segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Apartheid

Colectânea de trabalhos do autor sul-africano branco Anton Kannemeyer (curtas bandas desenhadas, ilustrações, cartoons, pinturas) “Papá em África”  volta a sublinhar a Mmmnnnrrrg/Chili Com Carne como uma das melhores editoras a trabalhar em Portugal, porque publica mais livros que quem se interessa por banda desenhada tem mesmo de conhecer. “Conhecer”, repito, não meramente “Adorar” ou “Detestar”.

Misto de denúncia, reflexão e provocação, o fascínio e poder de choque provocados por Kannemeyer não estão nas histórias realistas de natureza autobiográfica ou alegórica (embora seja excelente a que cita “Hulk”), mas no modo como o autor se apropria do grafismo reconhecível de Hergé no polémico “Tintin no Congo”, revisitando as posições paternalistas do livro de uma perspectiva pós-colonialista, e questionando as relações de poder na África do Sul durante o Apartheid e imediatamente a seguir. Embora estereótipos cruéis sejam igual e deprimentemente visíveis nos dois outros álbuns iniciais a preto e branco de Hergé, o anterior (“Tintin no País dos Sovietes”, 1930), e o seguinte (“Tintin na América”, 1932), no primeiro caso o álbum nunca foi redesenhado ou colorido (sugerindo que o autor o “deserdou”), enquanto o segundo fala de um país dominador e “bully” (de certa forma tornando-o mais “aceitável”?). É pois o racismo colonialista sobre um outro considerado inferior de “Tintin no Congo” (1931, versão a cores em 1946) que tende a concentrar as atenções.

Claro que pegar em algo icónico e questioná-lo subvertendo-o é hoje tão banal como o seu reverso (a desconstrução/homenagem), e Hergé já foi sujeito a vários exercícios deste género. Mas o microcosmos isolado que foi a África do Sul do Apartheid criou quadros referenciais únicos (veja-se, noutro contexto, o documentário de 2012 “Searching for Sugar Man”, sobre o músico Sixto Rodriguez), e Anton Kannemeyer destaca-se aqui pela violência com que faz chocar as diferentes realidades do seu país, usando de forma muito interessante um estilo ilustrativo que foi criado especificamente para ser “limpo” e “neutro”. Isto apesar de a natureza do livro, reunindo vários tipos de peças de diferentes épocas, o tornar desequilibrado enquanto objeto, um conjunto de instantes.


A questão em obras como esta é, não só distinguir o genuíno da pose, mas perceber se o papel de algo que se pretende funcione como consciência ou memória se esgota num mero cultivar de denúncia e diferença, apenas para provar que tais coisas podem existir. Garantindo ao mesmo tempo que nunca serão consequentes, por existirem segregadas em parcelas fáceis de classificar, digerir e  arquivar. Como é, apesar de tudo, este livro.
Quando refiro nas minhas aulas teorias erradas, perigosas e insultuosas da história da Ciência, que eram antes de aceitação quase unânime (incluindo questões de raça, género ou sexualidade), tento sempre evitar que os alunos se percam nas mensagens acessórias quase sempre subjacentes nos textos disponíveis (que tendem a contrastar um presente iluminado, com um passado feito de ignorâncias “óbvias”) para os focar no essencial. Que é isto: nunca podemos usar o passado para exonerar o presente; a preocupação deve sempre ser identificar (e, se possível, corrigir) o que estamos a fazer hoje que daqui a vinte anos (ou menos) será visto unanimemente como nós vemos agora erros de outras gerações. Embora cortar esta espiral histórica de injustiça pareça muito difícil. 

Até quando terá a África do Sul democrática de usar o Apartheid como panaceia justificativa para o que não consegue resolver? Ou o Brasil o colonialismo (e/ou a ditadura)? Ou Israel o Holocausto? Sem escamotear o que quer que seja, estas continuam a ser realidades difíceis demasiado úteis e convenientes, também porque muitas vezes servem para dar respostas fáceis. O importante de “Papá em África” é pois não deixar circunscritos os demónios que evoca.


Papá em África. Argumentos e desenhos de Anton Kannemeyer. Mmmnnnrrrg/Chili Com Carne. 64 pp., 15 Euros.


Argélia

Nas últimas décadas houve sempre em Portugal uma grande editora de banda desenhada franco-belga, antes a Meribérica, mais recentemente a ASA. No entanto, esta parece hoje resumir-se aos “grandes títulos” como os novos “Blake & Mortimer” ou “Lucky Luke”. Algo a que não será alheia a saída da responsável pela edição de BD Maria José Pereira para a Arcádia (chancela da Babel que se dedica à banda desenhada). Não é pois de estranhar a aposta desta última editora numa obra de um autor consagrado, “O estrangeiro” de Albert Camus, adaptado por Jacques Ferrandez (edição original Gallimard, 2013).

Nascido em 1955 na Argélia (tal como Camus) ao nível do argumento a obra de Ferrandez mistura livros com outros autores, incluindo adaptações de nomes tão diferentes como Daniel Pennac ou Marcel Pagnol, com trabalhos próprios focando sobretudo a história colonial da Argélia, como a premiada série “Carnets d’Orient”. O interesse em Camus é pois natural, e Ferrandez já antes adaptara a história curta “L’Hôte” (2009). Do ponto de vista do desenho o ambiente luminoso de ambos os lados do Mediterrâneo transformam o traço clássico do autor, tornando-o imediatamente reconhecível, quer em banda desenhada, quer nos seus cadernos de viagem. Em “O estrangeiro” a cor em registo de aguarela é utilizada de forma muito interessante, oscilando entre o diáfano e o opressivo, e mantendo um tom de permanente distanciamento, quer do leitor em relação ao protagonista, quer deste em termos de todo o meio envolvente, de Argel ao deserto.

A história do narrador-protagonista Meurseault é na verdade um julgamento em duas partes: o julgamento concreto do tribunal que o condena pelo assassinato de um cidadão árabe desencadeado pelo comportamento do seu vago amigo de moral duvidosa Sintès; e o julgamento acessório de uma sociedade que critica o seu comportamento frio (não só, mas sobretudo) quanto à morte da mãe e ao respetivo funeral, e que terá um papel fundamental na sua condenação à morte. O distanciamento quase autista de Meurseault em relação ao que o rodeia é ainda visível na sua relação (pouco empenhada) com Marie, na falta de ambições profissionais. E é muito curioso como a sua emotividade apenas se manifesta decisivamente quando a sua falta é questionada. “O estrangeiro” é um retrato perturbador de um homem que deambula aparentemente sem ligações pelo mundo; mas o seu comportamento não-canónico será razão suficiente para justificar a pena a que é condenado? Na verdade Meurseault é condenado por ter disparado tiros a mais, que põem em causa a tese de legítima defesa, ou pela falta de trato nas relações sociais? Por não se comportar como “é suposto”?

Nesta versão de “O estrangeiro” há um problema comum em adaptações: o excesso de respeito pelo original, que faz com que o uso de uma outra forma de linguagem se fique muitas vezes pelo funcional, e não consiga transmitir bem as indecisões aparentes do texto (como na cena do tiroteio). No entanto Ferrandez também utiliza o desenho para sublinhar outros aspetos, nomeadamente relativos às personagens “Árabes” (que Camus nunca nomeia), transformando-as, de peça coletiva do absurdo que rodeia o protagonista, em indivíduos, chamando a atenção para o contexto colonial subjacente. Meurseault pode ser um estranho para o sistema sócio-judiciário que o avalia, mas esse sistema é também estranho na Argélia. O “Outro” permanece do outro lado da rua, no outro extremo das dunas, ao canto da sala de audiências.

“O estrangeiro” abre o apetite para o que poderão ser futuras apostas da Arcádia em BD. Tal como na banda desenhada “de autor” ou norte-americana seria interessante haver alguma concorrência no âmbito franco-belga.


O estrangeiro. Argumento e desenhos de Jacques Ferrandez a partir da obra homónima de Albert Camus. Arcádia. 140 pp., 22,50 Euros.


TEX

Algumas personagens, autores ou locais tornam-se, por diferentes motivos, figuras de culto. A admiração profunda de leitores pode ser sinal de um universo fascinante, ou de provincianismo “geek”. Ou algo de intermédio. Depende, como sempre, da perspectiva de quem aborda cada fenómeno, seja visitar a Dublin de Joyce, as convenções de “Trekkies” (fãs de “Star Trek”) ou procurar sinais de Corto Maltese em Veneza. Mas em banda desenhada dificilmente se encontra um fenómeno como Tex Willer.

Criado pelo argumentista Gian Luigi Bonelli e pelo desenhador Aurelio Galleppini na Itália do pós-guerra (1948) à primeira vista pouco distingue “Tex” de outros registos em que autores europeus recriaram/reinterpretaram o Velho Oeste norte-americano, como antes o escritor alemão Karl May, como mais tarde os também italianos filmes de “Western Spaghetti”. Mesmo em banda desenhada os exemplos abundam, como “Jerry Spring” (criado por Jijé em 1954) ou “Blueberry” (Charlier/Giraud, 1963). “Tex” tem, no entanto, um apelo que transcende o mero fascínio pela iconografia do “Western” (Gary Cooper terá inspirado a personagem) e a sua clássica dicotomia Bem/Mal. Desde logo o volume de histórias, patente ainda hoje nas versões brasileiras em qualquer (sobrevivente) banca nacional de jornais e revistas. Imitando a estratégia de produção em massa dos super-heróis as BDs de “Tex” foram/são criadas por vários autores. No entanto há uma manutenção de linha editorial impressionante ao nível do desenho e do argumento. “Tex” pode ser reajustado levemente, mas nunca é reinventado, como o foram quase todos os super-heróis, a essência mantém-se constante. Claro que há autores mais talentosos do que outros, mas “Tex” não desce abaixo de um patamar mínimo de qualidade; embora esse patamar (histórias muito repetitivas e previsíveis, e um desenho meramente funcional) apenas seja aceitável para os convertidos que retribuem a fidelidade, e pouco interesse a um leitor de banda desenhada com algum critério.


Então porquê falar de “Tex”? Porque há histórias que transcendem em muito a média. Aproveitando a popularidade da personagem em Portugal a Polvo recuperou uma delas, “Patagónia”. Com um desenho muito elegante e detalhado de Pasquale Frisenda, no registo realista habitual em “Tex”, o argumento de Mauro Boselli é de facto muito interessante. Primeiro, desloca a personagem para as pampas, fazendo um “Western” mais a sul, revisitando situações familiares numa nova geografia. Depois identifica e trabalha as contradições do universo. É que, se “Tex” é um justiceiro “freelancer” como convém a qualquer herói, há uma vertente humanista em relação ao que estava em jogo na época, refletida no facto de a personagem ser igualmente “Águia da Noite”, chefe honorário dos Navajos. Ou seja, “Tex” é simultaneamente “cowboy” e índio. E sabe-se qual foi o resultado desse embate, na Patagónia como no Arizona, mesmo que não transpareça sempre na ficção. Boselli não foge ao posicionamento contraditório, por vezes ingénuo, de “Tex”. 

Para além de personagens complexas, o tom de “Patagónia” é de um realismo cruel, em que a boa vontade e a razoabilidade no diálogo entre culturas esbarram na ambição (ou no “realismo”?). O desmoronar gradual da missão justiceira num genocídio em que o herói, apesar de cumprir tudo o que dele se espera, apenas limita o inevitável é uma construção inteligente na sua inexorabilidade, e o desenho vibrante de Frisenda sublinha, com alguma ironia, a desilusão inerente. Celebrando “Tex” sem o trair, mas também sem negar a História em que se insere, “Patagónia” é um complexo “Western” atípico, que se recomenda.

Patagónia. Argumento de Mauro Boselli, desenhos de Pasquale Frisenda. Polvo. 228 pp., 17 Euros.