segunda-feira, 23 de setembro de 2019

VERÃO


Há lançamentos apropriados em qualquer altura do ano, mas apresentar a excelente série “Verões Felizes” na estação que lhe diz respeito é uma excelente aposta da Arte de Autor, lançando num único volume os dois primeiros episódios, “Cap au Sud” (2015) e “La Calanque” (2016). A série resulta de uma colaboração entre o prolífico argumentista belga Zidrou (Benoît Drousie, n. 1962), que vive em Espanha, e o desenhador catalão Jordi Lafebre (n. 1979). E recomendá-la é dizer pouco. “Verões Felizes” é daquelas séries que nos reconcilia (se era preciso) com o potencial da BD franco-belga (neste caso hispano-belga); no sentido em que há um excelente ponto de partida, e histórias bem contadas com vários níveis de leitura (“dos 7 aos 77 anos”), mas que evitam maniqueísmos e a tentação de explicar tudo até ao mais ínfimo pormenor, prevalente noutros estilos e formatos. Há angústias profundas (pessoais, profissionais, familiares), mas também um humor que aligeira sem branquear. E os momentos de descoberta e crescimento não se assumem com dramatismo exagerado, mesmo quando parecem dramáticos. 

O pretexto para “Verões Felizes”, como o próprio nome indica, são viagens de férias de Verão, em que uma família belga (mas com ligação a exilados espanhóis fugidos a Franco) ruma ao sol, em busca de repouso, mas carregando toda a bagagem que qualquer família transporta consigo, e que não se cansa de constantemente (tentar) arrumar. De forma muito inteligente as viagens não são consecutivas, e, apesar de haver alguns sinais (ténues) daquilo que eventualmente será “o presente” das personagens, cada história corresponde às férias de um ano, 1973 para o primeiro volume, 1969 para o segundo. Ou seja, o leitor vai descobrindo a família em momentos distintos, e os saltos temporais ajudam a contextualizar “a posteriori” aquilo que se passa entre anos e nas “outras estações”, uma narrativa maior emergindo de cada episódio auto conclusivo. Por outro lado, o uso da iconografia específica de cada ano (canções, modas, política, filmes, eventos), ajuda a criar uma atmosfera muito própria, a seriedade da vida vista pelo, apesar de tudo mais “róseo”, prisma das férias. A mãe, alguém ainda em busca de rumo, e o pai, autor de banda desenhada algo frustrado com a sua carreira, são personagens muito interessantes, como são os três filhos (apenas dois no segundo volume...), em plena descoberta, de tudo. Com estes elementos Zidrou constrói argumentos que parecem simples e óbvios, mas que são ricos na sua complexidade (veja-se como são abordados temas como o racismo ou a exclusão, por exemplo), tornando a história um pouco diferente de cada vez que se lê. E dificilmente poderia ter escolhido melhor do que o excelente traço, realista, mas com um toque de exagero caricatural, de Lafebre, que faz as páginas vibrar com o genuíno entusiasmo que apenas os melhores autores conseguem transmitir.

Há ainda duas decisões editoriais importantes que, no fundo, aproximam o livro daquilo do formato que genericamente se pode considerar de “romance gráfico”. Se se pode discutir a mudança de tamanho (um pouco mais pequeno do que o original), o juntar de duas histórias num só volume ajuda na imersão do universo, já que algo frustrante no formato dos clássicos álbuns franco-belgas era descobrir uma série magnífica, e depois ter de esperar muito tempo para a reencontrar. “Verões Felizes” é para descobrir, já, por todos os tipos de leitores.

Verões felizes 1: Rumo ao sul/A calheta. Argumento de Zidrou, desenhos de Jordi Lafebre. Arte de Autor. 112 pp., 21,5 Euros.



ISOLAR




O lançamento de “Sabrina” do norte-americano Nick Drnaso numa excelente, se inesperada, edição da Porto Editora tem explicação: este foi o primeiro romance gráfico (novela gráfica, banda desenhada, BD...) finalista (“longlisted”) do prémio literário Man Booker, em 2018 (o vencedor, “Milkman” de Anna Burns, vale a pena). Sempre que isto acontece, sendo “isto” uma BD ser considerada para (ou ganhar) um prémio que “não é suposto” por ser destinado a “livros a sério”, fico deprimido. Porque não devia ser notícia, mas, sobretudo, pela minha falta de paciência, quer para os que se indignam com a distinção, quer, pior ainda, para as múltiplas “descobertas” de recém-convertidos (ou aqueles com vagas lembranças de “Tintin”, “Corto Maltese” ou “Sandman”) que aproveitam a ocasião para proclamar que a BD “agora é para adultos”, esquecendo-se o logo a seguir, com o próximo filme da Marvel. Aconteceu quando “Maus” de Art Spiegelman ganhou o Prémio Pulitzer (1992), “Jimmy Corrigan” de Chris Ware ganhou o prémio do “The Guardian” (2001), ou outras BDs ganharam prémios de literatura de terror, fantasia ou ficção-científica. É que a banda desenhada sempre foi capaz de contar estórias complexas, utilizando a sua singular linguagem de dupla gramática, escrita e desenho. Como faz, de resto, Nick Drnaso em “Sabrina”.

A história, simples nas suas ramificações absurdas, relaciona de forma brilhante os Grandes Espaços dos EUA (sejam paisagísticos ou urbanos) à pequenez vazia de muitos que os ocupam. Onde tudo e nada pode ser por acaso, e a realidade digital explode qualquer tentativa de racionalidade. O isolamento das personagens é, de resto, um pouco também o isolamento presumido da BD enquanto forma de expressão. Um isolar que tem tanto de passivo como de ativo, empurrado por forças invisíveis e teorias de conspiração que seriam ridículas, não se desse o caso de conhecermos equivalentes, em que amigos e familiares (e governos e redes sociais...) acreditam, ou fingem acreditar por diferentes motivos; com consequências desastrosas. Aquilo que começa com um crime “banal” (como banais se tornaram aquilo que são autênticas performances de violência pública), espirala para um mar revolto de desinformação, que vai muito além da vítima (ou do assassino). A inocência ou ignorância não tornam ninguém imune, e a única solução parece ser a fuga. Para a frente, para trás, para um lugar de imobilidade anestesiada, para onde for. Mas onde as personagens se fixam, numa espécie de autismo inútil, que é muito útil para que o mundo continue exatamente como está. Porque o ruído que dele surge é menos eloquente do que silêncio.
Lembrando os universos em BD de Chris Ware e Jeff Nicholson, mas com ligações a pintores como Edward Hopper e Andrew Wyeth, o grafismo “neutro” de Drnaso, com personagens inexpressivas, cores planas e longos planos de imagens repetitivas não é necessariamente fácil de assimilar, mas revela-se virtuoso no aprisionar de cada indivíduo na sua realidade. Recomenda-se ainda o anterior livro do autor, “Beverly” (2016), uma coletânea de histórias curtas que tratam muitos dos mesmos temas de isolamento, alienação, exploração e crueldade; utilizando a brevidade para focar as mesmas mensagens evidentes em “Sabrina”. Bela aposta, livro urgente. Por acaso em BD.


Sabrina. Argumento e desenhos de Nick Drnaso. Porto Editora. 205 pp., 24 Euros.

terça-feira, 9 de julho de 2019

RESISTÊNCIA


Visitar Museus como o da Fortaleza de São Tomé em São Tomé e Príncipe é iluminador para quem tem do tema dos Descobrimentos apenas a visão liceal clássica. É certo que estátuas dos descobridores Pêro Escobar e João de Santarém, bem como a do povoador Álvaro de Caminha, estão à porta, mas não identificadas; porque a História aqui, sendo a mesma, é outra. Colonialismo, Escravatura (com ou sem esse nome), a diferença entre a Casa Grande e a Sanzala, figuras como o governador Carlos Gorgulho e o massacre de Batepá em 1953. 


O modelo aplicado em São Tomé era o do Brasil, talvez com a diferença de espaços e distância. Pelos finais do século XVI na região de Pernambuco antigos escravos fugidos das Plantações estavam bem conscientes da impossibilidade de regressar a África (Angola, Congo). Por isso aproveitaram a vastidão remota do país para estabelecer comunidades autónomas livres, não “oficiais”. Palmares era uma espécie de pequena Angola, ou “Angola Janga”, e a sua capital, Macaco, tinha uma população equivalente à das maiores cidades brasileiras da altura. É desses tempos ainda pouco explorados que fala o monumental romance gráfico do brasileiro Marcelo d’Salete (Polvo). De resto, as histórias curtas incluídas no seu anterior livro “Cumbe” (Polvo, 2015) podem ser consideradas como uma espécie de primeira tentativa esquemática de abordar este universo. 

Mais do que versões lineares de colonizadores e colonizados em lados opostos de narrativas com diferentes heróis, em “Angola Janga” d’Salete retrata uma realidade complexa, um equilíbrio instável e, sobretudo, pragmático entre Palmares e as autoridades (holandesas ou portugueses), entre diferentes tipos de colonos e diferentes tipos de serviçais, escravos ou ex-escravos. Entre o Ideal (diferente, consoante a perspetiva) e o Possível. Nesse aspeto a realidade era trabalhada por ambos os lados como algo fluido, e oprimidos e opressores rapidamente criavam hierarquias internas, tão profundas como aquelas que os opunham. Nesse sentido, os equilíbrios de Palmares retratados aqui são reminiscentes dos da Guerra Fria, dos conflitos no Médio Oriente. As diferentes personagens, que por vezes se confundem ao longo da obra, até podem parecer tipificadas e ter um comportamento previsível em determinados instantes, mas essa é uma realidade aparente, que frustra constantemente o leitor (no bom sentido). A personalidade fascinante do carismático chefe Zumbi é, desse ponto de vista, o metrónomo da narrativa que, mais do que contar uma história, tem o condão de abrir janelas (não apenas históricas, mas sociais, culturais, antropológicas, políticas), que não deixam de ressoar no Brasil contemporâneo (e no mundo). Se Palmares se foi dissolvendo naturalmente ao longo dos anos, parte da sua herança permanece insolúvel.


O estilo gráfico feito de linhas a preto e branco de Marcelo d’Salete é funcional sem ser demasiado apelativo, mas mesmo alguma rigidez teatral (nas figuras como no argumento) concedem a “Angola Janga” um tom operático, entre o trágico e o heroico. No entanto, e apesar de algumas questões de estilo, é quase irrelevante considerar os méritos de “Angola Janga” enquanto banda desenhada. Este é um livro importante, sobre uma realidade que urge conhecer e compreender. Porque a sua descendência, nas suas várias vertentes, anda por aí.

Angola Janga. Argumento e desenhos de Marcelo d’Salete. Polvo. 482 pp., 17,40 Euros.





As qualidades e os defeitos tendem a tocar-se, quer falemos de uma pessoa, de uma Ideia ou de um conjunto de ideias. Por exemplo, as crenças religiosas têm, simultaneamente, o poder de unir em torno de perspetivas que transcendem a “realidade”; e de suscitar discussões violentas, seja em torno de grandes linhas orientadoras, seja por questões que, à partida, parecem pormenores. Para além do óbvio, que é procurar integrar racional e sofisticadamente a inevitabilidade da morte, a biologia evolutiva procura explicar as vantagens do aparecimento da Fé de um modo lato, no sentido de lubrificante e aglutinador social de “alto nível”, com a bisbilhotice a ter o mesmo papel num nível “inferior”. Explicações a que os crentes são, como é compreensível, completamente alheios, quando não hostis.

Em banda desenhada o conceito do Super-Herói enquanto (semi)Deus existe desde a criação de “Superman” (1938), com excelentes recriações mais contemporâneas em “Watchmen” (1987) ou “Marvels” (1994). Mas o caminho do notável romance “American Gods” (2001) de Neil Gaiman é completamente diferente, no sentido, não tanto no modo como vira o conceito (os Deuses enquanto Super-Heróis), mas, sobretudo, pelo modo brilhante como explora o declínio de antigas divindades (e concomitante enfraquecimento do seu poder), perante o aparecimento de novos deuses, mais adaptados a uma era global e digital. Os deuses e rituais trazidos para os EUA da Europa, Ásia e África pelos vários migrantes vão-se, pois, adaptando e diluindo, enquanto o “melting pot” americano produz novas variantes, que concorrem por fiéis. Previsivelmente, o resultado final é uma guerra religiosa, não entre humanos, mas entre as diversas divindades disponíveis para adoração. Depois de uma bem-sucedida adaptação a série de TV surge agora a versão em banda desenhada numa excelente edição da Saída de Emergência.

Do ponto de vista gráfico o prestígio de Gaiman é visível na quantidade impressionante de nomes reunidos para o acompanhar neste projeto, complementando o trabalho-base dos habitualmente excelentes P. Craig Russell e Scott Hampton. Mas, tal como sucede com o texto, o resultado final, apesar de globalmente competente e com alguns momentos superlativos, é menor que a soma das partes, e bastante inferior ao material de origem. A ideia por detrás de “Deuses americanos” continua a ser poderosa e provocadora para quem ainda wnão a conhece, mas esta adaptação mostra que, depois do romance e da série de televisão, há limites para os formatos em que cabe exatamente a mesma ideia, sem parecer a mesma. 

Na verdade, o conceito dos “super-heróis enquanto deuses” convive muito melhor em abordagens que seguem de perto “Watchmen” e “Marvels”, como sejam, respetivamente, as séries “O legado de Júpiter” de Mark Millar e Frank Quitely (da qual a GFloy lançou já dois volumes), ou “Astro City”, de Kurt Busiek, Alex Ross (criadores de “Marvels”) e Brent Anderson (inexplicavelmente por editar em Portugal). No primeiro caso o conceito veste roupagens sociopolíticas, seguindo a instrumentalização de seres que o poder “tradicional” só pode considerar como armas poderosas, e a população em geral como Messias ou “Influencers”, Kardashians ao cubo. No segundo estamos no domínio das lendas, que, mais benevolamente, existem um pouco ao lado de uma realidade mais “clássica”, deuses que caminham connosco, partilhando parte das nossas dúvidas. Seja qual for o modelo parece que, de uma forma ou de outra, precisamos de ter fé em alguma coisa. Porque não nisto?

Deuses americanos vol. 1: Sombras. História e diálogos de Neil Gaiman (adaptando o seu romance original), guião e esboços de P. Craig Russell, desenhos de Scott Hampton (com contribuições de Walter Simonson, Colleen Doran, P. Craig Russell, Loverne Kindzierski, Laura Martin, Adam Brown, Glenn Fabry e David Mack). Saída de Emergência. 284 pp., 18,80 Euros.
O legado de Júpiter vol. 2: Revolta. Argumento de Mark Millar, desenhos de Frank Quitely. G-Floy Studio. 136 pp., 14 Euros.





DESONRA


No meio editorial estranhamente pujante que é o da BD nacional há, no entanto, propostas que merecem uma referência especial, seja pela dimensão, seja pelo arrojo. Ou, no caso de “Marcha para a morte!” de Shigeru Mizuki, pelas duas coisas, destacando-se a “reincidência” de editora Devir, que já tinha editado o igualmente monumental “NonNonBa”. Porquê? Porque as grandes radiografias do Japão que compõem a obra de Mizuki (1922-2015), estando presas a um espaço-tempo e a um estilo gráfico, tudo transcendem, para se tornarem manifestos sobre a condição humana.

Se “NonNonBa” (1977) abordava a mitologia japonesa e a infância do autor, “Marcha para a morte!” (1973) utiliza as suas experiências como soldado do exército japonês nas ilhas do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. E é uma crítica demolidora ao militarismo em geral, e à abordagem nipónica em particular. Se no início “apenas” somos confrontados com o quotidiano quase banal e a estupidez (a todos os níveis) da guerra, mais tarde, e numa situação de derrota japonesa iminente, líderes incompetentes que só se preocupam com a sua imagem, decretam para os seus soldados a “morte nobre”; um ataque suicida em que todos deveriam perecer. O problema é que nem todos morrem, e o Estado Maior, que se antecipou aos factos e publicitou o sacrifício supremo dos soldados em prol do Império, exige que o destino se cumpra; que não haja, como não era suposto haver, sobreviventes. É assim decretada Morte, como, de acordo com Hannah Arendt, só os melhores (piores) burocratas são capazes de fazer. Tudo isto serve como pano de fundo a uma meditação dura sobre as noções tradicionais de honra e dever no Japão, um contraponto para a ligeireza e admiração com que os mesmos conceitos são amiúde abordados no Ocidente.

Graficamente o desenho de Mizuki é funcional, mas não particularmente atrativo, e se em “NonNonBa” os seres fantásticos pontuavam as histórias utilizando de forma inteligente as caraterísticas caricaturais do traço, em “Marcha para a morte!” é por vezes difícil distinguir as diferentes personagens, os muitos soldados que compõem o exército amaldiçoado pelo destino. Mas isso acaba por resultar a favor da obra, com as narrativas e percursos pessoais individualizados apesar das semelhanças na representação, todos os soldados fazendo um só. Fundamental é também a (não) imagem do “outro”, os soldados norte-americanos que aqui surgem como fantasmas quase invisíveis, com recurso também a imagens fotográficas, que contrastam com a humanização dos soldados japoneses. No fundo, Mizuki podia perfeitamente estar a falar de seres extraterrestres, e essa incapacidade de intuir a semelhança na diferença de quem está do outro lado de uma qualquer barricada, é uma das forças da sua obra, fazendo de “Marcha para a morte!” uma das mais brilhantes obras anti belicistas em banda desenhada.

Marcha para a morte! Argumento e desenhos de Shigeru Mizuki. Devir. 368 pp., 25 Euros.



terça-feira, 25 de junho de 2019

ECONOMIA


Na minha profissão de biólogo sou constantemente confrontado com o facto de muita gente considerar as Ciências da Vida impenetráveis, impossíveis de entender pelo comum dos mortais, e com muito pouca utilidade, apesar de todas as evidências tecnológicas em contrário. Nessas ocasiões tendo a responder que, idealmente, o pensamento científico é uma maneira muito útil de abordar o mundo, capaz de avançar o conhecimento nos mais variados assuntos, de fazer previsões, e de mudar na presença de novos dados, desde que convincentes. Pelo contrário, outras formas de questionar a realidade, tão ou mais opacas para o cidadão comum, parecem, não só presas a dogmatismos inverificáveis, mas sobretudo patologicamente incapazes de acertar uma análise ou de aumentar o nosso conhecimento, teimando em soluções que já provaram a sua inutilidade. No entanto, os seus especialistas (e as escolas que os formam) continuam a ter infindável prestígio, poder e tempo de antena, mesmo (ou sobretudo?) quando erram. Podia estar a falar de futebol ou de política. Mas estava a pensar em Economia. Daí a importância de “Economix”, um excelente lançamento da Arte de Autor.

Nesta obra o argumentista Michael Goodwin parte dos mesmos pressupostos, mas tenta percebê-los, e, sobretudo, explicá-los de modo simples e direto (mas nem por isso menos rigoroso), utilizando o imenso poder das codificações inerentes à banda desenhada. Conta aqui com um notável trabalho gráfico a preto e branco de Dan Burr, que perde neste livro a riqueza de traço e sombras de obras anteriores (os aclamados “Kings in Disguise” ou “On the Ropes”, ambos com argumento de James Vance), para ganhar uma clareza esquemática que é essencial para captar as mensagens do argumento. Em “Economix” não aparecem só figuras tutelares bem conhecidas, como Adam Smith, Thomas Malthus, Karl Marx, John Maynard Keynes, John Kenneth Galbraith ou Milton Friedman (que nem sempre disseram aquilo que pensamos que disseram), mas também outras, como o britânico David Ricardo (1772-1823), descendente de judeus sefarditas portugueses vindos da Holanda, autor da teoria da “vantagem comparativa”, e que Goodwin classifica como: “a mais importante pessoa de que você nunca ouviu falar”. Mas este não é um livro sobre pessoas e suas teorias (embora exija muito do leitor a esse nível), mas sobre o modo como Economia, Política e Sociedade se têm relacionado ao longo da história contemporânea, com o grande mérito de considerar o mundo como um todo, e não ter medo de chamar as coisas pelos devidos nomes. E talvez a mensagem mais importante esteja no modo como o livro contextualiza diversos marcos históricos do ponto de vista económico, mostrando como, ao ignorar as contingências de um mundo real que diz modelar, muita da ciência económica está fadada ao insucesso. Ou, noutra perspetiva, que há explicações muito simples para realidades menos agradáveis, caso estejamos dispostos a enfrentá-las. Por último, “Economix” tem, como o próprio Goodwin refere, o mérito fundamental de estimular outras leituras, sobretudo quando não está bem certo das suas posições, assumidamente (também) políticas. Até porque, já depois da publicação original deste livro (2012), houve Trump, e a internet não é nada daquilo que Goodwin achava na altura.
“É a Economia, estúpido!”, foi um dos slogans de James Carville para Bill Clinton; e é importante que, mesmo no nosso “papel” de consumidores, não sejamos estúpidos com ela. Ou deixemos que façam de nós estúpidos. No mínimo, deveríamos usar algo como o pensamento científico para avaliar evidências, e chegar, com um mínimo de vieses, a conclusões tão informadas quanto possível.



Economix: Como a Economia funciona (e não funciona) em palavras e imagens. Argumento de Michael Goodwin, desenhos de Dan E. Burr. Arte de Autor. 304 pp., 21,95 Euros.



BESTAS


Nas mais diversas mitologias não é incomum encontrar relatos de heróis (impolutos ou menos, improváveis ou nem tanto) lutando contra monstros que representam o caos, a morte, desejos inconfessados, ou o medo do desconhecido. Perseu, Teseu, Hércules, Marduk, Thor, Indra, Sigurd, Dobrynya Nikitich, Iovan Iorgovan, São Jorge, e tantos outros, combatem Minotauros, Medusas, ou diferentes versões de um Dragão. E ao lembrar as lendas é fácil que heróis e monstros se transformem uns nos outros, tantos são os pontos de contacto. Escrito perto do ano 1000, o anónimo poema épico “Beowulf” é um marco na literatura anglo-saxónica, e tem tido inúmeras adaptações para os mais diversos formatos, incluindo a banda desenhada. Tantas que, à partida, se questiona a necessidade de mais uma; o que seria um grave erro, já que é imprescindível conhecer a magnífica adaptação de Santiago García, com uma vibrante intervenção gráfica de David Rubín (Ala dos Livros).

Nesta sua visão de uma história já muitas vezes contada, os autores espanhóis, sendo fiéis ao original, conseguem dar a volta a eventos que não têm como não ser previsíveis. Passada em vários reinos nórdicos na região das atuais Suécia e Dinamarca, a história é protagonizada por Beowulf, jovem guerreiro do reino dos Getas, que se oferece para combater o terrível monstro Grendel, que ronda um reino vizinho, espalhando morte e destruição. Vencido Grendel Beowulf tem seguidamente de lidar com a sua mãe, que procura vingar o filho. Mais tarde, um já envelhecido Beowulf, agora Rei relutante dos Getas, tem a sua última batalha, salvando desta vez o seu reino de um mais “clássico” dragão. Deixando de lado as inevitáveis incongruências que rodeiam mitos, e nas quais as provações sucessivas ao herói parecem surgir a pedido, a história é feita para uma orgia de ação, “oferecendo” de bandeja um (quase super) Herói, e combates com três monstros, cada um mais terrível do que o anterior. Embora comece num registo clássico, David Rubín não desdenha esse pretexto, pelo contrário. É certo que o seu virtuosismo pode por vezes confundir, e nem sempre se justifica, mas a planificação de algumas pranchas é extraordinária na sua inovação, oferecendo numa só imagem múltiplas perspetivas, o que permite criar narrativas paralelas, focar pormenores, densificar o horror, ou dar a visão de uma mesma cena através de diferentes olhares. O uso da cor (com destaque natural para o vermelho e negro) ajuda a manter um dinamismo trágico e visceral, potenciando o efeito surpreendente do desenho.

Claro que uma mera sucessão de batalhas constituiria uma abordagem superficial, e se Rubín usa soluções gráficas interessantes (incluindo o uso exclusivo do desenho) para contar as diferentes “histórias dentro da história”, Santiago García emprega de maneira inteligente outros aspetos de “Beowulf”, incluindo meditações, entre o profundo e o gongórico, sobre coragem e dever, focando na parte final o inevitável triunfo do envelhecimento, que tudo apaga, menos a lenda. A história não segue por esse lado (a não ser numa sugestão homoerótica em plena batalha), mas ao fundir Beowulf e Grendel na capa os autores sugerem uma ligação mais visceral entre herói e monstro; se bem que o Grendel-personagem tenha a subtileza de um rolo compressor, e “apenas” possa servir como encarnação de um Id desenfreado, um pretexto para heróis e seus leitores questionarem identidades e limites. Numa excelente edição luxuosa da nova editora Ala dos Livros, este é um livro que urge conhecer, provando que há sempre maneiras inovadoras para abordar as mais conhecidas lendas.

Beowulf. Argumento de Santiago García, desenhos de David Rubín. Ala dos Livros. 200 pp., 25 Euros.