domingo, 9 de setembro de 2018

MENTAL


Os labirintos da saúde mental são terreno de discussão fértil (e difícil). Onde começa a loucura e acaba o génio, onde acabam caraterísticas individualizadoras e começam comportamentos destrutivos. Como definir a fronteira entre uma “simples” depressão e patologias neuropsiquiátricas; de que modo se devem diagnosticar e abordar terapeuticamente. E qual o papel de tudo isto para a criatividade. Dois livros muito interessantes editados pela Polvo abordam, de maneira distinta, este tema.
Escrito e desenhado por André Diniz, um excelente autor brasileiro radicado em Portugal. “Malditos amigos” segue, num tom entre o intimista e o analítico, o atormentado percurso de Ramsés, antigo autor de fanzines e atual tatuador; cuja vida pessoal e profissional parece presa por arames que, em vez de se consolidarem, quebram e enovelam-se. Com tudo para ser bem-sucedido o protagonista esgota-se (e aos que o rodeiam) em insatisfações depressivas, acopladas a um comportamento agressivo e vazios na memória, que o fazem duvidar de si mesmo, a todos os níveis. 

O argumento assume um desassombro quase aflitivo, que nos liga a Ramsés apesar de nunca parecermos ter toda a informação necessária para decifrar as suas lutas interiores. Do ponto de vista gráfico as obras de Diniz tendem a ganhar quando interpretadas por outros autores, como sucede no pungente retrato sobre violência e tráfico de droga nas favelas do Rio de Janeiro que é “Olimpo tropical” (Polvo, desenhos de Laudo Ferreira). O traço grosso e caricatural de Diniz tem limitações em termos de recursos e alcance (a adaptação de “O idiota” de Dostoievski é um exemplo claro), mas em “Malditos amigos” é essa mesma fragilidade simples e eficaz que concede um sentido de familiaridade e proximidade com o protagonista, marcado por sombras e pelo (literal) fantasma depressivo que o vai assombrando. Sobretudo sente-se que Diniz seria o único desenhador possível para este projeto, que se intui muito pessoal (como “O idiota”, curiosamente), e que vale a pena conhecer.

O mesmo se pode dizer de “Os regressos” no qual o crítico e argumentista Pedro Moura prolonga a sua colaboração com a desenhadora Marta Teives, desta feita numa obra mais longa do que as (excelentes) histórias curtas anteriores. Tal como nesses contos, temos uma protagonista em suspenso: apesar de não ter pruridos em se identificar como ex-“maluca”, Madalena surge-nos presa de um passado feito de memórias (nem sempre felizes) cuja lenta recuperação se inicia com o regresso ao local de infância (um dos regressos do título). Entre estranheza, loucura, alguma violência implícita, diagnósticos, psicofármacos e a (re)criação (ou redescoberta?) de um rico mundo de fantasia, a vida anterior e atual de Madalena espreita o leitor. Sugerida, mais do que contada, por entre as pontas do argumento e no desenho notável de Marta Teives, muito eficaz nos diversos cambiantes, utilizando um registo de “realismo flexível”. A contracapa avisa que nunca se deve regressar a um sítio onde já se foi feliz, mas sente-se que ao ler “Os regressos”, ou “Malditos amigos”, não temos informação suficiente para apreciar devidamente as espirais (em sentidos opostos) dos protagonistas. A questão aqui é sempre a mesma: com uma narração mais expositiva corre-se o risco de encadear com o óbvio, procurando uma subtileza que se quer orgânica (clara na relação texto-desenho de Moura e Teives) ou múltiplos ângulos/aspetos (no caso de Diniz) pode não se conseguir a empatia necessária para apreciar todos os sacrifícios das personagens, e os seus respetivos desenlaces. Mas aguardam-se com expetativa projetos futuros destes excelentes autores.



Malditos amigos. Argumento e desenhos de André Diniz. Polvo. 200 pp., 12 Euros.
Os regressos. Argumento de Pedro Moura, desenhos de Marta Teives. Polvo. 72 pp., 10 Euros.