domingo, 15 de abril de 2018

SACIAR


Pensadas inicialmente para a revista “Granta” (só uma foi publicada na altura) as duas histórias que compõem “Comer/Beber” (Tinta da China) constituem a mais recente, e muito badalada, obra da dupla Filipe Melo e Juan Cavia. “Sleepwalk” (comer) tem como fulcro uma tarte de maçã (a receita está no fim do livro), e passa-se entre o Arizona e o Texas, em 1984. “Majowski” (beber) gira em torno de uma garrafa de champanhe, e tem lugar sobretudo num restaurante em Berlim, entre 1935 e 1943. 

Se o ritmo de “Sleepwalk” faz jus ao título, a história surpreende por aquilo que não diz, um relato de dissolução inexorável feita de solidões cruzadas, que o leitor terá de reconstruir. Como um conto escrito por Sam Shepard, inspirado por imagens de Edward Hopper iluminadas pelas cores do deserto. Até pelo fôlego temporal, “Majowski” é mais complexa, talvez também porque baseada em eventos reais (há um pequeno dossiê no final), contando com colaborações no argumento e arte, e com cores apropriadamente mais carregadas. Aqui o principal mérito é o modo como, em curtos episódios numa história já de si curta, texto e desenho conseguem definir de forma credível a evolução necessariamente complexa de personagens e do próprio regime nazi ao longo de vários períodos (da glória de Marlene Dietrich, aos bombardeamentos dos aliados). Fugido da Polónia em 1917, o protagonista vê-se enredado num ambiente que o projeta, ao mesmo tempo que o oprime, e essa contradição é muito bem trabalhada. Uma contradição que espelha, num certo sentido, a posição do protagonista de “Sleepwalk”, simultaneamente amigo e carrasco.

Distante das citações pop do cinema fantástico na série “Dog Mendonça e Pizzaboy”, ou da abordagem alegórica mais “pesada” da Guerra Colonial de “Os Vampiros”, no díptico “Comer/Beber” parece haver alguma preocupação em manter referências universalizantes reconhecíveis que lhe concedam desde logo outra dimensão de leitura; sejam a Berlim hitleriana, ou os grandes espaços do sudoeste dos EUA. Mas estas são claramente histórias mais intimistas, que respiram a evolução de uma época (“Majowski”) ou o silêncio (“Sleepwalk”). Onde o saciar de duas necessidades básicas surge enquanto redenção que transcende o momento, graças a uma garrafa que sobrevive anos de chumbo, ou a uma receita que ressuscita uma última vez. E nas quais, de forma reveladora, não há sinal dos elementos sobrenaturais ou fantásticos que caraterizaram as obras anteriores.
Perguntar-se-á: mas, dada a sua aparente simplicidade (mormente quando comparada com “Os Vampiros”), merece “Comer/Beber” todo o destaque mediático que teve? Sem dúvida, não só pelo modo inteligente como estão construídas as duas histórias, mas por poderem representar um primeiro passo muito interessante rumo a outro tipo de narrativas na evolução da dupla Melo e Cavia. Não é que a pergunta não seja válida, está é mal formulada. O problema não é o espaço que Filipe Melo soube conquistar, antes os (misteriosos) critérios que parecem limitar destaques similares para as muitas notáveis obras (incluindo de autores portugueses) que as nossas excelentes editoras de banda desenhada têm vindo a publicar.


Comer/Beber. Argumento de Filipe Melo (com Nádia Schilling), arte de Juan Cavia (com Juan Cruz Rodriguez e Sandro Pacucci). Tinta da China. 64 pp., 12 Euros.