segunda-feira, 27 de novembro de 2017

PONTE


A essência, resumida, do Festival de Banda Desenhada da Amadora é que vale sempre a pena visitar pela qualidade expositiva e dilúvio de lançamentos que representa. Há, no entanto, fragilidades organizativas e critérios que se têm tornado monocromáticos, evidentes nos prémios concedidos pelo Festival, de resto irrelevantes fora do universo estrito da BD. Dito isto, “Deserto/Nuvem” de Francisco Sousa Lobo (Chili Com Carne) é um livro excelente que merece ampla divulgação, a juntar aos prémios de melhor álbum português, e (mais questionável) melhor argumento.

A obra é, na verdade, composta por dois livros, unidos umbilicalmente pelos fins, numa encadernação magnífica, que sublinha o trabalho de autor e editor. O ponto de partida comum é a vida dos monges no Convento de Santa Maria Scala Coeli, mais conhecido como Convento da Cartuxa, em Évora (no concreto); e as escolhas radicais de clausura, contemplação, afastamento do mundo e silêncio, preconizadas pela Ordem fundada por São Bruno de Colónia em 1084, e de como se relacionam com outros modos de vivenciar o catolicismo (enquanto conceitos).
Em ambos os livros se entranham o desenho e planificação ascéticos de Sousa Lobo, definidos por espaços vazios e marcados por uma única cor a jogar com o preto e branco. “Deserto” (com o subtítulo, Francisco Sousa Lobo à volta da Cartuxa) tem a cor da terra seca do Alentejo, e nele o autor revela um pouco da história familiar que culmina na sua viagem de uma semana, para conhecer o Convento e os seus habitantes por dentro, e fazer uma banda desenhada. Com o azul como cor de acento, “Nuvem” (Francisco Sousa Lobo sobre a Cartuxa de Évora) consiste numa série de cartas gráficas do autor aos monges cartuxos, nas quais reflete sobre diferentes aspetos que cruzam visões da religião (católica) e da arte, misturados com o seu percurso e referências pessoais. Cartas que, dado o isolamento dos seus destinatários anónimos, nunca teriam resposta. Uma obra mais “interna” outra mais “externa”; uma jogando com princípios (que talvez nunca se concretizem), a outra apreciando realidades que talvez desiludam (por nunca espelharem a ideia que se tem dos princípios). Não se trata aqui só de pensar a contemplação enquanto arte, mas questionar se não pode também ser (outra) máscara, se fica algo por dizer no silêncio que valha a pena ser dito. Até porque, ao “falar” enquanto autor Sousa Lobo quebra o ideal que admira, mas ao qual não consegue aderir. E, como em outros trabalhos seus, tocam-se as fronteiras entre religião organizada e misticismo, incluindo a instabilidade mental associada a ambos. E não menos à Arte, porventura.


 No caminho que levou a “Deserto/Nuvem”, que se pressente longo e hesitante (a vários níveis), Sousa Lobo tenta construir pontes frágeis entre estes vários aspetos, como o harmónio de cartão que une os livros. E, sobretudo, procura acreditar nelas. Para além do fascínio com a vida e opções dos cartuxos, e os paralelos que o autor estabelece com a sua arte, este é sobretudo um catálogo de dúvidas sem resposta. Como se duas obras semifalhadas ou incompletas se resgatassem e engrandecessem mutuamente pela união enquanto gémeas siamesas invertidas; o onirismo poético de uma elevando-se na realidade de um Alentejo moribundo e sem rumo da outra; a qual, por sua vez, ancora a anterior. Na sua construção inclassificável este é um excecional trabalho de Francisco Sousa Lobo, com elogios extensíveis à Chili Com Carne. Seria uma pena se (como os trabalhos de autores como António Jorge Gonçalves, Tiago Manuel ou Diniz Conefrey) não passasse bem para lá do universo da banda desenhada e dos seus rituais.


Deserto/Nuvem. Argumento e desenhos de Francisco Sousa Lobo. Chili Com Carne. 64 + 124 pp., 18 Euros.

BIENAL


Quando alguém, geralmente bem-intencionado, usa a expressão “descentralizar”, a interpretação comum é que quer dizer “fazer umas coisas no Porto”. O que nada tem de mal, como é óbvio. Mas talvez tenha outro mérito montar do nada algo como uma Bienal de Ilustração em Guimarães (BIG, 2017). Para além do evento em si, é uma prova que há ainda gente que faz, sem lamentos, numa cidade/região que tem crescido (também) com a formação nesta área. E destaca-se pela qualidade que, desde o catálogo à escolha de autores, só não surpreende porque não se esperaria outra coisa do seu mentor: o pintor, ilustrador e autor de BD Tiago Manuel. Que até é de Viana do Castelo.

Até 31 de Dezembro, em vários espaços da cidade descobrem-se trabalhos de autores consagrados e menos, realizados em diferentes contextos, num esforço genuíno de revelar o presente sem esquecer o passado. O qual muitas vezes se recorda em estilo, como sucede com o elegante trabalho de Luís Filipe de Abreu, homenageado com o Prémio de Carreira, e que se reconhece instantaneamente de livros escolares, selos ou notas. Mas, com muito poucas exceções, todos os trabalhos expostos são dignos de registo, e marcam diferentes opções estilísticas na ilustração nacional, desde alguma familiaridade, a descobertas ousadas e surpreendentes; do figurativo e onírico, ao político. Há, no entanto, uma certa tendência para privilegiar autores que compartilham um regime de cumplicidades estéticas e filosóficas com as diversas pessoas envolvidas na organização. Algo que até ajuda na criação de uma certa unidade, e é natural num evento de estreia; mas que talvez possa ser trabalhado em edições futuras.
O fundamental é isto: tal como, por exemplo, o Festival de BD de Beja, a primeira edição da Bienal de Ilustração de Guimarães podia ter sido noutro sítio qualquer (incluindo, naturalmente, Lisboa). E mereceria os mesmos elogios.

PIRITE


Aquando da publicação de “Miracleman”, com o material escrito para a personagem por Alan Moore nos anos 1980 referiu-se que, de relevante, faltavam as histórias de Neil Gaiman. E, prosseguindo o seu excelente trabalho, a G. Floy Studio apresenta agora “Miracleman: A idade do ouro”, que reúne argumentos de Gaiman magnificamente ilustrados, com estilos adaptados a cada história, por Mark Buckingham. Realizadas nos inícios da década de 90, às histórias que compõem este volume deveriam seguir-se os arcos narrativos “Silver Age” e “Dark Ages”; o primeiro ainda iniciado, o segundo esboçado. Para já é o que temos, e vale muito a pena conhecer.

Note-se, desde logo, que não faz sentido apreciar este volume sem ter lido as histórias de Moore, que estabelecem o contexto sobre o qual Gaiman constrói. Há até alguma reverência na abordagem, incluindo uma prosa a espaços rebuscada, que a tradução acentua. Mas, se após uma desconstrução brilhante do universo de super-heróis Moore parecia não saber muito bem o que construir sobre as suas ruínas (fá-lo-ia em “Watchmen”), Gaiman é inteligente nas escolhas. Para além de trabalhar as consequências lógicas de um mundo governado por um super-herói que, no fundo, funciona como Deus; o que Gaiman faz de notável é balizar as suas personagens para além do contexto fantástico em que se movimentam. “A idade do ouro” não é bem sobre Miracleman, mas sobre a sua influência em alguns dos seus súbditos “normais”. De que modo reagiria a sociedade à presença de um Deus “real”, interventivo e omnipresente, e dos seus filhos mais do que humanos? Que peregrinações e pedidos lhe fariam (e como responderia ele)? O que aconteceria a profissões geradas por conflito e guerra num mundo de harmonia? E a paz oferecida por Miracleman seria suportável para todos, ou haveria nostálgicos pelos “bons velhos tempos”? Embora se notem hesitações no criar de um todo a partir das várias histórias independentes (o juntar de todas as personagens na última história é revelador disso mesmo), se isto parece uma antecipação a alguns momentos de “Sandman”, a série marcante de Gaiman, é muito natural; histórias de pessoas normais postas perante circunstâncias extraordinárias (por vezes sem as compreender) são onde o autor mais brilha.

Claro que nem sempre a fórmula resulta em pleno. Adaptando um conto do próprio Gaiman “Como falar com raparigas em festas” (Bertrand Editora) conta com o desenho dos notáveis autores brasileiros Gabriel Bá e Fábio Moon (“Daytripper”). As espectativas eram elevadas, e talvez por isso se sinta alguma frustração pela ligeireza do projeto. O desenho é dinâmico e a ideia excelente, mais uma vez baseada numa realidade banal. Um jovem adolescente (no qual se reflete o próprio Gaiman) sente dificuldades em falar com as deslumbrantes raparigas presentes numa festa, porque parecem ser de outro planeta. E se fossem mesmo? Ou encarnações de lendas, de formas poéticas, de mitos? Mas a BD em si nunca funciona tão bem como a ideia, sobretudo porque não se decide sobre qual a lógica a apresentar aos leitores, quanto é suposto que saibam, quanto é suposto ser revelado. Na verdade, como em “Miracleman”, talvez tivesse sido interessante incluir um posfácio, ou notas de leitura.

Em resumo: se em “Miracleman” Gaiman ainda não era o grande argumentista de “Sandman”, em “Como falar com raparigas em festas” já não é. Mas o que escreve vale, em ambos os casos, muito mais do que a maioria, e os desenhos dos seus colaboradores nestes projetos são excelentes. Sem ser bem ouro, brilha, provoca, e encanta na mesma.

Miracleman: A idade do ouro. Argumento de Neil Gaiman, desenhos de Mark Buckingham (cores de D’Israeli). G. Floy Studio. 192 pp., 16 €.
Como falar com raparigas em festas. Argumento de Neil Gaiman, desenhos de Fábio Moon e Gabriel Bá. Bertrand Editora. 64 pp., 14,40 €.

AUTORES


Já aqui se referiu que a Arte de Autor tem assumido a linha editorial que vinha da Meribérica e ASA, de certo modo interrompida (fora exceções pontuais) aquando da entrada desta última no grupo Leya. Note-se que o trabalho editorial é muito bom, e há apostas contemporâneas interessantes (“Eu, Assasino”, “O azul é uma cor quente”). Mas a ligação é clara quando, por exemplo, não se podendo editar “Blake & Mortimer” (um sucesso de vendas cujos direitos não seriam fáceis de adquirir), se editam paródias menores dessa série (“SOS Meteorologia”, de Veys e Barral), ou uma biografia do seu criador, Edgar Pierre Jacobs, com o mesmo tipo de registo gráfico. No entanto, e apesar de tom ainda assim reverencial que a obra adota, “A Marca Jacobs”, de Rodolphe e Alloing é um trabalho que vale a pena conhecer, sendo sobretudo interessante o percurso histórico e os acasos e rivalidades que levaram à construção do chamado estilo “linha-clara” (com Hergé como importante “personagem secundária”, neste caso).
Por outro lado, e para além de “Corto Maltese”, a editora tem apostado em criadores italianos, republicando a série “Druuna” de Paolo Eleuteri Serpieri (n. 1944), incluindo os dois primeiros episódios (“Morbus Gravis” e “Druuna”, aqui designado “Delta”) num único tomo. Uma história de ficção-cientifica num mundo em dissolução, e numa era (1986-87) em que os “mutantes” gerados por exposição a radioatividade substituíam os “zombies” enquanto “leitmotiv” desestabilizador, “Druuna” pode ser lida como glosando os perigos e a opressão de um mundo tecnológico que perdeu a alma. Ou enquanto desculpa para um registo de erotismo “soft-core” com variantes S&M às quais a protagonista é submetida, por necessidades narrativas, e de modo algum por facilidade ou voyeurismo... Ou, sem ironia (até porque a edição é “para adultos”), como ambas as coisas. De facto, o desenho de Serpieri é fabuloso dentro do género realista, a história interessante e o universo convincente (sobretudo nas partes mais esquálidas). Apesar de tudo, “Druuna” mantém qualidades e merece ser (re)apreciada hoje, sobretudo por quem não a conhecer.



Um outro autor da mesma geração em que a editora aposta é Milo Manara (n. 1945), lançando o mais recente (a excelente primeira parte de “Caravaggio”) e um dos mais antigos, “O Rei Macaco” (1977), uma colaboração com o argumentista Silverio Pisu (1937-2004). É certo que é inevitável ligar “Druuna” às “mulheres de Manara”, considerando, não só o traço de ambos os autores, mas o modo estereotipado com que retratam figuras femininas, e ao facto de Manara ter a mesma tendência de Serpieri para descair num erotismo avulso (como muitos pintores “clássicos” que raramente são criticados por isso, poder-se-ia argumentar). Mas o preto e branco de “O Rei Macaco” está muito distante, por exemplo, de “O Clic”. O argumento de Pisu recria a antiga lenda chinesa do mesmo nome, seguindo os principais momentos do protagonista homónimo de forma bastante fiel, da cosmologia à evolução do herói (de rebelde, a imortal, a burocrata, a libertador, a prisioneiro). Injetando aqui e ali modernidade nas lições sobre crescimento, poder e orgulho que estão na base da narrativa. Mas esta é uma história imaginada na Itália dos anos 1970, e alguns elementos não budistas ou taoistas refletem também um momento sociopolítico mais ou menos revolucionário (se bem que não cego, nem dogmático), ao qual a história (também) de adapta.

Na verdade, se há crítica a fazer às excelentes edições de “O Rei Macaco” e “Druuna” é que se perdeu a oportunidade para uma contextualização apropriada, que vincasse o seu lugar histórico. Mesmo que os livros “valham por si mesmos” e apenas se tenha pensado num público que já os conhece (o que é legítimo, mas redutor), já não são exatamente os que foram lidos há 30-40 anos. O mundo mudou, e poucos livros ficam na mesma.

O Rei Macaco. Argumento de Silverio Pisu, desenhos de Milo Manara. Arte de Autor. 90 pp. 20 Euros.
Druuna (Morbus Gravis & Delta). Argumento e desenhos de Paolo Eleuteri Serpieri. Arte de Autor. 150 pp. 21 Euros.

CAMINHAR


O interesse mais generalizado pela banda desenhada japonesa (“mangá”) no ocidente relacionou-se, numa primeira instância, com material que servia de base a desenhos animados. De tal modo que muitos olharam inicialmente para o “mangá” (com as suas particularidades narrativas e gráficas, ritmos alucinantes e desenho esquemático tipificado, sobretudo nas figuras humanas) como algo menor, porque não há nada mais atreito a estigmatizar do que estigmatizados. Não foi só um autor a mudar essa perceção, mas não há dúvida que a carreira de Jiro Taniguchi (1947-2017), talvez o mais “ocidental” dos “mangaká”, contribuiu para isso, como atenta, entre muitos outros reconhecimentos, ter sido nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras em França em 2011. Em Portugal, e para além de outros livros, basta sinalizar que o recente lançamento de “O homem que passeia” pela Devir é já a segunda versão desta obra, desta feita editada no sentido de leitura original (do “fim” para o “princípio” do livro, e da direita para a esquerda na página), embora a diferença a esse nível seja mínima; se é que existe, a não ser que se leia em japonês (por algum motivo se fala em “tradução”). Seja como for, esta é uma obra importante que quem não conhece deve conhecer, e os “poemas gráficos” de Taniguchi são mesmo muito recomendáveis para leitores atentos que dizem não gostar de BD.

Em “O homem que passeia” há dois tipos de relatos curtos (nunca são bem “histórias”), a maioria poder-se-ia designar como “domésticos”, os últimos três centrados em mulheres (agora) ausentes. Em qualquer caso com um protagonista anónimo que (re)descobre recantos familiares ou subúrbios desconhecidos caminhando, encontrando paisagens, locais e gente anónima, fazendo recados concretos, ou vagueando ao acaso. Nestas histórias contemplativas de espírito quase “zen” onde se parece passar muito pouco (e com muito poucas palavras) há dois elementos que chamam a atenção. Primeiro, o detalhe no desenho primoroso a preto e branco (na antítese dos clichés sobre “mangá”), criando um universo que o argumento, a uma primeira vista, não parece pedir, mas que por isso mesmo se torna tão vivo e profundo. Segundo, o facto de um leitor não conseguir deixar de projetar naqueles momentos algo de si mesmo, quanto mais não seja para preencher a história do protagonista que caminha; tentar entender (ou inventar) o que, literal e figurativamente, o move. Se há momentos em que há vontade de entrar sem hesitações no universo, e nos rendermos à serenidade meditativa que emana das páginas, outras há em que a vontade é ficar de fora, imaginar os segredos ou frustrações que o protagonista também deve carregar consigo, e que sublinha caminhando.
Esta última leitura surge mais nas últimas histórias, porquanto mais concretas ao nível de um argumento convencional. Se bem que só a última, o relato do sabor a perda que ficou de uma relação adúltera, entretanto terminada, se aproxima de uma forma mais convencional; contando também com um desenho mais contrastante e menos detalhado, de certo modo a vincar a diferença também do ponto de vista gráfico. Nas restantes voltamos a passear por quotidianos presentes ou perdidos, reais ou (ligeiramente) imaginados, tendo como ponto comum uma presença feminina que serve como pretexto para divagações mentais e temáticas, como um espelho dos percursos aleatórios de protagonistas que parecem buscar experiências novas ou memórias adulteradas, perdidas há muito tempo atrás.

As historias de Jiro Taniguchi não são propriamente “simples”. Quer dizer, são se o leitor assim quiser, e dependendo do que nelas quiser projetar. Sobretudo, convidam a andar; relembram que o caminho pode ser bastante mais interessante que o destino. Espera-se que este caminho editorial da Devir, a prometer novas obras de referência em termos de BD japonesa, seja igualmente bem-sucedido.


O homem que passeia. Argumento e desenhos de Jiro Taniguchi. Devir. 250 pp., 20 Euros.