quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Um equívoco azul, em BD e cinema: "O azul é uma cor quente" e "La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2"

A propósito da edição portuguesa do livro, pela Arte de Autor

Quando um filme ganha a Palme d’Or no Festival de Cannes de 2013, e se descobre que é baseado numa banda desenhada, fica-se com natural curiosidade de ver um e ler a outra, sem ligar muito ao ruído que parece envolver ambos. Mas... e se o ruído, por não ser apenas exatamente isso, for mesmo o que há de mais interessante a discutir?
A relação entre banda desenhada e cinema nunca foi muito pacífica. Do lado da BD, bem entendido. Sobretudo por o percurso de ambos, após uma origem formal moderna quase simultânea, ter conduzido a uma atualidade onde a BD continua a buscar o reconhecimento que para o cinema é um dado adquirido. Por exemplo, se ainda se levantam questões quando à fidelidade na adaptação para cinema de obras literárias marcantes, no caso do material de partida ser uma banda desenhada, não só por vezes isso nem sequer é evidente, como não se ouvem grandes protestos quando surgem alterações significativas na transição.
A não ser que aconteça algo como o que sucedeu com a BD Le Bleu est une couleur chaude, da francesa Julie Maroh (Glénat 2010), cuja adaptação para cinema resultou em La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2, realizado por Abdellatif Kechiche, (Palme d’Or Cannes 2013, com vários prémios para realizador e para as duas atrizes principais).
Desde já um resumo de opinião formada após múltiplas leituras/visualizações: sendo interessantes, nem um nem outro são completamente conseguidos no modo como (ab)usam mecanismos narrativos repetitivos que se tornam desinteressantes, e no caso específico do filme de Kechiche, desonestos. O (à partida inexplicável) prémio de Cannes e a valorização subsequente da BD (bem como a polémica que rodeou um e outra) explicam-se, não só por abordarem temas “fraturantes”, mas porque, parecendo ser sobre exatamente a mesma coisa, são sobre coisas diferentes, usando as mesmas personagens e cenários (e mesmo alguns momentos-chave). Trata-se, no fundo, de uma questão da Reflexão e da Mensagem (com maiúsculas) que se querem transmitir. E isso é de facto interessante.
Não que Abdellatif Kechiche esconda o seu propósito, desde logo por utilizar um título de todo distinto da BD, e pelo modo como chega a esse título. O nome do filme justifica-se em duas partes. Adèle é o nome de uma das duas protagonistas, que se chama Clementine na BD. O facto de ser a única personagem que muda de nome na adaptação (que não o é), e ter “ganho” precisamente o nome da atriz que representa o papel (Adèle Exarchopoulos) parecem demonstrar alguma fusão obsessiva entre personagem/atriz por parte do realizador, algo que transpareceu de várias análises ao filme. No fundo um pormenor para quem se quiser deixar titilar, mas que tem consequências. Seja como for, a segunda protagonista é sempre Emma na BD ou no cinema (interpretada por Léa Seydoux). Quanto à referência aos Capítulos 1 e 2 da vida de Adèle, convém explicar o que é (na BD) o Capítulo 3. Desde já chamo a atenção para o “spoiler alert”.

No original Le Bleu est une couleur chaude, é uma história de amor e descoberta (e negação) da (homo)sexualidade com claros reflexos autobiográficos, e alguma afinidade com o trabalho de Alison Bechdel, utilizando um registo que varia entre o documentário urbano e o drama. As opções de Maroh são bastante lineares, desde as diversas situações e personagens que cumprem a função de retratar as várias possibilidades necessárias para a narrativa à medida que as protagonistas consolidam a sua ligação (repulsa, afastamento, preconceito, aceitação, amor, relutância; diferentes relações com amigos, familiares e colegas), à utilização das manifestações contra a política educativa do governo francês, mostrando, não só as várias dimensões da evolução das personagens, mas também como os revolucionários se podem juntar ou afastar consoante as causas. Do ponto de vista gráfico há a mesma legibilidade, fora alguns apontamentos muito interessantes em que situações tensas ou temporalmente longas são resolvidas através de curtas sequências sem palavras; ou o óbvio símbolo de afirmação e diferença que é o cabelo azul de Emma. O objetivo é fazer passar uma mensagem de libertação e tolerância o mais clara possível.
História centrada nas duas protagonistas, a artista gráfica Emma é o fulcro/pilar à volta do qual evolui a mais jovem estudante de liceu Clementine/Adèle. Não que Emma não tenha dúvidas e temores (profissionais e pessoais), mas o leitor nunca hesita quanto à sua maturação como pessoa; evidente quando perde com naturalidade o cabelo azul, por já não precisar dele para se definir. Clementine/Adèle é outra história.
Na BD o Capítulo 1 é pois sobre o encontro das protagonistas, e de como a descoberta de Emma é fundamental no assumir gradual de Clementine/Adèle enquanto lésbica (e pessoa). O Capítulo 2 desenvolve a ruptura na relação entre ambas, essencialmente devido às dúvidas identitárias e imaturidade de Clementine/Adèle. No Capítulo 3 há um breve reencontro, onde feridas são curadas e o amor triunfa. Breve, porque Clementine/Adèle morre de doença cardíaca, que ataca quando faz amor com Emma numa praia, imersas ambas numa felicidade adiada, finalmente redescoberta. Sim, isso mesmo, mais penosamente melodramático e telenovelístico (até por ser genuinamente assumido) seria difícil... Desse ponto de vista não se pode censurar Kechiche por ter dispensado este Capítulo.
A parte de leão da BD (o Capítulo 1) é contada em “flashback” por Clementine/Adèle, através dos seus diários, que Emma lê após a sua morte, numa (auto)reflexão temperada pela distância. E é aí, na descoberta do amor, no lento assumir da homossexualidade, e em todas as dificuldades em gerir ou ajustar as relações pessoais, sociais e familiares em causa, que Le Bleu est une couleur chaude, se torna uma banda desenhada eficaz, honesta, envolvente, e, fora alguns exageros e pormenores forçados, terna. É sobretudo relevante o modo como Julie Maroh consegue traduzir coragem ancorada em pequenos gestos quotidianos (marcados também por decepção e crueldade), que são revolucionários precisamente por não o parecerem. Esta é (também) uma BD claramente militante, que usa a experiência pessoal para um retrato global (como o notável Stuck Rubber Baby de Howard Cruse), e não há, nem que escamotear esse facto, nem que diminuir a obra por causa disso. Em banda desenhada não há muitos autores mais militantes que Joe Sacco, por exemplo. Fica ao critério do leitor se a morte demasiado encenada de Clementine/Adèle na BD é entendida por Julie Maroh enquanto “castigo” por não ter sabido assumir até ao fim, e em permanência, o amor da sua vida, e, por inerência, não se ter assumido a si mesma.
Curiosamente o filme  La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2 segue mesmo de muito perto a BD, se excluirmos a já referida não inclusão do Capítulo 3. Mas a mensagem é aqui completamente distinta. Se a relação entre as protagonistas é central (e voltaremos a isso), o que está em causa no seu desmoronar é mais uma visão de atitude perante a vida que não tem necessariamente a ver sobretudo com orientação sexual (como na BD), mas antes com outras escolhas. No filme a ruptura entre Emma e Clementine/Adèle tem lugar porque o seu crescimento bifurcou: a primeira, Artista, existe num estádio de desenvolvimento superior, enquanto a segunda, professora/educadora infantil, tem uma existência “banal”. Não é claro (mas é de certo modo sugerido) se há aqui uma equivalência entre escolha sexual e profissional, mas a traição (heterossexual) de Clementine/Adèle surge, não só devido a inseguranças pessoais, mas por sentimento de marginalização. Algo que parece confirmar-se no final aberto do filme, quando Clementine/Adèle sai da “vernissage” da exposição que consagra Emma (sinalizando a impossibilidade de reconciliação), e é seguida por um jovem admirador. Um jovem que desistiu do sonho de ser ator (sendo de ascendência magrebina apenas lhe calhavam papéis de terrorista... um bom toque do argumento) para trabalhar numa imobiliária. Ou seja, desceu ao nível de Clementine/Adèle, a sua relação é possível. Emma está num outro patamar.
É fácil perceber portanto como se poderá ter achado que o filme trai o espírito da BD, valorizando elementos distintos, e não tanto a descoberta de relações pessoais e sexuais num determinado contexto sociocultural. Por exemplo, o filme Mosquita y Mari da realizadora chicana lésbica Aurora Guerrero (2012) está muito mais próximo de Le Bleu est une couleur chaude, porque há um investimento autobiográfico de ambas as criadoras, que querem mostrar as dificuldades acrescidas que tiveram para serem quem são num contexto o mais “normal” possível (sem complicar com outro tipo de reflexões), e que estão a tentar fazer Arte para quem as quer entender, não para quem quer glosar outros interesses usando as suas histórias como ponto de partida. No caso de Mosquita y Mari e Le Bleu est une couleur chaude, o objetivo maior é aplicar ficção para potenciar o que se pretende seja uma mistura de documentário/manifesto/guia.
Embora se deva sempre considerar a qualidade final de um objeto, seria ingénuo não considerar aqui uma outra (longa e complexa) temática. A que discute quem tem o “dever”, mas sobretudo o “direito” (entre aspas, a meu ver), de contar o quê sobre quem, algo que surge sempre com temas fraturantes, nomeadamente relacionados com a questão da Identidade (cultural, rácica, sexual). É uma questão importante, até por não ser assumida diretamente em muitas análises. Só para dar exemplos recentes que podem ter passado mais despercebidos: a abordagem da escravatura (e, mais globalmente, da relação entre negros e brancos) nos EUA levantou questões em Django Unchained de 2012 (Quentin Tarantino é branco) e mesmo em 12 Years a Slave de 2013 (Steve McQueen é negro, mas britânico); enquanto alguns claros viés encontrados noutras abordagens de temática mais contemporânea, como os filmes de 2013 The Butler (Lee Daniels) ou sobretudo Fruitvale Station (Ryan Coogler), não tiveram tanta atenção dos mesmos quadrantes (os dois últimos realizadores são negros norte-americanos).
Não que a temática em volta do sexo e da identidade sexual estejam ausentes de La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2, muito pelo contrário. Na verdade as (muito) longas cenas de sexo entre as protagonistas são conhecidas. Quanto a isso, três coisas. As cenas de sexo existem na BD, em versão curta. No filme são gratuitas, mas encenadas de modo a parecerem transgressoras (Kechiche pode ter tirado inspiração de Bruno Dumont, um realizador muito interessante, mas aparentemente impune a esse nível). São, sobretudo, exageradamente longas, e a sua duração não acrescenta nada, a não ser testar os limites da paciência do espetador, como quaisquer outros excessos noutros filmes (violência, melodrama, etc.). Se reclamar (ou sair da sala, como sucedeu nalguns casos) vai parecer conservador, se aprovar não se livra da acusação de “voyeur”, uma acusação de resto feita a Kechiche, e percebe-se porquê. Como se percebe, depois de ver as cenas, o peso de uma alteração tão específica no nome de uma das protagonistas. Curiosamente as cenas de sexo até nem são onde se sente mais o olhar do realizador sobre a atriz Adèle Exarchopoulos. Por exemplo, a cena do treino de batuques com as crianças é até mais reveladora, por misturar a inocência aparente da situação com a ausência de Léa Seydoux.
Nestas coisas é sempre bom pensar em alternativas, e após sair do cinema não pude deixar de imaginar o que sucederia se as mesmíssimas cenas de sexo neste filme fossem protagonizadas por um casal heterossexual ou por um casal homossexual masculino. Ou ainda se o filme fosse realizado por uma mulher lésbica. Ou, por último, se as cenas fossem protagonizadas por dois atores convincentes que, independentemente no sexo, não encaixassem em quaisquer cânones de atratividade comummente aceites na indústria cinematográfica (e sociedade em geral). Não tenho grandes dúvidas que muitos dos mesmos críticos que elogiaram o filme o achariam gratuito; duvido seriamente que ganhasse prémios fora do circuito restrito de festivais LGBT, ou tivesse, no máximo, a atenção de Shortbus (de John Cameron Mitchell, 2006) ou do mais recente e muito curioso L’inconnu du Lac (de Alain Guiraudie, 2013). O que temos, de facto, é erotismo lésbico visto por um olhar masculino, o erotismo “transgressivo” mais aceitável de todos, basta ir a qualquer site pornográfico. La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2 transforma-se aqui numa decepção, o que minimiza o filme como um todo.
Realizador franco-tunisino Abdellatif Kechiche utiliza muito bem essa dualidade (e os diálogos entre culturas) para fazer, quer filmes excelentes a todos os níveis (La graine et le mulet, 2007), quer filmes mais interessantes na temática e intenção, do que na concretização (Vénus noire, 2010). La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2, pertence à segunda categoria, e é talvez o filme mais sobrevalorizado a que alguma vez assisti. No entanto, os resultados e interesses distintos que surgem a partir de tantos elementos comuns tornam o duo Le Bleu est une couleur chaude/La vie d'Adèle muito relevante na extensa relação entre cinema e banda desenhada, no sentido em que a sua análise em conjunto permite outro tipo de descobertas. Como sempre aprende-se mais em qualquer diálogo quando há discordâncias.

Le Bleu est une couleur chaude. Argumento e desenhos de Julie Maroh (lido na versão inglesa: Blue Is the Warmest Color, Arsenal Pulp Press 2013, agora em português pela Arte de Autor, 2016)

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

CÁTEDRA

Catedrático de literatura francesa na Universidade do País Basco, estudioso de banda desenhada e argumentista premiado, Antonio Altarriba é uma das mais interessantes figuras da BD espanhola, destacando-se as obras dedicadas aos seus pais, “A arte de voar” sobre histórias do pai na Guerra Civil Espanhola, editada na primeira coleção de Romances Gráficos Levoir/Público, e “A asa quebrada”, sobre as vicissitudes na vida de sua mãe só conhecidas após a sua morte, que sairá na segunda coleção. Se estes dois livros (ambos com desenhos de Kim, num tom realista “neutro”) surgem como homenagens biográficas sobre as quais se reflete a História de Espanha, “Eu, assassino” (Arte de Autor) é um pouco diferente, embora comungue da mesma matriz-base.
Desde logo conta com um desenho bastante mais duro de Keko, e o uso dramático de vermelho (talvez até excessivo) num preto e branco contrastado que segue uma linha gráfica que vem de Milton Caniff, Alberto Breccia e Frank Miller. Mas sobretudo o protagonista é Professor (de Arte) na Universidade do País Basco, e muito semelhante do ponto de vista físico ao próprio Altarriba. Uma parte importante da história implica pois a realidade política do País Basco, por um lado, e a dinâmica do meio académico em geral, por outro, embora seja suficientemente arguta para que esses elementos surjam mesclados com o relato na primeira pessoa do protagonista.

Citando ao início Sade, e na introdução “O Mandarim” de Eça de Queirós, a reflexão de Altarriba imbrica nos diferentes modos e perspetivas de considerar a morte (individual, coletiva, simbólica, “útil”, libertária, criadora de mitos, terrorista) e as suas consequências, de como podemos acabar por ficar indiferentes perante a sua ubiquidade quotidiana, e quais os mecanismos possíveis para o evitar. Com a particularidade de esta reflexão ser conduzida por um assassino em série cujo objetivo na vida é, para além de não ser apanhado, tratar a morte como uma das Belas Artes, cada assassinato enquanto performance/instalação inovadora. Faz diferença o discurso interessante e articulado do protagonista ser, em simultâneo, o de um psicopata assassino que, no fundo, apenas se preocupa com a sua carreira (fama, mulheres), negligenciando muito do que o rodeia (incluindo relações, previsíveis, com uma aluna e a sua quase ex-mulher)?
Para além de eventualmente sublimar alguns eventos pessoais (como sucedeu em obras anteriores) é neste paradoxo que reside o interesse maior de “Eu, assassino”, e a inteligência da obra é patente, não só na construção de argumento, mas no desenho contrastado de Keko, que sugere haver uma dualidade que, na verdade, se esfuma. De facto, e caricaturando o que acontece frequentemente na Academia, o psicopata criativo, original e rebelde que protagoniza o livro acabará, não necessariamente castigado do modo “clássico”, mas menorizado por psicopatas copiadores cinzentos, que trabalham melhor dentro do sistema. A única solução é procurar uma outra abordagem inovadora, que lhe permita continuar a sua carreira dupla, académica e criminal, já que, em última análise, tornaram-se indissociáveis. Na verdade, troque-se a palavra “psicopata” por “especialista” e estaríamos em presença de um retrato reconhecível do meio académico. Desse ponto de vista, apesar de alguns desequilíbrios, “Eu, assassino” é uma notável obra em forma de tese, que perturba até pelo contexto inesperado em que integra os diversos clichés que assume.
Esta edição prova ainda que, apesar da dinâmica editorial corrente, há um nicho para pequenas editoras explorarem a muita qualidade presente em diversos mercados, e em relação aos quais a realidade portuguesa perde sempre. Depois de “Caravaggio” de Manara, a Arte de Autor volta a marcar pontos com esta excelente edição.

Eu, assassino. Argumento de Antonio Altarriba, desenhos de Keko. Arte de Autor. 136 pp., 20 Euros.