terça-feira, 9 de julho de 2019

DESONRA


No meio editorial estranhamente pujante que é o da BD nacional há, no entanto, propostas que merecem uma referência especial, seja pela dimensão, seja pelo arrojo. Ou, no caso de “Marcha para a morte!” de Shigeru Mizuki, pelas duas coisas, destacando-se a “reincidência” de editora Devir, que já tinha editado o igualmente monumental “NonNonBa”. Porquê? Porque as grandes radiografias do Japão que compõem a obra de Mizuki (1922-2015), estando presas a um espaço-tempo e a um estilo gráfico, tudo transcendem, para se tornarem manifestos sobre a condição humana.

Se “NonNonBa” (1977) abordava a mitologia japonesa e a infância do autor, “Marcha para a morte!” (1973) utiliza as suas experiências como soldado do exército japonês nas ilhas do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. E é uma crítica demolidora ao militarismo em geral, e à abordagem nipónica em particular. Se no início “apenas” somos confrontados com o quotidiano quase banal e a estupidez (a todos os níveis) da guerra, mais tarde, e numa situação de derrota japonesa iminente, líderes incompetentes que só se preocupam com a sua imagem, decretam para os seus soldados a “morte nobre”; um ataque suicida em que todos deveriam perecer. O problema é que nem todos morrem, e o Estado Maior, que se antecipou aos factos e publicitou o sacrifício supremo dos soldados em prol do Império, exige que o destino se cumpra; que não haja, como não era suposto haver, sobreviventes. É assim decretada Morte, como, de acordo com Hannah Arendt, só os melhores (piores) burocratas são capazes de fazer. Tudo isto serve como pano de fundo a uma meditação dura sobre as noções tradicionais de honra e dever no Japão, um contraponto para a ligeireza e admiração com que os mesmos conceitos são amiúde abordados no Ocidente.

Graficamente o desenho de Mizuki é funcional, mas não particularmente atrativo, e se em “NonNonBa” os seres fantásticos pontuavam as histórias utilizando de forma inteligente as caraterísticas caricaturais do traço, em “Marcha para a morte!” é por vezes difícil distinguir as diferentes personagens, os muitos soldados que compõem o exército amaldiçoado pelo destino. Mas isso acaba por resultar a favor da obra, com as narrativas e percursos pessoais individualizados apesar das semelhanças na representação, todos os soldados fazendo um só. Fundamental é também a (não) imagem do “outro”, os soldados norte-americanos que aqui surgem como fantasmas quase invisíveis, com recurso também a imagens fotográficas, que contrastam com a humanização dos soldados japoneses. No fundo, Mizuki podia perfeitamente estar a falar de seres extraterrestres, e essa incapacidade de intuir a semelhança na diferença de quem está do outro lado de uma qualquer barricada, é uma das forças da sua obra, fazendo de “Marcha para a morte!” uma das mais brilhantes obras anti belicistas em banda desenhada.

Marcha para a morte! Argumento e desenhos de Shigeru Mizuki. Devir. 368 pp., 25 Euros.



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