Nas últimas décadas houve sempre em Portugal uma grande
editora de banda desenhada franco-belga, antes a Meribérica, mais recentemente
a ASA. No entanto, esta parece hoje resumir-se aos “grandes títulos” como os
novos “Blake & Mortimer” ou “Lucky Luke”. Algo a que não será alheia a
saída da responsável pela edição de BD Maria José Pereira para a Arcádia
(chancela da Babel que se dedica à banda desenhada). Não é pois de estranhar a
aposta desta última editora numa obra de um autor consagrado, “O estrangeiro”
de Albert Camus, adaptado por Jacques Ferrandez (edição original Gallimard,
2013).
Nascido em 1955 na Argélia (tal como Camus) ao nível do argumento a obra de Ferrandez mistura livros com outros autores, incluindo adaptações de
nomes tão diferentes como Daniel Pennac ou Marcel Pagnol, com trabalhos próprios
focando sobretudo a história colonial da Argélia, como a premiada série
“Carnets d’Orient”. O interesse em Camus é pois natural, e Ferrandez já antes
adaptara a história curta “L’Hôte” (2009). Do ponto de vista do desenho o
ambiente luminoso de ambos os lados do Mediterrâneo transformam o traço
clássico do autor, tornando-o imediatamente reconhecível, quer em banda
desenhada, quer nos seus cadernos de viagem. Em “O estrangeiro” a cor em
registo de aguarela é utilizada de forma muito interessante, oscilando entre o
diáfano e o opressivo, e mantendo um tom de permanente distanciamento, quer do
leitor em relação ao protagonista, quer deste em termos de todo o meio
envolvente, de Argel ao deserto.
A história do narrador-protagonista Meurseault é na verdade
um julgamento em duas partes: o julgamento concreto do tribunal que o condena
pelo assassinato de um cidadão árabe desencadeado pelo comportamento do seu
vago amigo de moral duvidosa Sintès; e o julgamento acessório de uma sociedade
que critica o seu comportamento frio (não só, mas sobretudo) quanto à morte da
mãe e ao respetivo funeral, e que terá um papel fundamental na sua condenação à
morte. O distanciamento quase autista de Meurseault em relação ao que o rodeia
é ainda visível na sua relação (pouco empenhada) com Marie, na falta de
ambições profissionais. E é muito curioso como a sua emotividade apenas se
manifesta decisivamente quando a sua falta é questionada. “O estrangeiro” é um
retrato perturbador de um homem que deambula aparentemente sem ligações pelo
mundo; mas o seu comportamento não-canónico será razão suficiente para
justificar a pena a que é condenado? Na verdade Meurseault é condenado por ter
disparado tiros a mais, que põem em causa a tese de legítima defesa, ou pela
falta de trato nas relações sociais? Por não se comportar como “é suposto”?
Nesta versão de “O estrangeiro” há um problema comum em
adaptações: o excesso de respeito pelo original, que faz com que o uso de uma
outra forma de linguagem se fique muitas vezes pelo funcional, e não consiga
transmitir bem as indecisões aparentes do texto (como na cena do tiroteio). No
entanto Ferrandez também utiliza o desenho para sublinhar outros aspetos,
nomeadamente relativos às personagens “Árabes” (que Camus nunca nomeia),
transformando-as, de peça coletiva do absurdo que rodeia o protagonista, em
indivíduos, chamando a atenção para o contexto colonial subjacente. Meurseault
pode ser um estranho para o sistema sócio-judiciário que o avalia, mas esse
sistema é também estranho na Argélia. O “Outro” permanece do outro lado da rua,
no outro extremo das dunas, ao canto da sala de audiências.
“O estrangeiro” abre o apetite para o que poderão ser
futuras apostas da Arcádia em BD. Tal como na banda desenhada “de autor” ou
norte-americana seria interessante haver alguma concorrência no âmbito
franco-belga.
O estrangeiro. Argumento e
desenhos de Jacques Ferrandez a partir da obra homónima de Albert Camus.
Arcádia. 140 pp., 22,50 Euros.
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