terça-feira, 25 de junho de 2019

ECONOMIA


Na minha profissão de biólogo sou constantemente confrontado com o facto de muita gente considerar as Ciências da Vida impenetráveis, impossíveis de entender pelo comum dos mortais, e com muito pouca utilidade, apesar de todas as evidências tecnológicas em contrário. Nessas ocasiões tendo a responder que, idealmente, o pensamento científico é uma maneira muito útil de abordar o mundo, capaz de avançar o conhecimento nos mais variados assuntos, de fazer previsões, e de mudar na presença de novos dados, desde que convincentes. Pelo contrário, outras formas de questionar a realidade, tão ou mais opacas para o cidadão comum, parecem, não só presas a dogmatismos inverificáveis, mas sobretudo patologicamente incapazes de acertar uma análise ou de aumentar o nosso conhecimento, teimando em soluções que já provaram a sua inutilidade. No entanto, os seus especialistas (e as escolas que os formam) continuam a ter infindável prestígio, poder e tempo de antena, mesmo (ou sobretudo?) quando erram. Podia estar a falar de futebol ou de política. Mas estava a pensar em Economia. Daí a importância de “Economix”, um excelente lançamento da Arte de Autor.

Nesta obra o argumentista Michael Goodwin parte dos mesmos pressupostos, mas tenta percebê-los, e, sobretudo, explicá-los de modo simples e direto (mas nem por isso menos rigoroso), utilizando o imenso poder das codificações inerentes à banda desenhada. Conta aqui com um notável trabalho gráfico a preto e branco de Dan Burr, que perde neste livro a riqueza de traço e sombras de obras anteriores (os aclamados “Kings in Disguise” ou “On the Ropes”, ambos com argumento de James Vance), para ganhar uma clareza esquemática que é essencial para captar as mensagens do argumento. Em “Economix” não aparecem só figuras tutelares bem conhecidas, como Adam Smith, Thomas Malthus, Karl Marx, John Maynard Keynes, John Kenneth Galbraith ou Milton Friedman (que nem sempre disseram aquilo que pensamos que disseram), mas também outras, como o britânico David Ricardo (1772-1823), descendente de judeus sefarditas portugueses vindos da Holanda, autor da teoria da “vantagem comparativa”, e que Goodwin classifica como: “a mais importante pessoa de que você nunca ouviu falar”. Mas este não é um livro sobre pessoas e suas teorias (embora exija muito do leitor a esse nível), mas sobre o modo como Economia, Política e Sociedade se têm relacionado ao longo da história contemporânea, com o grande mérito de considerar o mundo como um todo, e não ter medo de chamar as coisas pelos devidos nomes. E talvez a mensagem mais importante esteja no modo como o livro contextualiza diversos marcos históricos do ponto de vista económico, mostrando como, ao ignorar as contingências de um mundo real que diz modelar, muita da ciência económica está fadada ao insucesso. Ou, noutra perspetiva, que há explicações muito simples para realidades menos agradáveis, caso estejamos dispostos a enfrentá-las. Por último, “Economix” tem, como o próprio Goodwin refere, o mérito fundamental de estimular outras leituras, sobretudo quando não está bem certo das suas posições, assumidamente (também) políticas. Até porque, já depois da publicação original deste livro (2012), houve Trump, e a internet não é nada daquilo que Goodwin achava na altura.
“É a Economia, estúpido!”, foi um dos slogans de James Carville para Bill Clinton; e é importante que, mesmo no nosso “papel” de consumidores, não sejamos estúpidos com ela. Ou deixemos que façam de nós estúpidos. No mínimo, deveríamos usar algo como o pensamento científico para avaliar evidências, e chegar, com um mínimo de vieses, a conclusões tão informadas quanto possível.



Economix: Como a Economia funciona (e não funciona) em palavras e imagens. Argumento de Michael Goodwin, desenhos de Dan E. Burr. Arte de Autor. 304 pp., 21,95 Euros.



BESTAS


Nas mais diversas mitologias não é incomum encontrar relatos de heróis (impolutos ou menos, improváveis ou nem tanto) lutando contra monstros que representam o caos, a morte, desejos inconfessados, ou o medo do desconhecido. Perseu, Teseu, Hércules, Marduk, Thor, Indra, Sigurd, Dobrynya Nikitich, Iovan Iorgovan, São Jorge, e tantos outros, combatem Minotauros, Medusas, ou diferentes versões de um Dragão. E ao lembrar as lendas é fácil que heróis e monstros se transformem uns nos outros, tantos são os pontos de contacto. Escrito perto do ano 1000, o anónimo poema épico “Beowulf” é um marco na literatura anglo-saxónica, e tem tido inúmeras adaptações para os mais diversos formatos, incluindo a banda desenhada. Tantas que, à partida, se questiona a necessidade de mais uma; o que seria um grave erro, já que é imprescindível conhecer a magnífica adaptação de Santiago García, com uma vibrante intervenção gráfica de David Rubín (Ala dos Livros).

Nesta sua visão de uma história já muitas vezes contada, os autores espanhóis, sendo fiéis ao original, conseguem dar a volta a eventos que não têm como não ser previsíveis. Passada em vários reinos nórdicos na região das atuais Suécia e Dinamarca, a história é protagonizada por Beowulf, jovem guerreiro do reino dos Getas, que se oferece para combater o terrível monstro Grendel, que ronda um reino vizinho, espalhando morte e destruição. Vencido Grendel Beowulf tem seguidamente de lidar com a sua mãe, que procura vingar o filho. Mais tarde, um já envelhecido Beowulf, agora Rei relutante dos Getas, tem a sua última batalha, salvando desta vez o seu reino de um mais “clássico” dragão. Deixando de lado as inevitáveis incongruências que rodeiam mitos, e nas quais as provações sucessivas ao herói parecem surgir a pedido, a história é feita para uma orgia de ação, “oferecendo” de bandeja um (quase super) Herói, e combates com três monstros, cada um mais terrível do que o anterior. Embora comece num registo clássico, David Rubín não desdenha esse pretexto, pelo contrário. É certo que o seu virtuosismo pode por vezes confundir, e nem sempre se justifica, mas a planificação de algumas pranchas é extraordinária na sua inovação, oferecendo numa só imagem múltiplas perspetivas, o que permite criar narrativas paralelas, focar pormenores, densificar o horror, ou dar a visão de uma mesma cena através de diferentes olhares. O uso da cor (com destaque natural para o vermelho e negro) ajuda a manter um dinamismo trágico e visceral, potenciando o efeito surpreendente do desenho.

Claro que uma mera sucessão de batalhas constituiria uma abordagem superficial, e se Rubín usa soluções gráficas interessantes (incluindo o uso exclusivo do desenho) para contar as diferentes “histórias dentro da história”, Santiago García emprega de maneira inteligente outros aspetos de “Beowulf”, incluindo meditações, entre o profundo e o gongórico, sobre coragem e dever, focando na parte final o inevitável triunfo do envelhecimento, que tudo apaga, menos a lenda. A história não segue por esse lado (a não ser numa sugestão homoerótica em plena batalha), mas ao fundir Beowulf e Grendel na capa os autores sugerem uma ligação mais visceral entre herói e monstro; se bem que o Grendel-personagem tenha a subtileza de um rolo compressor, e “apenas” possa servir como encarnação de um Id desenfreado, um pretexto para heróis e seus leitores questionarem identidades e limites. Numa excelente edição luxuosa da nova editora Ala dos Livros, este é um livro que urge conhecer, provando que há sempre maneiras inovadoras para abordar as mais conhecidas lendas.

Beowulf. Argumento de Santiago García, desenhos de David Rubín. Ala dos Livros. 200 pp., 25 Euros.


FILOSOFANDO


Quando se fala na noção (quase sempre exagerada) das “Duas Culturas” (há bem mais do que duas...) uma das questões tem a ver com os debates em diferentes áreas do conhecimento. Se alguém interessado em Física ou Biologia pode iniciar trabalho dando como garantida a força da gravidade ou a teoria celular, em Filosofia há um revisitar constante, redescobrindo e reinterpretando. E é muito interessante que a Gradiva tenha investido na divulgação em banda desenhada também nesta área, com duas obras muito interessantes, “Introdução à Filosofia em banda desenhada” de Michael F. Patton e Kevin Cannon, e “Hereges! Os assombrosos (e perigosos) primórdios da Filosofia Moderna”, de Steven e Ben Nadler, de certo modo complementares nos seus objetivos.

Abordando grandes tópicos que vão da Lógica à Ética passando pelo inevitável Deus, a viagem a que se convida o leitor em “Introdução à Filosofia” tem um programa ambicioso para o seu tamanho, mas o grande mérito de contar com Kevin Cannon, um autor consagrado na banda desenhada com propósitos educativos. Ao traço caricatural claro e dinâmico junta-se uma capacidade de resumir as ideias do coargumentista (e professor universitário de Filosofia) Patton de um modo simples e eficaz. Claro que a principal crítica é quase inevitável, e relaciona-se com a profundidade com que os diferentes assuntos, de Heraclito a Nietzsche, podem ser tratados. A palavra chave está mesmo no título: “Introdução”. Este é um livro muito bem feito, que pede outras leituras.
Já “Hereges!” tem uma vantagem e uma desvantagem. A desvantagem é o traço de Ben Nadler e a ilustrar as ideias do seu pai, o filósofo Steven Nadler. Não necessariamente pelo traço “naïf” (embora seja por vezes difícil individualizar personagens), mas com o uso da linguagem, fazendo com que o livro seja uma sucessão de ilustrações consecutivas, não uma BD. Mas o desenho consegue transmitir a mensagem, e é isso que se pretende. Para além do maior tamanho, a (grande) vantagem deste livro é que as questões abordadas no livro focam a evolução do pensamento filosófico num espaço-tempo muito mais específico, a Europa dos séculos XVII e XVIII, e um número pequeno (apesar de tudo) de pensadores (Descartes, Espinosa, Hobbes, Locke, Leibniz, Newton, Voltaire, Pascal, entre alguns outros). Há assim a possibilidade de abordar com mais detalhe (porventura até demais) as subtis, mas profundas alterações metodológicas e conceptuais que, ao alterarem o posicionamento de Homem perante o Espírito e a Matéria, o Inato e o Adquirido, ou Deus e a Natureza. Reflexões que, no fundo, constituem a base (também) da Ciência moderna. Claro que é uma visão simplificada que, por exemplo, apresenta Newton como o grande “triunfador materialista racional” de todo o processo, referindo apenas de passagem os seus escritos místicos, que são tudo menos isso.
É evidente que outra limitação destas obras está no seu foco, não só na filosofia clássica ocidental, mas na sua interpretação franco-germano-anglo-saxónica. Certamente diversificada, mas não tão diversificada como o mundo. Haverá outras perspetivas, mas teria de se começar por algum lado. É algo que a própria Gradiva parece consciente noutras circunstâncias, já que acrescentou ao título da também recente (muito superficial e pouco interessante, apesar do tema) “História do Sexo” (dos franceses Philippe Brenot e Laetitia Coryn), a especificação “História da sexualidade ocidental em banda desenhada”, que não existe no original. É sempre bom não nos esquecermos que, apesar de todo o poder de uma herança intelectual que deu claros frutos, e que nunca poderemos deixar de considerar, há outras formas de olhar para estes temas, que talvez nos possam ajudar também a viver melhor uns com os outros.



Introdução à Filosofia em banda desenhada. Argumento de Michael F. Patton e Kevin Cannon, desenhos de Kevin Cannon. Gradiva. 170 pp., 13,50 Euros.
Hereges! Os assombrosos (e perigosos) primórdios da Filosofia Moderna. Argumento de Steven Nadler, desenhos de Ben Nadler. Gradiva. 185 pp., 17,50 Euros.