segunda-feira, 30 de maio de 2016

MAINSTREAM.PT


“Como fazer uma banda desenhada sem saber bem como...” foi o título de um workshop de 2014 com Filipe Melo, um autor surpreendente no contexto nacional. Se é ridículo falar-se num “mainstream” da BD portuguesa, entendido enquanto a produção regular de obras inteligentes, eficazes, assumidamente (também) de entretenimento despretensioso, dirigidas ao (e aceites pelo) “grande público” (que não há), é só porque o “mainstream” aqui é Filipe Melo, ponto.
Com uma formação musical que passou pelo Hot Clube e pela Berklee School de Boston, Melo chamaria a atenção com a concepção do filme curto de terror “I’ll see you in my dreams” (2003; realização do espanhol Miguel Ángel Vivas), e usaria depois vídeos para promover aquela que se tornou a série-fenómeno da BD nacional, já disponível em vários países. A trilogia (inicial?) é composta por “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy” (2010), “As Extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy II: Apocalipse” (2011) e “As Fantásticas Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III: Requiem” (2013), acrescentando-se ainda “Os Contos Inéditos de Dog Mendonça e Pizzaboy” (2016), que reúne histórias curtas de apresentação das personagens realizadas para a editora Dark Horse Comics, aquando da edição em inglês.
Melo parece comungar do credo de Frank Miller: comparada com o cinema em BD é muito mais fácil (e barato) fazer grandes produções com extraordinários efeitos especiais. São precisas duas coisas: ideias e colaboradores. A filiação de Melo no cinema fantástico (ou em BDs como “Hellboy” de Mike Mignola e “Dylan Dog” de Tiziano Sclavi) já era evidente, e confirma-se nos cineastas que assinam os prefácios dos livros (um excelente toque promocional): George A. Romero, John Landis, Tobe Hooper, Lloyd Kaufman. Mas se os temas da coexistência conspirativa (nunca pacífica, ou não haveria história) de criaturas sobrenaturais num mundo “real” estão longe de ser novos, Melo consegue, não só manter um ritmo elevado e um humor corrosivo, como criar soluções originais a partir da realidade portuguesa (várias personalidades e locais, ou as aparições de Fátima, por exemplo) que dão um timbre muito próprio a situações e personagens, do Lobisomem torturado e ácido, natural de Tondela, João Vicente Mendonça, ao permanentemente atónito Eurico Catatau que só vinha entregar pizas e tem agora de lidar com coisas como uma gárgula sem corpo, ou Pazuul, um demónio tão mudo e inexpressivo quanto eficaz, preso no corpo de uma adolescente fumadora. Por outro lado, o desenho entre o realista e caricatural do argentino Juan Cavia (com cores do seu compatriota Santiago Villa) controla muito bem o tom variável da narrativa, do abismo-espetáculo ao absurdo non-sense. No fundo, o maior mérito de Filipe Melo é ter provado ser possível produzir em Portugal algo com estas caraterísticas, de alcance internacional.
O seu último livro “Os Vampiros” (como sempre editado pela Tinta da China) tem pontos de contato com o trabalho anterior (desde logo o traço de Juan Cavia), mas, e embora isto possa parecer estranho, no sentido de se demarcar dele. O pretexto (também reconhecível) é aqui uma missão militar numa terra estranha, que previsivelmente degenera; com o pano de fundo da Guerra Colonial a trazer, mais uma vez, especificidades portuguesas bem documentadas e incorporadas, numa narrativa construída com atenção aos detalhes. É certo que os autores parecem menos à-vontade, o ritmo é por vezes demasiado ponderado, há algumas incongruências e tipificações; mas as relações entre as diferentes perspetivas do país colonizador que cada elemento representa, bem como a impenetrabilidade de África para todos eles, são abordadas de uma forma credível na sua honestidade. No entanto, o fulcro dramático crucial é a muito bem gerida hesitação (aparente) entre o “real” e o “fantástico”, fazendo oscilar as espectativas do leitor quanto à natureza do Mal. Ou, dito de outro modo, se a referência é mais “Predator”, ou mais “Apocalypse Now”. Nessa perspetiva “Os Vampiros” tenta estar para “Dog Mendonça e Pizzaboy”, salvo as devidas diferenças, como “A lista de Schindler” está para “Indiana Jones”. Se isto é o que Filipe Melo fez na BD sem saber bem como, o que fará a seguir, agora que, presume-se, já terá umas luzes?