Uma das obras mais
importantes dos últimos tempos é a monumental edição de “Miracleman” (G.Floy
Studio), que inclui o material escrito para a revitalização da personagem por
Alan Moore (não bem uma edição integral). O editor José de Freitas afirma que
esta é a melhor BD de super-heróis que os fãs nunca leram. Porquê? No que diz
respeito à primeira parte da afirmação, porque 1982 marca o início do olhar
único de Moore, com uma pergunta muito simples: como enquadrar com alguma
profundidade personagens ridículas e simplistas na complexidade de um mundo
real? E que consequências teria a presença de criaturas idealizadas pelo,
abundantemente citado, Nietzsche?
Criada em 1954 por Mick
Anglo como Marvelman (o nome viria a ser trocado para evitar confusões com a
editora Marvel), Miracleman era na verdade uma cópia britânica descarada de
Captain Marvel (1939), com poderes dados por uma entidade mística, uma palavra
mágica que transformava um alter ego banal num super-herói, e uma “família” de
parceiros na luta teatral contra um Mal estereotipado. Mas Captain Marvel
cessara publicação em 1953, acusado de copiar Superman. Estas confusões quase
que prenunciam o percurso acidentado deste trabalho, e uma das razões por não
ser mais divulgado, justificando a segunda parte da afirmação do editor. Na
verdade, o autor aborreceu-se tanto com questões de direitos que nesta edição
surgem apenas os nomes dos vários desenhadores (destaque para Alan Davis, Garry
Leach e John Totleben), sendo o argumentista identificado como “O Escritor
Original”. Terão de acreditar que esta é mesmo uma das obras marcantes
de Alan Moore, embora existam também fragilidades evidentes.
O melhor deste “novo” “Miracleman”
são os murros no estômago, que se sucedem no início da série. A “ressurreição”
da personagem “em tempo real” após décadas de esquecimento (o original acabara
em 1963) é vista através dos olhares incrédulos, quer do seu alter-ego de meia
idade Mike Moran, quer do próprio Miracleman. E não, não são a mesma pessoa,
como o nascimento dramático (a vários níveis) de uma criança com superpoderes
(Mike é estéril, Miracleman não), irá demonstrar, postulando-se um salto
evolutivo quase divino na humanidade. O efeito devastador deste “simples”
evento na vida familiar de Moran e da sua esposa (e no mundo), é um dos pontos
altos de “Miracleman”; tal como a noção de que o (super)poder (super)corrompe,
na magnífica recriação de Kid Miracleman (o “assistente júnior” do Miracleman
original), que se transforma na Némesis luciferiana do protagonista. Quanto ao
mundo ingénuo das BDs de 1950, Moore transforma-o numa narrativa de enganos e realidade
virtual, parte de um plano militar secreto para transformar tecnologia
alienígena em supersoldados, sem perder o controlo destas novas armas
inteligentes. Citando a Guerra Fria, esta matriz para contextualizar a
instrumentalização de super-heróis é hoje banal, e a culpa é de Moore.
Mais para o fim há
alguma desagregação narrativa, como se, após ter desconstruído o universo
inicial com uma lógica de bola de demolição, Moore hesitasse no caminho a
seguir. Se a introdução dos cósmicos “Warpsmiths” parece trocar um ridículo nas
obras de super-heróis por outro, é muito interessante ver como se esboçam
conceitos que o autor expandiria mais tarde em obras como “Promethea”
(1999-2005), “Lost Girls” (2006) ou a sua adaptação de “Swamp Thing” (1984-87,
onde a premissa sobre o alter-ego é semelhante). Entre a ficção-científica, o
misticismo esotérico, ou até alguma verborreia intelectualizante, o final deste
“Miracleman” mostra o óbvio: desconstruir é sempre mais “simples” do que
construir. E se o “fim do mundo tal como o conhecemos” prenuncia já o final,
mais decisivo na sua negra incerteza, de “Watchmen”, neste estimulante
“Miracleman” Alan Moore contenta-se em arranjar um enredo que permita aos
deuses caminhar sobre a Terra. Espalhando, como sempre, medo e dúvida com a sua
terrível benevolência.
Miracleman.
Argumento do “Escritor Original” (Alan Moore), desenhos de vários autores. G.
Floy Studio. 384 pp., 25 Euros
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