protagonistas (versão literal da imortalidade literária) faz com que seja possível combater a mesma ameaça em três diferentes tempos de uma Londres “alternativa” (qualquer semelhança com a realidade não é coincidência) que compõem as três partes do livro. Em 1910 ainda sob a sombra de Jack o Estripador, e citando fortemente “A Ópera dos Três Vinténs” de Brecht e Weill (com canções e tudo) e a desigualdade social. Em 1969 com o psicadelismo e a sedação de multidões culminando num “punk” estéril, e incluindo na trama a teoria do assassinato do membro fundador dos Rolling Stones Brian Jones (obviamente que com contornos inesperados). Finalmente, o “presente” (2009) marcado por conflitos constantes e artificiais numa sociedade miserável e domesticada, que, apesar de tudo, poderia ser muito pior, não fora a “Liga de Cavalheiros Extraordinários” (ironicamente liderada por Mina) combater a ameaça velada desde início, e agora materializada, o Anti-Cristo. Nada menos do que Harry Potter. O que vale é que Mary Poppins surge para ajudar na luta final. Sim, “Século” é, no fundo, um assomo febril de referências (a pedir edições anotadas, como outros trabalhos de Moore), com as quais os autores são muito claros a formular opiniões, e em que nada (mas mesmo nada, nada, nada) se adivinha deixado ao acaso, do texto aos pormenores gráficos e caras perdidas na multidão que o desenho anguloso e elegante de O’Neil claramente se diverte a representar. Seguir uma história de desconstrução social marcada pela evolução da cultura popular é interessante, mas a surpresa da integração de citações díspares (das quais 10-90% poderão passar ao lado de um qualquer leitor) é o que transforma “A Liga dos Cavalheiros Extraordinários” numa hipnótica e confusa maravilha.

Não tem sido meu hábito falar de traduções: não só retira ao mérito da edição em si, como a qualidade tem melhorado. No entanto, com várias gerações treinadas no inglês como primeira língua estrangeira, é um pouco estranho que se continuem a cometer erros infantis (“constipation” não é uma vulgar “constipação”, só para citar um), e o texto pareça oscilar em termos de estilo ou emperrar constantemente, mesmo quando se usam vários tradutores e outros tantos revisores (ou por causa disso). É possível que o problema esteja relacionado com uma coisa boa: o volume de obras editadas e os prazos apertados, mas é uma questão (comum à G.Floy e Levoir) que contrasta com a excelente qualidade gráfica.

A Liga dos Cavalheiros Extraordinários, volume III: Século. Argumento de Alan Moore, desenhos de Kevin O’Neil. Devir. 250 pp., 35 Euros.

SELVA


Manuel Caldas é uma figura incontornável em termos de restauro de histórias clássicas de banda desenhada através da sua editora Libri Impressi; e o seu último projeto é um marco na BD portuguesa. “A lei da selva”, história protagonizada por leões em África, foi publicada originalmente na revista “O Mosquito” entre fevereiro e julho de 1948, e revela o primoroso trabalho gráfico de um dos maiores autores nacionais, Eduardo Teixeira Coelho, com texto de Raul Correia. Esta edição surge enriquecida com uma história curta de Coelho inédita em Portugal, e sobretudo com notas do editor, de José Ruy (discípulo de Coelho), e um bom enquadramento crítico de Domingos isabelinho, elementos que costumam faltar neste tipo de obras históricas.

Há duas formas de olhar para este livro, hoje. E não necessariamente sobre o bom e o menos bom, mas sobre o que o livro é, e o que não é. Apesar do esforço de contextualização de Isabelinho, o texto (excessivo, gongórico) de Raul Correia pode não atrapalhar agora que remontado para não cobrir partes do desenho, mas raramente ajuda. Desse ponto de vista, o contraste com a (totalmente distinta) história curta “Bodas índias” (publicada na revista espanhola “Chicos” em 1954) é evidente. Depois há a importante (e pouco referida) diferença de o livro poder ser lido em algumas horas, quando a história original foi apreciada página a página ao longo de meses numa revista. O que faz com que, se o desenho mantém o vigor, saltem à vista muletas narrativas (veja-se o uso repetitivo das palavras “fulvo” e “formidável”) que teriam passado despercebidas numa leitura semana a semana. Mas “A lei da selva” é, antes de mais, um tratado vibrante de movimento e emoções num irrepreensível preto e branco, que deve ser lido hoje por todos os autores com interesse em representações realistas. Para além do rigor anatómico E. T. Coelho tem capacidades inatas para um dinamismo dramático mas económico, capaz de resumir emoções poderosas e que impressiona sem excessos, ao contrário, por exemplo, do norte-americano Burne Hogarth, seu contemporâneo e uma grande referência a este nível.
Em termos de história “A lei da selva” não é nada do que aparenta a uma primeira vista. As longas horas de observação no Jardim Zoológico podem ter garantido uma representação correta do movimento e expressões animais, que Coelho utiliza de modo sublime, mas do ponto de vista etológico o livro dificilmente poderia estar mais errado quanto às caraterísticas e ao modo de vida dos leões que o protagonizam; e essa falta de rigor é um problema grave para qualquer olhar crítico. No entanto, pode contra-argumentar-se que este não é um livro sobre animais na savana, mas uma narrativa que resulta de antropomorfizações óbvias, com o pormenor de as personagens humanas nele retratadas serem o mais esquemáticas e o menos expressivas possíveis. O exercício mental a fazer é, simplesmente, trocar os leões por seres humanos. Aí sim, a história faz todo o sentido, e o comportamento é enquadrável numa trama de tragédia e redenção de um herói solitário, vista através do Portugal no final dos anos 1940. O que permite que, a coberto de uma narrativa poética, animalista e “irracional”, Coelho e Correia contem, numa revista infanto-juvenil, uma história cruel de extrema violência que não ficaria atrás de filmes de “gangsters” para adultos. Mais uma vez, o contraste com o cândido e inocente (embora problemático a outros níveis) “Bodas índias” não poderia ser maior.

“A lei da selva” é um notável trabalho que pode ser encomendado diretamente ao editor. É pena que o livro não possa contar com uma capa mais estimulante, bem como uma edição e distribuição com outros recursos (como sucedeu com “Os doze de Inglaterra”, também de Coelho, pela Gradiva). Mas é talvez o preço a pagar pela independência sem a qual Manuel Caldas não seria o editor que é.

A lei da selva. Desenhos de Eduardo Teixeira Coelho, texto de Raul Correia. Libri Impressi/Manuel Caldas (mcaldas59@sapo.pt). 60 pp., 12 Euros.

ABSTRATO


A banda desenhada procura mesclar desenhos e palavras de modo a criar um significado que transcende (de vários pontos de vista) cada uma das contribuições individuais. Certo? Nim. Em BD o elemento crucial são desenhos sequenciais, que procuram transmitir uma mensagem quando considerados em conjunto, e que podem, ou não, ser acompanhados de palavras. Um desafio clássico na produção de BD superlativa é evitar que o desenho ou texto vivam apenas do seu próprio virtuosismo, e desde o início da linguagem que há exemplos excelentes de banda desenhadas “mudas”. Mas o que pode transmitir um conjunto de desenhos? Uma história? Uma impressão? Um estado de espírito? E esses desenhos têm de ter uma base “realista”, compreenderem representações reconhecíveis? Ou podem ser totalmente abstratos? Podem, como é óbvio, ser o que um autor quiser, e o que um leitor estiver disponível para abordar, embora a ligação entre estes dois pontos nem sempre seja uma linha, quanto mais reta. Um ponto de partida em BD é a antologia “Abstract Comics” (Fantagraphics, 2009), editada por Andrei Molotiu, onde se incluem perspetivas distintas, quer lidas historicamente a posteriori, quer contemporâneas, e realizadas com esse objetivo em mente.

Em Portugal dois exemplos interessantes (e com excelente trabalho editorial) representam duas abordagens diferentes nesta discussão. “Break Dance” (Mmmnnnrrrg) é um caderno de desenhos de André Ruivo, muito bem recriado na sua espontaneidade construída, e no qual se retratam, de forma independente, diversas personagens claramente humanas em diferentes atividades, mas distorcidas até ao limiar do grotesco. As distorções parecem indicar, quer interpretações impressionistas do autor sobre pessoas eventualmente reais, e de como se expõem/escondem/revelam em público, quer uma vertente libertária de experimentar a forma humana sem explicações. Individualizadas, é inevitável no entanto que a sequência de ilustrações sugira no leitor um retrato global. Se sobre as figuras representadas, se sobre o autor seria outra discussão.

Em “Meteorologias” (Quarto de Jade) Diniz Conefrey vai mais longe, no sentido em que as representações são (quase) completamente abstratas; e mais perto, no sentido em que há uma relação sequencial clara entre desenhos, com elementos gráficos que podem ser de certo modo “acompanhados” ao longo nas páginas nas suas evoluções e metamorfoses. Pode ser deformação profissional, mas elementos da capa lembram neurónios, e uma caraterística comum às distintas obras num excelente preto e branco que compõem o livro é evocar fluxos, sejam eles vento, vasos sanguíneos, água, transmissão de informação, alterações de estados de espírito. Por outro lado, há uma oscilação hipnótica entre a tranquilidade quase “zen” de linhas e manchas nalguns momentos, e o potencial de raiva de um traço em fúria noutros. Paradigmático dos objetivos do autor é, logo em “Membrana Fóssil”, o facto de o enquadramento em quadrícula de vinhetas (elemento clássico da BD), inicialmente domesticado, seja rompido pelo desenho, que assim extravasa os limites que a si próprio se impôs.

É natural que muitos leitores se afastem instintivamente deste tipo de obras “sem história”, que exigem um compromisso de quem as aborda, e que, por sua vez, não podem exigir mais de quem delas se afasta. Mas, tal como os trabalhos em cinema de Dziga Vertov, Andy Warhol, Norman McLaren ou Guy Maddin, são fundamentais para se perceber o potencial da linguagem da banda desenhada, e desconstruir as suas limitações.

Meteorologias. Ideias e desenhos de Diniz Conefrey. Quarto de Jade. 164 pp., 18 Euros.
Break Dance. Desenhos de André Ruivo. Mmmnnnrrrg. 120 pp. 18 Euros.

domingo, 6 de novembro de 2016

VAGUEAR



No âmbito da Exposição Central do Festival AmadoraBD2016, Espaço, Tempo e Banda Desenhada (comissariada por Eduardo Côrte-Real e Susana Oliveira) foi-me pedido um texto sobre esta temática, enquanto Biólogo que trabalha no Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) e no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Como não encontro o texto online, e como não parece haver catálogo, mesmo que em pdf (ainda?) fica aqui.

 



A banda desenhada é uma arte vadia, que vive de misturas entre elementos, e, sobretudo, de um olhar que vagueia. Já cansa referir que a BD aperfeiçoou uma linguagem própria e única, basta focarmo-nos nas suas especificidades. Neste caso não necessariamente (só) sobre obras com as quais há particular afinidade pessoal, mas sobre as que nos fazem questionar a linguagem. Coisa tão diversas como, desde logo, o estilo de desenho, onde, por exemplo, o toque ligeiramente caricatural permite que as reportagens duríssimas de Joe Sacco no Médio Oriente (“Palestine”, 1993-96; “Footnotes in Gaza”, 2009) mantenham a sua credibilidade apesar da distância estabelecida pela mediação gráfica. Tal como as metáforas de Art Spiegelman em “Maus” (1991) permitem um profundo e simbólico revisitar da natureza do Holocausto (e de difíceis relações familiares) de um modo que dificilmente deixaria de ser ridículo noutro tipo de suporte.
De facto, em histórias que se pretendem “realistas” esta constante aproximação/distanciação mediada, a uma primeira vista pelo desenho, depois pelo texto e, finalmente, pela interligação entre os dois elementos é particularmente interessante na banda desenhada de natureza autobiográfica, onde o conceito de invasão remota de privacidade é permanente. Antes de ler o que quer que seja o desenho esquemático de John Porcellino (“Perfect Example”, 2005; ou “The Hospital Suite”, 2014), as pinceladas grossas e fluidas que se desvanecem mais do que definem de Li Kunwu (a trilogia “Une vie chinoise”, com colaboração ao nível do argumento de Philippe Ôitié, 2009), o rigor geométrico de Alison Bechdel (“Fun Home”, 2006) e David B, (“L’Ascencion de l’haut mal”, 1996-2003), o ascetismo de espaços vazios de Chester Brown (“Paying for it”,  2011), ou o virtuosismo fotográfico e sanguíneo de Fabrice Néaud (“Journal”, 1993-2002) balizam desde logo o tipo de ligação ao leitor que o autor está disponível para assumir. Esta possibilidade de o desenho evocar de imediato um ambiente que condiciona a leitura é naturalmente extensível a histórias inteiramente ficcionadas (não as há totalmente “reais”), como todo o universo de Philippe Druillet (anos 1960-80) ou em “As Cidades Obscuras” de François Schuiten e Benoit Peeters (1983-2008), série na qual cada ambiente urbano minuciosamente criado influencia o tom e fluxo da narrativa. Também é possível despoletar este mesmo tipo de reação com palavras, de modo a percebermos o universo no qual nos querem envolver quase independentemente do desenho? Embora se perca a mediação gráfica imediata, é o que sucede com os trabalhos dos melhores argumentistas (sobretudo quando acompanhados por desenhadores menos virtuosos), podendo citar-se a esse nível a ligação do fantástico ao sociopolítico de Neil Gaiman (em “Sandman”, 1988-1996), Alan Moore (em todo o lado), Kurt Busiek (“Astro City”, 1995-presente), Grant Morrison (“The Invisibles”, 1994-2000), ou Warren Ellis (“Transmetropolitan” 1997-2002, “The Authority”, 1999-2000, “Planetary”- 1999-2009, ou o recém-iniciado “Trees”). Para outro exemplo menos mediático é interessante conhecer os também recentes (2013-16) “Jupiter’s Circle” e Jupiter’s Legacy” de Mark Millar.
Noutra perspetiva é sempre bom recordar que o espaço entre vinhetas implica a participação (permanente, ativa, inconsciente) do leitor nas transições, unindo as diferentes imagens. As quais podem representar, não só diferentes espaços, mas distâncias temporais de nano-segundos a décadas. Como o olhar em BD vagueia, pode percorrer uma página, considerando a sequência de vinhetas (caso existam) ou o todo, andando para a frente e para trás, no espaço como no tempo. No romance gráfico mudo “Here” (2014) o conceito de Richard McGuire leva este paradoxo espácio-temporal a um radicalismo limite, mostrando um mesmo espaço físico ao longo de um tempo extraordinariamente longo, do início de vida na Terra aos nossos dias; e conseguindo transmitir reflexões que vão do civilizacional ao pessoal. Um livro espelhado deste é o também mudo “3”” de Marc-Antoine Mathieu (2011), onde o tempo da história são apenas os 3 segundos do título, com o autor a utilizar “zoomings” extremos e reflexos em várias superfícies para representar espaços, apresentar personagens e interligar as suas histórias.
Este potencial da banda desenhada em termos de usar (e, portanto, subverter) o espaço enquanto tempo não é de modo algum novo, e tem sido trabalhado em termos formais (quer enquanto elemento narrativo, quer enquanto exercício “puro”) desde os tempos fundadores, por exemplo, em “The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo” de Gustave Verbeek (1867-1937) histórias nas quais o desenho era “lido” num primeiro sentido, depois invertido e lido uma segunda vez, concluindo-se a história na imagem invertida do desenho inicial. Um mesmo espaço (visto de perspetivas distintas), dois tempos, algo que naturalmente só funcionava com um desenho caricatural, aberto a interpretações visuais mais “flexíveis”. Mais recentemente vale a pena conhecer autores como Fred, Chris Ware, Ray Fawkes, Brecht Evens, Lewis Trondheim, Étienne Lécroart, Jochen Gerner, Sergio Garcia, entre muitos outros. No entanto a grande questão que se põe nessas obras é saber se se esgotam no “mero” virtuosismo formal (por mais inteligente e rico que seja), ou se tentam utilizar as inovações no registo enquanto ferramentas narrativo-dramáticas. Étienne Lécroart, um dos cultores do OUBAPO (Ouvroir de BAnde dessinée POtentielle) por exemplo, encaixa no primeiro destes perfis, (veja-se “Cercle vicieux” de 2000, uma BD capicua), Fred no segundo, com Mathieu e Ware algures no meio. Nas séries “Philémon” (Fred, 1978-87) e Julius Corentin Acquefacques (Mathieu, 1990-2013) as personagens desafiam a estrutura da banda desenhada, saindo das vinhetas, atravessando-as para “viajar no tempo” com motivações onírico-poéticas (Fred), ou de modo a questionar mesmo os vários aspetos da linguagem em si numa narrativa de base kafkiana (Mathieu). Por seu lado, a edição de “Building Stories” (2012) de Chris Ware consiste em vários livros e cartazes de distintos formatos no interior de uma caixa, com o leitor a construir o seu caminho entre a solidão “Hopperiana” das personagens. Mas vale a pena referir outros exemplos de transgressões, se calhar menos óbvios.
Por exemplo, em “One Soul” de Ray Fawkes (2011) cada uma das dezoito vinhetas retangulares de igual tamanho em cada duas páginas, e que se repetem ao longo da obra, correspondem a uma personagem, a uma vida. A cada duas páginas temos direito a um instante dessa vida em evolução. Do negro uterino à eventual morte, e regresso ao negro. Desde a Pré-História aos nossos dias cada personagem representa, para além de si mesma, uma era e um modo de vida, variando o género, o estatuto social, a personalidade. E o que se apreende destas vidas? Depende da leitura. Podemos escolher ler “na vertical”, personagem a personagem; e, em cada duas páginas do livro, apenas apreciar uma vinheta até ao fim. Depois voltar ao princípio, e fazer o mesmo para as restantes dezassete vidas. Ou podemos ler “na horizontal”, página a página, de modo a perceber o modo como as diferentes personagens reagem a momentos cronologicamente semelhantes das suas vidas, e de que modo evoluem. Já o belga Brecht Evens em “The Wrong Place” (2011) cria personagens feitas literalmente de cor, que as carateriza ainda antes de se perceber exatamente quem são. As personagens até “falam” na respetiva cor, com as legendas de cada uma no mesmo tom predominante que o utilizado para a figura humana. Evens usa mesmo a cor para guiar o olhar, estabelecer fronteiras e sentidos de leitura muitas vezes na ausência de quaisquer vinhetas no sentido clássico do termo.
Mas nem só de usos inovadores e inesperados da linguagem deve viver o gosto pela banda desenhada, mau seria se assim fosse. À abertura deve acrescentar-se a exigência na construção da obra, no fluir da narrativa, nas mensagens que se pretendem transmitir. Um dos livros mais interessantes surgidos nos últimos anos é Les ignorants: Récit d'une initiation croisée”, de Étienne Davodeau (2011), no fundo, um longo diálogo entre o autor de BD Étienne Davodeau e o agricultor/enólogo Richard Leroy; e que resulta numa aprendizagem mútua. Davodeau aprende o mundo vitivinícola, Leroy o da banda desenhada. Na verdade, o diálogo só é possível porque ambos professam filosofias comparáveis. Davodeau é um autor bem-sucedido com interesses fortes, que não ambiciona ser autor do novo “Astérix”; Leroy um pequeno produtor renomado, que pretende produzir (poucos) bons vinhos da maneira mais não-invasiva possível. Os métodos, filosofias e processos criativos têm pois claros paralelismos, ao nível da dimensão, visão, e do controlo de qualidade que ambos exigem nas respetivas criações. O rigor de um na poda das videiras é correspondido pelo rigor do outro na aprovação de provas de cor.
Talvez a mensagem principal deste excelente livro seja pois que o diálogo entre disciplinas é possível, e pode ser extremamente fértil. Desde que, para além da abertura necessária para entender o Outro, a visão que os intervenientes tenham das respetivas disciplinas seja semelhante. E o mesmo é válido para as correspondentes ignorâncias, para a disponibilidade em as superar. É que não há mal nenhum em procurar banda desenhada que conforte, lembre outros tempos, que glose (ou mesmo repita) temas, estilos e heróis reconhecíveis. Mas o verdadeiro exercício permanente é este: perceber que num mundo cínico onde se diz que tudo já foi inventado há ainda novidades a propor; obras que nos desafiam e elevam. Basta procurar.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Um equívoco azul, em BD e cinema: "O azul é uma cor quente" e "La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2"

A propósito da edição portuguesa do livro, pela Arte de Autor

Quando um filme ganha a Palme d’Or no Festival de Cannes de 2013, e se descobre que é baseado numa banda desenhada, fica-se com natural curiosidade de ver um e ler a outra, sem ligar muito ao ruído que parece envolver ambos. Mas... e se o ruído, por não ser apenas exatamente isso, for mesmo o que há de mais interessante a discutir?
A relação entre banda desenhada e cinema nunca foi muito pacífica. Do lado da BD, bem entendido. Sobretudo por o percurso de ambos, após uma origem formal moderna quase simultânea, ter conduzido a uma atualidade onde a BD continua a buscar o reconhecimento que para o cinema é um dado adquirido. Por exemplo, se ainda se levantam questões quando à fidelidade na adaptação para cinema de obras literárias marcantes, no caso do material de partida ser uma banda desenhada, não só por vezes isso nem sequer é evidente, como não se ouvem grandes protestos quando surgem alterações significativas na transição.
A não ser que aconteça algo como o que sucedeu com a BD Le Bleu est une couleur chaude, da francesa Julie Maroh (Glénat 2010), cuja adaptação para cinema resultou em La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2, realizado por Abdellatif Kechiche, (Palme d’Or Cannes 2013, com vários prémios para realizador e para as duas atrizes principais).
Desde já um resumo de opinião formada após múltiplas leituras/visualizações: sendo interessantes, nem um nem outro são completamente conseguidos no modo como (ab)usam mecanismos narrativos repetitivos que se tornam desinteressantes, e no caso específico do filme de Kechiche, desonestos. O (à partida inexplicável) prémio de Cannes e a valorização subsequente da BD (bem como a polémica que rodeou um e outra) explicam-se, não só por abordarem temas “fraturantes”, mas porque, parecendo ser sobre exatamente a mesma coisa, são sobre coisas diferentes, usando as mesmas personagens e cenários (e mesmo alguns momentos-chave). Trata-se, no fundo, de uma questão da Reflexão e da Mensagem (com maiúsculas) que se querem transmitir. E isso é de facto interessante.
Não que Abdellatif Kechiche esconda o seu propósito, desde logo por utilizar um título de todo distinto da BD, e pelo modo como chega a esse título. O nome do filme justifica-se em duas partes. Adèle é o nome de uma das duas protagonistas, que se chama Clementine na BD. O facto de ser a única personagem que muda de nome na adaptação (que não o é), e ter “ganho” precisamente o nome da atriz que representa o papel (Adèle Exarchopoulos) parecem demonstrar alguma fusão obsessiva entre personagem/atriz por parte do realizador, algo que transpareceu de várias análises ao filme. No fundo um pormenor para quem se quiser deixar titilar, mas que tem consequências. Seja como for, a segunda protagonista é sempre Emma na BD ou no cinema (interpretada por Léa Seydoux). Quanto à referência aos Capítulos 1 e 2 da vida de Adèle, convém explicar o que é (na BD) o Capítulo 3. Desde já chamo a atenção para o “spoiler alert”.

No original Le Bleu est une couleur chaude, é uma história de amor e descoberta (e negação) da (homo)sexualidade com claros reflexos autobiográficos, e alguma afinidade com o trabalho de Alison Bechdel, utilizando um registo que varia entre o documentário urbano e o drama. As opções de Maroh são bastante lineares, desde as diversas situações e personagens que cumprem a função de retratar as várias possibilidades necessárias para a narrativa à medida que as protagonistas consolidam a sua ligação (repulsa, afastamento, preconceito, aceitação, amor, relutância; diferentes relações com amigos, familiares e colegas), à utilização das manifestações contra a política educativa do governo francês, mostrando, não só as várias dimensões da evolução das personagens, mas também como os revolucionários se podem juntar ou afastar consoante as causas. Do ponto de vista gráfico há a mesma legibilidade, fora alguns apontamentos muito interessantes em que situações tensas ou temporalmente longas são resolvidas através de curtas sequências sem palavras; ou o óbvio símbolo de afirmação e diferença que é o cabelo azul de Emma. O objetivo é fazer passar uma mensagem de libertação e tolerância o mais clara possível.
História centrada nas duas protagonistas, a artista gráfica Emma é o fulcro/pilar à volta do qual evolui a mais jovem estudante de liceu Clementine/Adèle. Não que Emma não tenha dúvidas e temores (profissionais e pessoais), mas o leitor nunca hesita quanto à sua maturação como pessoa; evidente quando perde com naturalidade o cabelo azul, por já não precisar dele para se definir. Clementine/Adèle é outra história.
Na BD o Capítulo 1 é pois sobre o encontro das protagonistas, e de como a descoberta de Emma é fundamental no assumir gradual de Clementine/Adèle enquanto lésbica (e pessoa). O Capítulo 2 desenvolve a ruptura na relação entre ambas, essencialmente devido às dúvidas identitárias e imaturidade de Clementine/Adèle. No Capítulo 3 há um breve reencontro, onde feridas são curadas e o amor triunfa. Breve, porque Clementine/Adèle morre de doença cardíaca, que ataca quando faz amor com Emma numa praia, imersas ambas numa felicidade adiada, finalmente redescoberta. Sim, isso mesmo, mais penosamente melodramático e telenovelístico (até por ser genuinamente assumido) seria difícil... Desse ponto de vista não se pode censurar Kechiche por ter dispensado este Capítulo.
A parte de leão da BD (o Capítulo 1) é contada em “flashback” por Clementine/Adèle, através dos seus diários, que Emma lê após a sua morte, numa (auto)reflexão temperada pela distância. E é aí, na descoberta do amor, no lento assumir da homossexualidade, e em todas as dificuldades em gerir ou ajustar as relações pessoais, sociais e familiares em causa, que Le Bleu est une couleur chaude, se torna uma banda desenhada eficaz, honesta, envolvente, e, fora alguns exageros e pormenores forçados, terna. É sobretudo relevante o modo como Julie Maroh consegue traduzir coragem ancorada em pequenos gestos quotidianos (marcados também por decepção e crueldade), que são revolucionários precisamente por não o parecerem. Esta é (também) uma BD claramente militante, que usa a experiência pessoal para um retrato global (como o notável Stuck Rubber Baby de Howard Cruse), e não há, nem que escamotear esse facto, nem que diminuir a obra por causa disso. Em banda desenhada não há muitos autores mais militantes que Joe Sacco, por exemplo. Fica ao critério do leitor se a morte demasiado encenada de Clementine/Adèle na BD é entendida por Julie Maroh enquanto “castigo” por não ter sabido assumir até ao fim, e em permanência, o amor da sua vida, e, por inerência, não se ter assumido a si mesma.
Curiosamente o filme  La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2 segue mesmo de muito perto a BD, se excluirmos a já referida não inclusão do Capítulo 3. Mas a mensagem é aqui completamente distinta. Se a relação entre as protagonistas é central (e voltaremos a isso), o que está em causa no seu desmoronar é mais uma visão de atitude perante a vida que não tem necessariamente a ver sobretudo com orientação sexual (como na BD), mas antes com outras escolhas. No filme a ruptura entre Emma e Clementine/Adèle tem lugar porque o seu crescimento bifurcou: a primeira, Artista, existe num estádio de desenvolvimento superior, enquanto a segunda, professora/educadora infantil, tem uma existência “banal”. Não é claro (mas é de certo modo sugerido) se há aqui uma equivalência entre escolha sexual e profissional, mas a traição (heterossexual) de Clementine/Adèle surge, não só devido a inseguranças pessoais, mas por sentimento de marginalização. Algo que parece confirmar-se no final aberto do filme, quando Clementine/Adèle sai da “vernissage” da exposição que consagra Emma (sinalizando a impossibilidade de reconciliação), e é seguida por um jovem admirador. Um jovem que desistiu do sonho de ser ator (sendo de ascendência magrebina apenas lhe calhavam papéis de terrorista... um bom toque do argumento) para trabalhar numa imobiliária. Ou seja, desceu ao nível de Clementine/Adèle, a sua relação é possível. Emma está num outro patamar.
É fácil perceber portanto como se poderá ter achado que o filme trai o espírito da BD, valorizando elementos distintos, e não tanto a descoberta de relações pessoais e sexuais num determinado contexto sociocultural. Por exemplo, o filme Mosquita y Mari da realizadora chicana lésbica Aurora Guerrero (2012) está muito mais próximo de Le Bleu est une couleur chaude, porque há um investimento autobiográfico de ambas as criadoras, que querem mostrar as dificuldades acrescidas que tiveram para serem quem são num contexto o mais “normal” possível (sem complicar com outro tipo de reflexões), e que estão a tentar fazer Arte para quem as quer entender, não para quem quer glosar outros interesses usando as suas histórias como ponto de partida. No caso de Mosquita y Mari e Le Bleu est une couleur chaude, o objetivo maior é aplicar ficção para potenciar o que se pretende seja uma mistura de documentário/manifesto/guia.
Embora se deva sempre considerar a qualidade final de um objeto, seria ingénuo não considerar aqui uma outra (longa e complexa) temática. A que discute quem tem o “dever”, mas sobretudo o “direito” (entre aspas, a meu ver), de contar o quê sobre quem, algo que surge sempre com temas fraturantes, nomeadamente relacionados com a questão da Identidade (cultural, rácica, sexual). É uma questão importante, até por não ser assumida diretamente em muitas análises. Só para dar exemplos recentes que podem ter passado mais despercebidos: a abordagem da escravatura (e, mais globalmente, da relação entre negros e brancos) nos EUA levantou questões em Django Unchained de 2012 (Quentin Tarantino é branco) e mesmo em 12 Years a Slave de 2013 (Steve McQueen é negro, mas britânico); enquanto alguns claros viés encontrados noutras abordagens de temática mais contemporânea, como os filmes de 2013 The Butler (Lee Daniels) ou sobretudo Fruitvale Station (Ryan Coogler), não tiveram tanta atenção dos mesmos quadrantes (os dois últimos realizadores são negros norte-americanos).
Não que a temática em volta do sexo e da identidade sexual estejam ausentes de La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2, muito pelo contrário. Na verdade as (muito) longas cenas de sexo entre as protagonistas são conhecidas. Quanto a isso, três coisas. As cenas de sexo existem na BD, em versão curta. No filme são gratuitas, mas encenadas de modo a parecerem transgressoras (Kechiche pode ter tirado inspiração de Bruno Dumont, um realizador muito interessante, mas aparentemente impune a esse nível). São, sobretudo, exageradamente longas, e a sua duração não acrescenta nada, a não ser testar os limites da paciência do espetador, como quaisquer outros excessos noutros filmes (violência, melodrama, etc.). Se reclamar (ou sair da sala, como sucedeu nalguns casos) vai parecer conservador, se aprovar não se livra da acusação de “voyeur”, uma acusação de resto feita a Kechiche, e percebe-se porquê. Como se percebe, depois de ver as cenas, o peso de uma alteração tão específica no nome de uma das protagonistas. Curiosamente as cenas de sexo até nem são onde se sente mais o olhar do realizador sobre a atriz Adèle Exarchopoulos. Por exemplo, a cena do treino de batuques com as crianças é até mais reveladora, por misturar a inocência aparente da situação com a ausência de Léa Seydoux.
Nestas coisas é sempre bom pensar em alternativas, e após sair do cinema não pude deixar de imaginar o que sucederia se as mesmíssimas cenas de sexo neste filme fossem protagonizadas por um casal heterossexual ou por um casal homossexual masculino. Ou ainda se o filme fosse realizado por uma mulher lésbica. Ou, por último, se as cenas fossem protagonizadas por dois atores convincentes que, independentemente no sexo, não encaixassem em quaisquer cânones de atratividade comummente aceites na indústria cinematográfica (e sociedade em geral). Não tenho grandes dúvidas que muitos dos mesmos críticos que elogiaram o filme o achariam gratuito; duvido seriamente que ganhasse prémios fora do circuito restrito de festivais LGBT, ou tivesse, no máximo, a atenção de Shortbus (de John Cameron Mitchell, 2006) ou do mais recente e muito curioso L’inconnu du Lac (de Alain Guiraudie, 2013). O que temos, de facto, é erotismo lésbico visto por um olhar masculino, o erotismo “transgressivo” mais aceitável de todos, basta ir a qualquer site pornográfico. La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2 transforma-se aqui numa decepção, o que minimiza o filme como um todo.
Realizador franco-tunisino Abdellatif Kechiche utiliza muito bem essa dualidade (e os diálogos entre culturas) para fazer, quer filmes excelentes a todos os níveis (La graine et le mulet, 2007), quer filmes mais interessantes na temática e intenção, do que na concretização (Vénus noire, 2010). La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2, pertence à segunda categoria, e é talvez o filme mais sobrevalorizado a que alguma vez assisti. No entanto, os resultados e interesses distintos que surgem a partir de tantos elementos comuns tornam o duo Le Bleu est une couleur chaude/La vie d'Adèle muito relevante na extensa relação entre cinema e banda desenhada, no sentido em que a sua análise em conjunto permite outro tipo de descobertas. Como sempre aprende-se mais em qualquer diálogo quando há discordâncias.

Le Bleu est une couleur chaude. Argumento e desenhos de Julie Maroh (lido na versão inglesa: Blue Is the Warmest Color, Arsenal Pulp Press 2013, agora em português pela Arte de Autor, 2016)

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

CÁTEDRA

Catedrático de literatura francesa na Universidade do País Basco, estudioso de banda desenhada e argumentista premiado, Antonio Altarriba é uma das mais interessantes figuras da BD espanhola, destacando-se as obras dedicadas aos seus pais, “A arte de voar” sobre histórias do pai na Guerra Civil Espanhola, editada na primeira coleção de Romances Gráficos Levoir/Público, e “A asa quebrada”, sobre as vicissitudes na vida de sua mãe só conhecidas após a sua morte, que sairá na segunda coleção. Se estes dois livros (ambos com desenhos de Kim, num tom realista “neutro”) surgem como homenagens biográficas sobre as quais se reflete a História de Espanha, “Eu, assassino” (Arte de Autor) é um pouco diferente, embora comungue da mesma matriz-base.
Desde logo conta com um desenho bastante mais duro de Keko, e o uso dramático de vermelho (talvez até excessivo) num preto e branco contrastado que segue uma linha gráfica que vem de Milton Caniff, Alberto Breccia e Frank Miller. Mas sobretudo o protagonista é Professor (de Arte) na Universidade do País Basco, e muito semelhante do ponto de vista físico ao próprio Altarriba. Uma parte importante da história implica pois a realidade política do País Basco, por um lado, e a dinâmica do meio académico em geral, por outro, embora seja suficientemente arguta para que esses elementos surjam mesclados com o relato na primeira pessoa do protagonista.

Citando ao início Sade, e na introdução “O Mandarim” de Eça de Queirós, a reflexão de Altarriba imbrica nos diferentes modos e perspetivas de considerar a morte (individual, coletiva, simbólica, “útil”, libertária, criadora de mitos, terrorista) e as suas consequências, de como podemos acabar por ficar indiferentes perante a sua ubiquidade quotidiana, e quais os mecanismos possíveis para o evitar. Com a particularidade de esta reflexão ser conduzida por um assassino em série cujo objetivo na vida é, para além de não ser apanhado, tratar a morte como uma das Belas Artes, cada assassinato enquanto performance/instalação inovadora. Faz diferença o discurso interessante e articulado do protagonista ser, em simultâneo, o de um psicopata assassino que, no fundo, apenas se preocupa com a sua carreira (fama, mulheres), negligenciando muito do que o rodeia (incluindo relações, previsíveis, com uma aluna e a sua quase ex-mulher)?
Para além de eventualmente sublimar alguns eventos pessoais (como sucedeu em obras anteriores) é neste paradoxo que reside o interesse maior de “Eu, assassino”, e a inteligência da obra é patente, não só na construção de argumento, mas no desenho contrastado de Keko, que sugere haver uma dualidade que, na verdade, se esfuma. De facto, e caricaturando o que acontece frequentemente na Academia, o psicopata criativo, original e rebelde que protagoniza o livro acabará, não necessariamente castigado do modo “clássico”, mas menorizado por psicopatas copiadores cinzentos, que trabalham melhor dentro do sistema. A única solução é procurar uma outra abordagem inovadora, que lhe permita continuar a sua carreira dupla, académica e criminal, já que, em última análise, tornaram-se indissociáveis. Na verdade, troque-se a palavra “psicopata” por “especialista” e estaríamos em presença de um retrato reconhecível do meio académico. Desse ponto de vista, apesar de alguns desequilíbrios, “Eu, assassino” é uma notável obra em forma de tese, que perturba até pelo contexto inesperado em que integra os diversos clichés que assume.
Esta edição prova ainda que, apesar da dinâmica editorial corrente, há um nicho para pequenas editoras explorarem a muita qualidade presente em diversos mercados, e em relação aos quais a realidade portuguesa perde sempre. Depois de “Caravaggio” de Manara, a Arte de Autor volta a marcar pontos com esta excelente edição.

Eu, assassino. Argumento de Antonio Altarriba, desenhos de Keko. Arte de Autor. 136 pp., 20 Euros.