domingo, 19 de fevereiro de 2017

FAMÍLIA


Como dizia Tolstoi, as famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira; e, acrescenta-se, dão mais pano (ficcional) para mangas. Várias obras interessantes em banda desenhada abordam relações familiares e suas consequências, sendo particularmente notável “Saga”, escrita por Brian K., Vaughan com desenho elegante de Fiona Staples (G. Floy Studio). Nesta série a miscigenação, o racismo, ou as tensões nacionalistas, relacionais e geracionais, bem como a aprendizagem mútua constante que decorre disto tudo, são discutidos de uma forma pungente e realista; embora para tal se utilize um contexto alegórico de guerra e “space opera”, por detrás do qual se escondem questões reconhecíveis na sua simplicidade profunda.

Infelizmente o mundo real não permite escapismos, embora algumas das suas propriedades não fossem consideradas credíveis num registo de ficção-científica. No segundo tomo da autobiografia “O árabe do futuro” (Teorema) Riad Sattouf continua o relato de uma infância no Médio Oriente, focando a escolaridade na Síria de Hafez al-Assad nos anos 1980, e o modo como a sua família (não) se adapta a um contexto de penúria e controlo, onde a doutrina oficial e a hierarquia familiar são absolutas, e no qual a sua mãe (francesa), e sobretudo o seu pai (educado em França) têm dificuldades em assumir uma posição confortável. Na verdade, se a versão ingénua do Riad Sattouf-criança é importante para marcar a realidade (a desorganização, o racionamento, o ódio aos judeus, mas também a beleza do país e a “normalidade” das pessoas), fulcral mesmo é a posição do seu pai, incapaz de um olhar crítico que lhe permita resolver as incongruências entre a Síria que crê existir, e a que o seu filho vê. No fundo, Abdul-Razak al-Sattouf representa o dilema de todos os conflitos, na medida em que nem quem conhece os dois lados parece habilitado a intervir de forma útil. Embora mantenha todo o interesse, a verdade é que este segundo volume repete temas, algo que sublinha o problema maior do desenho: o traço caricatural, potenciado pela visão infantil, torna difícil não encarar a obra (também) enquanto caricatura.

Por fim, o imenso sul dos Estados Unidos de onde é natural o argumentista Jason Aaron, é retratado na série “Southern Bastards” e em “Má Raça” (G. Floy Studio), como um agregar de espaços minúsculos (físicos e mentais), onde a religião, o futebol americano, as armas e uma autoridade paternalista (entendidos enquanto diferentes formas de poder) são fatores identitários. Dotadas de desenhos apropriadamente diretos e “sujos”, nestas obras a noção de “família” tem mais a ver com um comungar de espaço e filosofia, e menos com relações de sangue. Pais e filhos (quase sempre no masculino) repisam dinâmicas violentas canónicas, e o talento de Aaron está no modo como cria interesse gerindo o óbvio. Se “Má Raça” é muito previsível, “Southern Bastards” tem o grande mérito de contextualizar de maneira credível o modo como certas tendências se reproduzem, humanizando no segundo volume o que no primeiro parecia arbitrário e abjeto.

Tal como Riad Sattouf, Jason Aaron é uma espécie de “arrependido” convicto, ambos olhando de fora para mundos que renegaram (por excelentes motivos). E estes olhares não devem servir, nem para ridicularizar com base na incompreensão, nem para aceitar acriticamente com base na tolerância. Mas para algo que ainda não fomos capazes de articular; porque a complexidade, por definição, não é simples. Se o mundo onde viveu Sattouf está subjacente a crises na Europa, o mundo onde nascem as histórias de Aaron facilitou a eleição de Donald Trump. Mundos onde os conflitos elaborados de “Saga” parecem quase utópicos. Brian K. Vaughan será talvez um otimista, mas, diriam Sattouf e Aaron, não viveu o que eles viveram. Talvez só criando (semi)ficções poderemos abordar realisticamente os verdadeiros problemas.


 
Saga 4 e 5. Argumento de Brian K. Vaughan, desenhos de Fiona Staples. G. Floy Studio. 150 pp., 11 Euros.
O árabe do futuro 2 (Ser jovem no Médio Oriente, 1984-1985). Argumento e desenhos de Riad Sattouf. Teorema. 160 pp., 19,90 Euros.
Má Raça (Men of Wrath). Argumento de Jason Aaron, desenhos de Ron Garney. G. Floy Studio. 136 pp., 11 Euros.
Southern Bastards vol 1 e 2. Argumento de Jason Aaron, desenhos de Jason LaTour. G. Floy Studio. 120 pp., 10 Euros.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

DIVINDADE


Uma das obras mais importantes dos últimos tempos é a monumental edição de “Miracleman” (G.Floy Studio), que inclui o material escrito para a revitalização da personagem por Alan Moore (não bem uma edição integral). O editor José de Freitas afirma que esta é a melhor BD de super-heróis que os fãs nunca leram. Porquê? No que diz respeito à primeira parte da afirmação, porque 1982 marca o início do olhar único de Moore, com uma pergunta muito simples: como enquadrar com alguma profundidade personagens ridículas e simplistas na complexidade de um mundo real? E que consequências teria a presença de criaturas idealizadas pelo, abundantemente citado, Nietzsche?

Criada em 1954 por Mick Anglo como Marvelman (o nome viria a ser trocado para evitar confusões com a editora Marvel), Miracleman era na verdade uma cópia britânica descarada de Captain Marvel (1939), com poderes dados por uma entidade mística, uma palavra mágica que transformava um alter ego banal num super-herói, e uma “família” de parceiros na luta teatral contra um Mal estereotipado. Mas Captain Marvel cessara publicação em 1953, acusado de copiar Superman. Estas confusões quase que prenunciam o percurso acidentado deste trabalho, e uma das razões por não ser mais divulgado, justificando a segunda parte da afirmação do editor. Na verdade, o autor aborreceu-se tanto com questões de direitos que nesta edição surgem apenas os nomes dos vários desenhadores (destaque para Alan Davis, Garry Leach e John Totleben), sendo o argumentista identificado como “O Escritor Original”. Terão de acreditar que esta é mesmo uma das obras marcantes de Alan Moore, embora existam também fragilidades evidentes.
O melhor deste “novo” “Miracleman” são os murros no estômago, que se sucedem no início da série. A “ressurreição” da personagem “em tempo real” após décadas de esquecimento (o original acabara em 1963) é vista através dos olhares incrédulos, quer do seu alter-ego de meia idade Mike Moran, quer do próprio Miracleman. E não, não são a mesma pessoa, como o nascimento dramático (a vários níveis) de uma criança com superpoderes (Mike é estéril, Miracleman não), irá demonstrar, postulando-se um salto evolutivo quase divino na humanidade. O efeito devastador deste “simples” evento na vida familiar de Moran e da sua esposa (e no mundo), é um dos pontos altos de “Miracleman”; tal como a noção de que o (super)poder (super)corrompe, na magnífica recriação de Kid Miracleman (o “assistente júnior” do Miracleman original), que se transforma na Némesis luciferiana do protagonista. Quanto ao mundo ingénuo das BDs de 1950, Moore transforma-o numa narrativa de enganos e realidade virtual, parte de um plano militar secreto para transformar tecnologia alienígena em supersoldados, sem perder o controlo destas novas armas inteligentes. Citando a Guerra Fria, esta matriz para contextualizar a instrumentalização de super-heróis é hoje banal, e a culpa é de Moore.


Mais para o fim há alguma desagregação narrativa, como se, após ter desconstruído o universo inicial com uma lógica de bola de demolição, Moore hesitasse no caminho a seguir. Se a introdução dos cósmicos “Warpsmiths” parece trocar um ridículo nas obras de super-heróis por outro, é muito interessante ver como se esboçam conceitos que o autor expandiria mais tarde em obras como “Promethea” (1999-2005), “Lost Girls” (2006) ou a sua adaptação de “Swamp Thing” (1984-87, onde a premissa sobre o alter-ego é semelhante). Entre a ficção-científica, o misticismo esotérico, ou até alguma verborreia intelectualizante, o final deste “Miracleman” mostra o óbvio: desconstruir é sempre mais “simples” do que construir. E se o “fim do mundo tal como o conhecemos” prenuncia já o final, mais decisivo na sua negra incerteza, de “Watchmen”, neste estimulante “Miracleman” Alan Moore contenta-se em arranjar um enredo que permita aos deuses caminhar sobre a Terra. Espalhando, como sempre, medo e dúvida com a sua terrível benevolência.

Miracleman. Argumento do “Escritor Original” (Alan Moore), desenhos de vários autores. G. Floy Studio. 384 pp., 25 Euros

SEXO


Usar o sexo enquanto tema nunca é linear. Até porque em banda desenhada há a possibilidade de o desenho poder atrapalhar, deixando poucas alternativas de registo que não o clínico ou o erótico-pornográfico, sobretudo o segundo. É o que tende a suceder com autores que privilegiam um realismo sensual, como os italianos Milo Manara ou Paolo Eleuteri Serpieri, em especial quando os argumentos não controlam bem esse fator, ou parecem meros veículos para o realçar. Um bom exemplo é “Druuna”, série de Serpieri retomada recentemente em Portugal pela Arte de Autor com “Anima”. Aqui o excelente desenho tende a esgotar-se em si mesmo, apesar de o facto de “Anima” ser um livro mudo (e descomplexado na sua simplicidade) lhe dar algum interesse formal. Mas mais raro do que introduzir elementos sensuais/sexuais numa obra, é falar abertamente sobre sexo, em vários dos seus múltiplos aspetos. É o que sucede na série “Criminosos do sexo”, uma bela iniciativa da Devir, com argumento do norte-americano Matt Fraction e desenhos do canadiano Chip Zdarsky.

Fundamental nesta obra é o trabalho de Fraction, extremamente hábil a cobrir diferentes tipos de questões relacionadas com o tema (prazer, aventura, amor, vergonha, ciúme, manipulação, mistério, repressão, culpa, preferências) utilizando uma estratégia que passa por misturar experiências concretas reconhecíveis, com doses de tragédia e humor que não deixam a história derrapar muito por causa do seu ponto de partida. Porque falta dizer que esta é uma série sobre sexo com matriz de super-heróis. Na verdade, ao escrever sobre “Criminosos do sexo” fica-se com a sensação clara que qualquer descrição não lhe vai fazer justiça, e pode afastar alguns leitores. Desde logo a premissa, que tenderá a parecer a de um mau filme erótico. Esta é uma série protagonizada por diferentes tipos de indivíduos, cada um banal à sua maneira, que têm como “superpoder” a capacidade de parar o tempo cada vez que têm um orgasmo. Durante curtos instantes podem deslocar-se numa realidade suspensa (a “calmaria”), mexer em objetos, roubar bancos, interagir com os seus concidadãos que não sabem estar paralisados. A história inicia-se quando os dois protagonistas se encontram, descobrindo uma capacidade partilhada que achavam única, e começam a estimular-se mutuamente para potenciar o seu uso, numa das muitas aproximações que Fraction faz às caraterísticas evolutivas de uma relação. Em paralelo trocam histórias de descoberta sexual desde a infância-adolescência, que não estariam deslocadas numa BD muito séria sobre o modo quase milagroso como a maioria das pessoas parece equilibrada apesar das suas experiências a este nível. Claro que, sendo um trabalho de Fraction (veja-se “Hawkeye”) a profundidade anda sempre de braço dado com o humor desbragado  “non-sense”, e rapidamente os protagonistas se vêm ameaçados por uma espécie de “polícia do orgasmo”, que procura evitar que o seu poder seja abusado, que “calmaria” rime com “anarquia”. Esta mudança constante de registos só é possível graças ao desenho de Chip Zdarsky, porque suficientemente realista e vibrante (particularmente no uso da cor) para gerir as situações humorísticas sem cair na caricatura, e as situações realistas e fantásticas sem deixar cair a credibilidade.
Com tudo para ser uma amálgama confusa de arrogância, superficialidade e, pior que tudo, mau gosto, “Criminosos do sexo” tem um pouco disso tudo, mas não exatamente como seria de esperar. E é uma das obras mais surpreendentes e estimulantes dos últimos tempos.


Criminosos do sexo, volume 1: Um truque estranho. Argumento de Matt Fraction, desenhos de Chip Zdarsky. Devir. 140 pp., 15 Euros.