domingo, 12 de fevereiro de 2017

DIVINDADE


Uma das obras mais importantes dos últimos tempos é a monumental edição de “Miracleman” (G.Floy Studio), que inclui o material escrito para a revitalização da personagem por Alan Moore (não bem uma edição integral). O editor José de Freitas afirma que esta é a melhor BD de super-heróis que os fãs nunca leram. Porquê? No que diz respeito à primeira parte da afirmação, porque 1982 marca o início do olhar único de Moore, com uma pergunta muito simples: como enquadrar com alguma profundidade personagens ridículas e simplistas na complexidade de um mundo real? E que consequências teria a presença de criaturas idealizadas pelo, abundantemente citado, Nietzsche?

Criada em 1954 por Mick Anglo como Marvelman (o nome viria a ser trocado para evitar confusões com a editora Marvel), Miracleman era na verdade uma cópia britânica descarada de Captain Marvel (1939), com poderes dados por uma entidade mística, uma palavra mágica que transformava um alter ego banal num super-herói, e uma “família” de parceiros na luta teatral contra um Mal estereotipado. Mas Captain Marvel cessara publicação em 1953, acusado de copiar Superman. Estas confusões quase que prenunciam o percurso acidentado deste trabalho, e uma das razões por não ser mais divulgado, justificando a segunda parte da afirmação do editor. Na verdade, o autor aborreceu-se tanto com questões de direitos que nesta edição surgem apenas os nomes dos vários desenhadores (destaque para Alan Davis, Garry Leach e John Totleben), sendo o argumentista identificado como “O Escritor Original”. Terão de acreditar que esta é mesmo uma das obras marcantes de Alan Moore, embora existam também fragilidades evidentes.
O melhor deste “novo” “Miracleman” são os murros no estômago, que se sucedem no início da série. A “ressurreição” da personagem “em tempo real” após décadas de esquecimento (o original acabara em 1963) é vista através dos olhares incrédulos, quer do seu alter-ego de meia idade Mike Moran, quer do próprio Miracleman. E não, não são a mesma pessoa, como o nascimento dramático (a vários níveis) de uma criança com superpoderes (Mike é estéril, Miracleman não), irá demonstrar, postulando-se um salto evolutivo quase divino na humanidade. O efeito devastador deste “simples” evento na vida familiar de Moran e da sua esposa (e no mundo), é um dos pontos altos de “Miracleman”; tal como a noção de que o (super)poder (super)corrompe, na magnífica recriação de Kid Miracleman (o “assistente júnior” do Miracleman original), que se transforma na Némesis luciferiana do protagonista. Quanto ao mundo ingénuo das BDs de 1950, Moore transforma-o numa narrativa de enganos e realidade virtual, parte de um plano militar secreto para transformar tecnologia alienígena em supersoldados, sem perder o controlo destas novas armas inteligentes. Citando a Guerra Fria, esta matriz para contextualizar a instrumentalização de super-heróis é hoje banal, e a culpa é de Moore.


Mais para o fim há alguma desagregação narrativa, como se, após ter desconstruído o universo inicial com uma lógica de bola de demolição, Moore hesitasse no caminho a seguir. Se a introdução dos cósmicos “Warpsmiths” parece trocar um ridículo nas obras de super-heróis por outro, é muito interessante ver como se esboçam conceitos que o autor expandiria mais tarde em obras como “Promethea” (1999-2005), “Lost Girls” (2006) ou a sua adaptação de “Swamp Thing” (1984-87, onde a premissa sobre o alter-ego é semelhante). Entre a ficção-científica, o misticismo esotérico, ou até alguma verborreia intelectualizante, o final deste “Miracleman” mostra o óbvio: desconstruir é sempre mais “simples” do que construir. E se o “fim do mundo tal como o conhecemos” prenuncia já o final, mais decisivo na sua negra incerteza, de “Watchmen”, neste estimulante “Miracleman” Alan Moore contenta-se em arranjar um enredo que permita aos deuses caminhar sobre a Terra. Espalhando, como sempre, medo e dúvida com a sua terrível benevolência.

Miracleman. Argumento do “Escritor Original” (Alan Moore), desenhos de vários autores. G. Floy Studio. 384 pp., 25 Euros

Sem comentários:

Enviar um comentário