segunda-feira, 19 de novembro de 2018

EDUCAÇÃO


Cada geração (seja lá como for que se defina essa entidade fluida) tem como ponto de honra do seu percurso zurzir educativamente na que lhe sucede. Porque “no nosso tempo é que era, e tínhamos de estudar... (preencher espaço em branco com algo como: latim, francês, livros em papel...)”; e, por consequência, ”os miúdos de hoje não sabem nada!” Esse discurso convenientemente esquece que gerações mais novas vivem num contexto distinto (duvido que algum seu membro leia isto); ou que muito daquilo que expressam é devido a comportamentos sociais que implicam também os seus progenitores. E o sistema educativo também teria obrigação de se adaptar, apesar de ter vindo a ser cada mais desvalorizado. Um tipo de resposta pode ser superficial, implicando o prolongamento do mesmo programa por outros meios, algo que também cria novos mercados, já agora. É, notoriamente, o caso do universo fascinante das “explicações”, antes pontuais e para algumas matérias nos últimos anos do ensino secundário, hoje ubíquas para todos os assuntos, da primária ao superior.
Viver de banda desenhada não é fácil, e dar explicações de Geometria Descritiva é uma das soluções que Álvaro usa para chegar ao fim do mês. Autor de obras como “Sexo, mentiras e fotocópias” ou “Balcão trauma”, Álvaro é candidato há anos ao prémio apócrifo de “melhor humorista português a merecer um reconhecimento mais amplo”. Em “Conversas com os putos” as situações são tiradas, diz o autor, de comentários reais de explicandos; provando mais uma vez que o pior da realidade pode resultar no melhor do humor. Depois de um primeiro volume (Polvo, 2017), segue-se agora um segundo em edição própria (Insónia Edições, 2018) que, e isto é sintomático, inclui também “bitaites” dos pais dos alunos, demonstrando, se era preciso, que as gerações são produtos umas das outras; e, por conseguinte, que vamos piorando (perdão! mudando...) em sintonia uns com os outros, e com o restante universo. 

O traço caricatural de Álvaro é de uma simplicidade desarmante, muito eficaz a resumir situações, comportamentos e personalidades, sempre em risco de desaguar no grotesco. É nesse controlo de exageros que se joga a parte visual do seu humor, como na obra seminal sobre o pequeno (grande) poder do funcionário rígido e incompetente “Sexo, mentiras e fotocópias”. E se em “Balcão Trauma” surgiam desequilíbrios, os momentos de “Conversas com os putos (e com os pais deles)” mostram um Álvaro em plena forma. Não só pelo humor por vezes inacreditável das situações em si, mas porque, apesar de serem curtos episódios isolados, ao longo do livro Álvaro deixa claro que o problema vai bem para lá da pusilanimidade das pessoas com quem interage, e para quem as explicações são uma obrigação sem grande sentido. Se há sempre a tentação de pairar por cima do oceano de ignorância numa posição de superioridade intelectual (e moral), a verdade nua e crua é que o autor é mais refém da sua educação do que os seus explicandos, ou os ainda mais preocupantes progenitores. Os primeiros em breve esquecerão tudo o que foram forçados a “marrar”, os segundos demonstram que não é preciso muito para triunfar na vida, desde que “triunfar” signifique conseguir pagar explicações aos filhos. Claro que há exceções e exemplos de compaixão e generosidade, necessários até para aliviar a carga potencialmente negativa e de sentido único que uma abordagem destas poderia ter. Mas o essencial é isto: não estamos a educar bem, e devíamos fazer algo sobre isso. Sermos capazes de rir das nossas limitações já é um (bom) princípio.


Conversas com os putos. Argumento e desenhos de Álvaro. Polvo. 64 pp., 7,90 Euros.
Conversas com os putos (e com os pais deles). Argumento e desenhos de Álvaro. Insónia (insonia.edicoes@gmail.com). 80 pp., 11 Euros.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

MUÇULMANA


Vivemos num mundo multicultural que se vai tornando global; ou num mundo globalizado no qual o multiculturalismo assume contornos locais, entre a normalidade, o trágico e o turístico? Seja como for é necessário conviver com a diferença, se bem que pareça sempre haver, em cada contexto específico, “diferenças mais diferentes do que outras”. Algo que também se tem de refletir do universo dos super-heróis, e um dos exemplos mais interessantes, relevante para lá da banda desenhada, é a nova “Ms. Marvel” (G. Floy Studio).

Americana de New Jersey, a premiada argumentista G. Willow Wilson cresceu numa família ateia, e foi um período de descoberta sobre as diversas religiões a conduzi-la, já em adulta, ao Islão, ao qual se converteu, tendo vivido um período no Egito e adotado o “hijab”. E é na sua comunidade norte-americana de origem que a adolescente filha de imigrantes paquistaneses Kamala Khan, se vai transformar na nova “Ms. Marvel”, equilibrando a vontade de inserção com o valor de tradições, mesmo quando estas parecem repressivas. E, sobretudo, mostrando com os seus retratos do dia a dia que a “cultura muçulmana” é tão variada como qualquer outra, e não se reduz a arquétipos. Ou que estes também têm as suas nuances, de afirmação a refúgio num contexto onde a aceitação não é total, apesar de todas as referências culturais comuns, sobretudo para a geração que cresce nos EUA. Apesar da premissa estar nos antípodas de outras personagens, esta é também uma história sobre dominar os “poderes” que se obtêm quando se passa da adolescência para a idade adulta, e de conjugar a vida para fora de casa com a vida familiar, uma tradição que vem da Marvel dos anos 1960, com o “Homem-Aranha” criado por Stan Lee e pelo recentemente falecido Steve Ditko.



Destinado a um público que se identifique com a realidade da protagonista, “Ms. Marvel” enquadra-se no tom da chamada literatura “YA” (“young adult”) na qual pontificam contemporaneamente muitas autoras (de S.E. Hinton a J.K. Rowling). É um rótulo como qualquer outro, mas, trabalhando uma mescla inteligente de banal e extraordinário, o traço na fronteira entre o realismo e a caricatura do canadiano Adrian Alphona (“Runaways”) é aqui fundamental, ao não deixar a história resvalar, nem para o dramatismo (onde tem mais dificuldades), nem para a leveza.
É certo que, neste primeiro volume, o contorcionismo da protagonista para acomodar as diferentes realidades que compõem o seu mundo subitamente em mutação é bastante mais interessante do que as suas aventuras como o novo (e ainda pouco hábil) paladino de Jersey City. Mas é um começo promissor para uma ideia tão original como necessária. Será “Ms. Marvel” capaz de captar um público potencialmente relevante que poderá não conseguir olhar para além dos super-heróis, que são, na verdade, o que menos importa aqui? Por exemplo, leitoras ou todos os interessados no lidar simultâneo de diferentes diferenças? Seja como for, esta é uma série estimulante, que consegue provocar com a sua busca de uma normalidade que não se sabe qual seja, em circunstâncias que nunca serão normais. Bem-vindos ao mundo real.



Ms Marvel 1: Fora do normal. Argumento de G. Willow Wilson, desenhos de Adrian Alphona. G. Floy Studio. 120 pp., 13 Euros.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

HOLLYWOOD


Queremos mesmo saber a verdade sobre o que admiramos, sejam pessoas, organizações, filosofias? Ou preferimos a Lenda à História? Mais do que isso: não nos importamos de ser enganados, ou queremos mesmo ser enganados; somos passivos ou ativos na nossa demanda de absolutos idealizados que consumimos, mas em relação aos quais nunca nos poderemos comparar?
A indústria cinematográfica trabalha estes conceitos há décadas e, se mesmo hoje, numa idade de informação instantânea (e supostamente “democrática”) se consegue esconder tanta coisa, o que dizer das décadas de 1940-50, quando o “boom” de produção de estrelas e mitos em Hollywood estava em plena consolidação? Num ambiente de policial “negro”, a que junta a “caça às bruxas” anticomunista do macarthismo, é este o fulcro de “The Fade Out: Crepúsculo em Hollywood” do argumentista Ed Brubaker e do desenhador Sean Phillips, (mais) uma imprescindível edição da G. Floy Studio. 
A evolução desta dupla tem sido muito interessante (“Sleeper”, “Incognito”, “Criminal”, “Fatale”), notando-se uma evolução em termos das relações entre pessoas e destas com as várias formas de Poder, muito visível em “The Fade Out”. E este é também um projeto pessoal: John Paxton, tio de Brubaker, foi argumentista em Hollywood nessa época (adaptou “Farewell My Lovely”, de Raymond Chandler em 1944, por exemplo), e a mulher Sarah Jane trabalhava como relações públicas na 20th Century Fox. As suas histórias/memórias servem de ponto de partida a “The Fade Out”, onde o argumento mistura ficção com elementos claramente “inspirados em eventos reais”, incluindo aparições de atores conhecidos (Clark Gable, Ronald Reagan) e outros (mal) disfarçados, para evitar polémicas, presume-se. Passado em 1948, se há algo a apontar a “The Fade Out” é precisamente a multiplicidade de histórias e pontos de vistas que se cruzam, desde mistérios que vêm do tempo do cinema mudo, de cultos como o “Great Eleven Club”, traumas da Segunda Guerra Mundial, escritores na lista negra que usam os nomes de colegas para poderem assinar trabalhos (como Dalton Trumbo), a influência controladora e chantagista do FBI sobre os estúdios, produtores lascivos que nem sonhavam com o #MeToo, atrizes rapidamente substituídas, atores disfarçando a sua sexualidade e quase morrendo em acidentes de carro (como Montgomery Clift). E todos os mecanismos para esconder da imprensa (como as colunistas verrinosas Hedda Hopper e Louella Parsons) identidades ou pecados que só se perdoam se forem os pecados “certos”; cometidos pelas pessoas “certas”. Com recurso a extensa documentação, o universo fascinante e sórdido que os autores evocam vale em si mesmo, com o excelente desenho anguloso e realista de Sean Phillips a destacar-se pela forma brilhante como isola e marca as personagens em momentos de tensão e desespero. E vale a pena citar o magnífico trabalho de Elizabeth Breitweiser na aplicação de cor, como se estivéssemos a assistir a um filme a preto e branco em versão sépia.
Claro que esta é uma história policial com o seu quê de clássico, ou não fora o próprio Dashiell Hammett fazer uma breve aparição para aconselhar personagens inspiradas nos secundários mais perdidos e ingénuos dos seus livros. Como tal, o crime e quem o comete é sempre acessório, mais importante é o espelho que ergue à sociedade que retrata. Ainda assim o desenlace anti climático de “The Fade Out” parece demasiado forçado; uma espécie de final de “Os Sopranos”, mas em expositivo. Brilhante na surpresa; ou sinal de cansaço, como o que invade o protagonista? Seja como for: um retrato a ter em conta, porque o culto das aparências e suas “verdades” não mudou nada.

The Fade Out: Crepúsculo em Hollywood. Argumento de Ed Brubaker, desenhos de Sean Phillips, cores de Elizabeth Breitweiser. G. Floy Studio. 400 pp., 35 Euros.

domingo, 9 de setembro de 2018

MENTAL


Os labirintos da saúde mental são terreno de discussão fértil (e difícil). Onde começa a loucura e acaba o génio, onde acabam caraterísticas individualizadoras e começam comportamentos destrutivos. Como definir a fronteira entre uma “simples” depressão e patologias neuropsiquiátricas; de que modo se devem diagnosticar e abordar terapeuticamente. E qual o papel de tudo isto para a criatividade. Dois livros muito interessantes editados pela Polvo abordam, de maneira distinta, este tema.
Escrito e desenhado por André Diniz, um excelente autor brasileiro radicado em Portugal. “Malditos amigos” segue, num tom entre o intimista e o analítico, o atormentado percurso de Ramsés, antigo autor de fanzines e atual tatuador; cuja vida pessoal e profissional parece presa por arames que, em vez de se consolidarem, quebram e enovelam-se. Com tudo para ser bem-sucedido o protagonista esgota-se (e aos que o rodeiam) em insatisfações depressivas, acopladas a um comportamento agressivo e vazios na memória, que o fazem duvidar de si mesmo, a todos os níveis. 

O argumento assume um desassombro quase aflitivo, que nos liga a Ramsés apesar de nunca parecermos ter toda a informação necessária para decifrar as suas lutas interiores. Do ponto de vista gráfico as obras de Diniz tendem a ganhar quando interpretadas por outros autores, como sucede no pungente retrato sobre violência e tráfico de droga nas favelas do Rio de Janeiro que é “Olimpo tropical” (Polvo, desenhos de Laudo Ferreira). O traço grosso e caricatural de Diniz tem limitações em termos de recursos e alcance (a adaptação de “O idiota” de Dostoievski é um exemplo claro), mas em “Malditos amigos” é essa mesma fragilidade simples e eficaz que concede um sentido de familiaridade e proximidade com o protagonista, marcado por sombras e pelo (literal) fantasma depressivo que o vai assombrando. Sobretudo sente-se que Diniz seria o único desenhador possível para este projeto, que se intui muito pessoal (como “O idiota”, curiosamente), e que vale a pena conhecer.

O mesmo se pode dizer de “Os regressos” no qual o crítico e argumentista Pedro Moura prolonga a sua colaboração com a desenhadora Marta Teives, desta feita numa obra mais longa do que as (excelentes) histórias curtas anteriores. Tal como nesses contos, temos uma protagonista em suspenso: apesar de não ter pruridos em se identificar como ex-“maluca”, Madalena surge-nos presa de um passado feito de memórias (nem sempre felizes) cuja lenta recuperação se inicia com o regresso ao local de infância (um dos regressos do título). Entre estranheza, loucura, alguma violência implícita, diagnósticos, psicofármacos e a (re)criação (ou redescoberta?) de um rico mundo de fantasia, a vida anterior e atual de Madalena espreita o leitor. Sugerida, mais do que contada, por entre as pontas do argumento e no desenho notável de Marta Teives, muito eficaz nos diversos cambiantes, utilizando um registo de “realismo flexível”. A contracapa avisa que nunca se deve regressar a um sítio onde já se foi feliz, mas sente-se que ao ler “Os regressos”, ou “Malditos amigos”, não temos informação suficiente para apreciar devidamente as espirais (em sentidos opostos) dos protagonistas. A questão aqui é sempre a mesma: com uma narração mais expositiva corre-se o risco de encadear com o óbvio, procurando uma subtileza que se quer orgânica (clara na relação texto-desenho de Moura e Teives) ou múltiplos ângulos/aspetos (no caso de Diniz) pode não se conseguir a empatia necessária para apreciar todos os sacrifícios das personagens, e os seus respetivos desenlaces. Mas aguardam-se com expetativa projetos futuros destes excelentes autores.



Malditos amigos. Argumento e desenhos de André Diniz. Polvo. 200 pp., 12 Euros.
Os regressos. Argumento de Pedro Moura, desenhos de Marta Teives. Polvo. 72 pp., 10 Euros.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

APATIA


Adaptar um romance para banda desenhada é sempre uma tarefa ingrata. Mesmo com descrições detalhadas a componente visual é imaginada no original, em BD há um ponto de partida gráfico que define a interpretação, e do qual não se pode fugir. Perdem-se umas dimensões, ganham-se outras. Na sua premiada adaptação de “Afirma Pereira” (2016) o francês Pierre-Henry Gomont faz um trabalho notável na abordagem do romance homónimo (1994) do escritor italiano Antonio Tabucchi (1943-2012). Não é (bem) o mesmo livro, nem poderia ser, mas é uma obra excelente, muito distinta (atrevo-me a dizer: com menos limitações) da adaptação para cinema (de Roberto Faenza em 1996, com Marcello Mastroianni).

A estreita ligação de Tabucchi a Portugal é bem conhecida, e “Afirma Pereira” uma visão lúcida da vida no Estado Novo, em 1938. Fugindo um pouco do registo de interrogatório do original, a BD segue a transformação do protagonista, de reservado cronista de cultura num jornal de Lisboa, a questionador ativo da realidade que o rodeia. Uma realidade feita de opressão, de verdades sonegadas, de pequenos informadores; de apatia medíocre. Mas também das (algo previsíveis) jovens perspetivas de mudança, inflamadas pela Guerra Civil na vizinha Espanha, que, no entanto, parecem oscilar entre o ingénuo e o inconsequente. Até que o equilíbrio é perturbado, alguma ação se torna inevitável, como inevitáveis serão as suas consequências. Atormentado por fantasmas de vidas que não teve, profundamente desiludido por um presente (o corpo, as amizades, a profissão) do qual se aliena refugindo-se em traduções de Balzac ou Daudet, procurando respostas possíveis na religião, literatura, filosofia, política, ou medicina, Pereira vai-se deixando contaminar por outras visões que, no entanto, não só não entende bem, como não sabe como operacionalizar. No fundo, Tabucchi e Gomont discutem o papel da cultura (e dos intelectuais) em tornar possível uma, aparentemente distante, Revolução.
Pierre-Henry Gomont tem um traço seguro, mas de aparência hesitante, marcado por excelentes cores crepusculares que, exaltando a luminosidade de Lisboa, paradoxalmente sublinham, até melhor que o preto e branco, o “cinzentismo” do período; bem como as angústias do protagonista e o seu evoluir enquanto cidadão. De resto, até a escolha de papel utilizado contribui para o excelente trabalho global da G. Floy Studio, dando ao livro uma qualidade de nostalgia mate. E se o autor arranja soluções gráficas engenhosas para os diálogos (monólogos) internos de Pereira, define muito bem as restantes personagens, que devem ser vistas, não como entidades em si mesmas, mas enquanto interpretações do próprio Pereira. Algo que justifica, quando necessário, a caricatura demasiado óbvia, ou mesmo a não-definição (como a que carateriza a polícia política). Em “Afirma Pereira” assume-se que grande parte do poder opressivo resulta de resignação e concordância genéricas que ninguém parece saber muito bem como foram definidas; coisas das quais não parece haver libertação, e que todos sabem que sabem. Tanto do lado dos convictamente a favor, como dos assumidamente contra. Como ainda dos resignados, distraídos ou ignorantes, que, de vez em quando, acordam e podem fazer tombar balanças. É que por vezes a mudança vem de onde menos se espera; basta não ter medo. De falhar, mas, também, de triunfar. Mesmo que nada aconteça senão o exílio, ao menos tentou-se.


Afirma Pereira. Argumento e desenhos de Pierre-Henry Gomont, adaptando o romance homónimo de Antonio Tabucchi. G. Floy Studio. 160 pp., 18 Euros.




sexta-feira, 20 de julho de 2018

ACÁCIO


A banda desenhada portuguesa tem tido poucas figuras de dimensão global. Não que muitos dos nossos excelentes autores não sejam reconhecidos (e editados) internacionalmente, refiro-me aqui ao aportar de uma dimensão adicional clara, que obrigaria a falar deles mesmo que não fossem portugueses. Não sendo totalmente insano fico-me pelo óbvio histórico, constituído por nomes conhecidos também de outras atividades: Rafael Bordallo Pinheiro, Carlos Botelho, Stuart Carvalhais, E. T. Coelho.
Um conjunto ao qual gostaria muito que fosse possível adicionar Fernando Relvas (1954-2017). Quem descobriu as suas páginas (na revista “Tintin”, no semanário “Se7e”) reconheceu de imediato um talento inato no traço, na anatomia, no movimento, no jogo de sombras, na composição gráfica da página, na definição de personagens, na construção de diálogos, no fluir da narrativa. O preto e branco de Relvas tem uma qualidade excecional, e não se diz isso de muitos. Qual é, pois, a questão? Desde logo a continuidade. Publicando regularmente na imprensa, a BD de Relvas ironicamente sofre com o seu talento espontâneo e repentista, e as histórias tendem a perder foco (mesmo considerando a sua vertente nonsense); sobretudo quando lidas de seguida, e não ao ritmo a que foram publicadas. Noutra perspetiva, mesmo no caso dos (mais ou menos) “reformados” da BD, como, por exemplo, António Jorge Gonçalves, Miguel Rocha, João Paulo Cotrim ou José Carlos Fernandes há bibliografia que pode ser mostrada a novos leitores, e que facilmente justificaria a sua posição enquanto autores de relevo, não só em Portugal. No caso de Relvas é, sejamos justos, mais difícil. A exceção é a aventura urbana “L123 (seguido de Cevadilha Speed)”, original de 1981, coligido em 1998, e um dos melhores livros da BD portuguesa. 

Daí a importância de edições cuidadas como “O espião Acácio”, que reúne as histórias curtas humorísticas publicadas na revista “Tintin” entre 1978 e 1980. Passada numa Primeira Guerra Mundial apócrifa, as aventuras do protagonista homónimo são, no fundo, um comentário sobre a essência, não do português, mas do “tuga”. Nas diversas peripécias inverosímeis a que o autor o sujeita Acácio de Mello passa incólume enquanto camaleão oportunista adaptável a diferentes realidades, que espia para todos, e que só se safa porque o mundo que o rodeia ainda é menos inteligente do que ele. Para além do virtuosismo gráfico (e de elementos que se calhar hoje já não poderiam ser publicados do mesmo modo), é delicioso ver as mais diversas citações, de tudo. É certo que “Acácio” prefigura também aquilo que iria acontecer noutros trabalhos, com a oscilação constante da história, que inclui a intromissão de elementos anacrónicos (como a ficção científica), embora aqui o nonsense assumido ancore a série. Numa sequência muito conseguida Relvas farta-se da personagem e resolve acabar com ela, sendo forçado a voltar atrás num momento de meta-narrativa em que o autor é confrontado por um editor anónimo. Algo que, se calhar, deveria ter acontecido mais vezes.

Não é possível hoje puxar as orelhas a Relvas, como não o foi no passado. Mas esta é uma edição essencial para se entender o seu percurso, e alvíssaras são devidas à Turbina/Mundo Fantasma, e a Júlio (M)oreira e Margarida Mesquita, por um serviço que transcende memórias pessoais. Já agora: alguém que edite a página de Fernando Relvas na Wikipedia. Merece mais.

O espião Acácio. Argumento e desenhos de Fernando Relvas. Turbina/Mundo Fantasma. 120 pp., 22 Euros.

SÚMULAS


Utilizar a banda desenhada para comunicar de maneira eficiente informação complexa a diferentes tipos de públicos é algo já com grande aceitação, incluindo algumas iniciativas nacionais. Se a Medicina Gráfica utiliza experiências pessoais para humanizar e contextualizar reflexões sobre temas relacionados com a Saúde, incluindo componentes não necessariamente científicos; na Divulgação Científica a ideia é utilizar a BD para descodificar conhecimentos de modo rigoroso, mas acessível. Contando com propostas muito interessantes no seu catálogo (“Logicomix”, “Cosmicomix”, livros de Larry Gonick), a Gradiva tem dado continuidade ao seu excelente trabalho nesta área.

O título “Hubert Reeves explica a Biodiversidade” é revelador da autoridade (sobretudo no meio francófono) do astrofísico e divulgador canadiano Hubert Reeves (conhecido por obras como “Um pouco mais de azul”), que se tem preocupado mais recentemente com a (perda de) biodiversidade. Utilizando uma visita de estudo pela região francesa da Occitânia, Reeves reflete sobre a natureza da biodiversidade, alertando para os perigos que a afetam utilizando de modo eficaz ligações ao dia a dia. O que não significa que todos se revejam nas suas interpretações. Dos combustíveis fósseis às espécies invasoras Reeves tem o condão de evitar associações maniqueístas ou definitivas, focando-se, ao invés, numa abordagem de diálogo permanente e adaptação. Registe-se que a eficácia da mensagem muito deve ao excelente desenho do francês Daniel Casanave, cujo traço enganadoramente simples, servido por cores luminosas, é ideal para o envolvimento do leitor, e para a clareza que a obra pede.



A este livro em formato de álbum franco-belga acrescem dois pequenos volumes traduzidos da “Petite Bédéthéque des Savoirs” (Éditions du Lombard). “O Universo” volta a juntar Reeves e Casanave, e a verdadeira chave deste livrinho está no subtítulo: “Criatividade cósmica e artística”. Reeves revela mais uma vez a sua vertente holística, discutindo as propriedades que governam, não só o cosmos e a vida, mas também a criação artística e cultural. Obrigando a refletir de forma estimulante, esta abordagem será menos consensual do que as mensagens sobre biodiversidade, até pela falta de bases que apoiem alguns aspetos, roçando por vezes um certo misticismo determinista. Mas o desenho é notável, “aguentando” muito bem o pequeno formato. 

Já “Os direitos do Homem” não é divulgação científica, propondo-se desmontar a elaboração da “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, adotada pelas Nações Unidas em 1948; bem como os motivos que conduziram às escolhas dos seus redatores para que a mesma pudesse ser, na medida do possível, “universal”, e aprovada pela maioria dos 58 membros da ONU na altura (oito abstenções, incluindo os países europeus do ex-Bloco Soviético, Arábia Saudita, e África do Sul). Numa solução muito interessante, o argumentista belga François De Smet (também filósofo e jornalista) faz da própria “Declaração” narradora, assumindo-se como personagem na sua construção, desde os (tristes) acontecimentos históricos subjacentes (e subsequentes), até à motivação dos diferentes redatores, e à intersecção entre visão e compromisso que marcam este tipo de textos. Quanto ao desenho, o também belga Thierry Bouüaert tem um traço apropriadamente realista, e, embora o tamanho não seja aqui aliado do grafismo, as suas composições transmitem a urgência histórica, ao mesmo tempo que as cores escuras vincam o indisfarçável pessimismo de De Smet; no fundo, a antítese da esperança cautelosa de Hubert Reeves, partindo ambos do mesmo tipo de abordagem global. Leituras complexas e estimulantes podem sem dúvida vir em embalagens pequenas.


Hubert Reeves explica a Biodiversidade. Argumento de Hubert Reeves e Nelly Boutinot; desenhos de Daniel Casanave. Gradiva. 64 pp., 11,70 Euros.
O Universo: Criatividade cósmica e artística. Argumento de Hubert Reeves; desenhos de Daniel Casanave. Gradiva. 44 pp., 9,90 Euros.
Os direitos do homem: Uma ideologia moderna. Argumento de François De Smet; desenhos de Thierry Bouüaert. Gradiva. 84 pp., 9,90 Euros.

sábado, 23 de junho de 2018

DIÁLOGOS



Falar de banda desenhada e ilustração é (também) discutir um mundo onde palavras e (sobretudo) imagens se cruzam das mais diversas, e inesperadas, maneiras. Sugerindo, mais do que contando, mostrando portas, mais do que as abrindo. Até aquelas alturas em que nos perguntamos quando acabou aquilo a que estávamos habituados, e nasceu outra coisa qualquer.


Em “Retratos” André Ruivo propõe, precisamente, onze retratos em grande formato desenhados sem linha a preto, utilizando blocos de cores fortes e texturas a evocar lápis de cera ou giz. Mas quem são estas pessoas? Quanto mais se contemplam, mais parecem vagamente familiares, mais as cores vibrantes e pouco naturais assumem potenciais significados, mais nos preocupamos com as personalidades e possíveis vidas que estarão por detrás da representação, com as ligações entre elas. E traçamos outros retratos, em paralelo aos do autor.

Diametricamente oposto do ponto de vista gráfico é “O livro das imagens” de Sei Miguel, mais conhecido enquanto compositor e músico. O autor revela aqui um interessante traço fino a negro, cuja fragilidade surreal anima composições realizadas entre 2012 e 2015, potenciadas pelas várias possibilidades de “leitura” de cada desenho. O livro desde logo assume alguma narratividade em potência, um diálogo entre o nome de cada ilustração, os elementos gráficos, e o modo como os seus diferentes níveis se organizam no espaço. Por ali pululam sugestões de conflitos e hesitações, elementos de fábulas, monstros, lendas. Também aqui o prolongamento do olhar cria familiaridade, e começamos a encadear histórias retiradas de cada imagem, que nunca sabemos bem se eram aquelas que o autor tinha em mente, mas que (nos) fazem sentido.

Por último, o monumental “Desenhos efémeros” de António Jorge Gonçalves é uma obra estimulante, que dá testemunho da consolidação impossível de (parte de) uma notável obra, que há muito deixou as fronteiras da banda desenhada. Porquê impossível? Pela natureza dos trabalhos revisitados aqui, um pouco a BD, mas mais cenografias para teatro, os desenhos rápidos a passageiros no metro; e sobretudo as diversas performances de desenho ao vivo do autor, dialogando com música, escrita, bailado, representação. É esta a evolução da obra de António Jorge Gonçalves que o livro interroga, focando todo o trabalho (técnico, concetual) necessário para explorar um mundo no qual desenhos projetados sobre telas ou edifícios em tempo real, à medida que vão sendo produzidos, ganham vida própria num contexto específico, não só de espaço, mas também de tempo, que a fotografia (ou mesmo o vídeo) dificilmente apreenderiam. O livro compensa a tangente ao impossível com reflexões sobre esse diálogo permanente, quer do próprio autor, quer mediante textos de acompanhantes-cúmplices de percurso. Particularmente interessante é o modo como o autor enquadra esta sua evolução, como que utilizando a performance para “obrigar” um planeamento mais cerebral a dar lugar à rapidez instintiva no depurar de traço e composição; para mais tarde se afastar e analisar (de novo cerebralmente) o que aconteceu. E até que ponto se pode falar de diálogo entre formas de expressão, e não apenas encontros fortuitos? Como integrar os diferentes tempos de produção onde desenhar, por exemplo, parece andar sempre atrás do instantâneo da música? Quem potencia o quê, quando, como? E ainda: o que fazer a seguir?

Numa altura em que são contínuas as edições de diferentes tipos de banda desenhada (e ainda bem), é bom experimentar obras que nos desafiam a ir além das diversas caixas em que nos fomos inserindo; e a pensar se temos mesmo a certeza daquilo que temos a certeza.


Desenhos efémeros. Desenhos de António Jorge Gonçalves. Orpheu Negro, 336 pp. 28 Euros.
Retratos. Desenhos de André Ruivo. Mmmnnnrrrg/The Inspector Cheese Adventures. 11 pp., 10 Euros.
O livro das imagens, 2012-2013-2014-2015. Desenhos de Sei Miguel. O Homem do Saco/Marmita de Gigante. 84 pp. 13,50 Euros.

MEDIÁTICO


A editora GFloy Studio tem feito um bom trabalho no que diz respeito ao volume e relação qualidade/preço das edições. Mas a sua principal virtude é a escolha de séries que, bebendo a essência de super-heróis/ficção-científica/fantasia/horror/policial, transformam-na em algo mais interessante do que as referências originais. Com o mérito adicional de manter uma regularidade de lançamentos. Neste caso temos uma continuação, três estreias.
Já muito discutida, a ópera espacial “Saga” de Brian K. Vaughn e Fiona Staples, é um excelente exemplo de como ingredientes habituais de ficção-científica podem ser transcendidos, aplicando uma abordagem realista às relações “humanas” (casais, pais e filhos, amigos/inimigos, crenças, posições políticas), que vão evoluindo, crescendo e definhando ao ritmo da narrativa. Cujo contexto é estranho apenas até nos apercebermos das inspirações que estão na sua génese. Se Romeu e Julieta tivessem sobrevivido, ter-se-iam divorciado? É este o tipo de provocação comum em “Saga”.

Também de ficção-científica espacial não é ainda possível definir totalmente “Descender”. A não ser para registar uma interessante temática de Inteligência Artificial, e a definição intimista de contexto e personagens por parte do argumentista Jeff Lemire (que trás sempre algo de surpreendente), mas sobretudo o desenho quase diáfano de Dustin Nguyen, que de início parece deslocado, até se perceber que dá o tom exato à vertente de descoberta pessoal da obra. Já “Imperatriz” de Mark Millar e Stuart Immonen parece, neste primeiro volume, pouco convincente, num registo comum a “Saga”, “Descender” (e muitas outras), que se resume a isto: “tudo o que achávamos ser verdade é mentira, e ninguém é o que aparenta”. Qual é o problema? É que esta receita funciona tanto melhor quanto menos se der por ela. Neste caso, entre perseguições e conflitos previsíveis e, sobretudo, com personagens pouco aprofundadas, demasiado óbvias ou demasiado misteriosas, a ligação terá de ficar para outro volume.

De resto não é infrequente isso acontecer com Mark Millar (e o seu Millarverse), acusado de desenvolver conceitos de maneira apressada em BD, com o objetivo de os vender mais facilmente ao cinema; como sucedeu, por exemplo, com “Kingsman”, “Kick-Ass”, ou “Wanted”. É possível, mas relevante é saber se as obras valem por si mesmas. E “O legado de Júpiter“ é, a par de “Saga”, a mais recomendável destas propostas da GFloy. 

É certo que o estratagema narrativo de imaginar de modo (mais ou menos) realista os super-heróis enquanto cidadãos, e trabalhar a sua potencial influência na sociedade (de bombeiros a ditadores) não é nada novo, considerando “Watchmen” e “Miracleman” (com argumentos de Alan Moore), ou “Marvels” e “Astro City” (escritas por Kurt Busiek, a segunda é uma clara falha editorial entre nós). Para além da elegância do traço de Frank Quitely, o que “O legado de Júpiter” acrescenta é uma abordagem aos super-heróis que joga de maneira muito inteligente com aquilo que teria de ser o mediatismo de tais personagens num mundo “real”, da modéstia recatada de alguns, ao comportamento tipo “reality show” e aspirações políticas de outros. 


No entanto, apesar da inspiração ser óbvia, haver pontos de contacto com “Saga”/Moore/Busiek (mais todos os “X-Men”), e faltar concretização na componente político-económica, “O legado de Júpiter” tem personagens credíveis, que, por acaso, também têm superpoderes. Quando se contam histórias com pessoas inacreditáveis a primeira coisa a fazer trazê-las para o mundo, dar-lhes uma dimensão humana. Para que seja plausível o momento inevitável em que os seus poderes estragam tudo.


O legado de Júpiter 1: Luta de Poderes. Argumento de Mark Millar, desenhos de Frank Quitely. GFloy Studio. 136 pp., 14 Euros.
Imperatriz 1. Argumento de Mark Millar, desenhos de Stuart Immonen. GFloy Studio. 192 pp., 16 Euros.
Saga 7. Argumento de Brian K. Vaughn, desenhos de Fiona Staples. GFloy Studio. 152 pp., 12 Euros.
Descender 1: Estrelas de lata. Argumento de Jeff Lemire, desenhos de Dustin Nguyen. GFloy Studio. 152 pp., 14 Euros.

AUTÓPSIA

Há obras absolutamente essenciais na sua monumentalidade (qualquer que seja o formato), que, para além do elogio que resulta da edição, merecem algo muito simples: serem lidas. Chamem-se “Bíblia”, “Dom Quixote”, “Ulisses”. Ou “From Hell”/“Do inferno” de Alan Moore e Eddie Campbell, editada em finais de 2017 pela Devir numa iniciativa que merce todo o aplauso. Apesar de existirem questões não triviais relacionadas com a tradução/texto, estas têm de se relativizar numa obra que explora, não apenas os assassínios atribuídos a Jack o Estripador em 1888, mas toda a envolvência sociocultural, no fundo fazendo uma autópsia da época vitoriana. Que, e isto é talvez o mais relevante, na sua essência se estende pelas Guerras Mundiais até aos nossos dias, com outras matrizes, mas mantendo as mesmas estruturas de poder, seja político, económico, mágico, religioso ou qualquer outro. Mais ou menos autoritário, mais ou menos democrático. 

Publicada em fascículos entre 1989 e 1998, e mais tarde reunida em livro, esta é uma obra-limite de vários pontos de vista. Para além das mais de 500 páginas de BD, há copiosas notas, nas quais Alan Moore explica as fontes consultadas e o raciocínio que esteve na base de cada representação ou diálogo (mesmo que estes sejam todos inventados). Não é algo menor: neste caso as notas são parte integrante da obra, e devem ser lidas em paralelo, cena a cena. Noutra perspetiva: dadas as ligações (surpreendentes? estapafúrdias?) sugeridas, o modo como forem (ou não) lidas transforma “Do inferno”. Há também elementos de meta-narrativa onde Moore discorre sobre o grau de verosimilhança de cada opção, bem como potenciais alternativas, e refere mesmo pontos de desacordo com o desenhador Eddie Campbell. O qual, por sua vez, utiliza de forma brilhante o seu estilo numa sucessão de linhas cruzadas a preto e branco, das quais tanto pode emergir uma névoa londrina de enganos, como detalhes cristalinos, desviando-se por vezes pela aguada em representações fora do bairro infecto de Whitechapel. A planificação-base inclui três linhas de três vinhetas cada por página, uma simplicidade enganadora que pode ser utilizada para vincar uma ação ou criar paralelismos entre eventos. Mas sobretudo induz no leitor uma regularidade que alerta quando a regra não é mantida, como a apresentação da Rainha Vitória, os cenários dos crimes, ou as igrejas eivadas de simbolismo do arquiteto barroco Nicholas Hawksmoor. Neste último caso é evidente a dissecção metafórica da Londres-protagonista (tão detalhada quanto a de Mary Kelly realizada pelo Estripador), apresentada através de um discurso que, cruzando simbolismos de todas as correntes (pagãos, gnósticos, maçónicos, cristãos), não deixa de ser por vezes pedante (escudado na natureza do protagonista humano), criando o contraste entre o erudito e o ignaro, o conhecimento e a ignorância, a beleza e a brutidade; que são a base de todas as sociedades.

No meio disto tudo talvez o menos relevante seja a teoria defendida em “Do inferno” quanto à identidade do Estripador. Sendo esta uma obra de ficção tem, ao contrário de um documentário, de propor algo concreto, e a escolha (baseada sobretudo numa fonte) tem implicações na estrutura. O presumível culpado, bem como a evolução pessoal e social que o terá levado a encarnar “Jack”, é apresentado logo no início, e o encadear de eventos gerido de forma lógica; incluindo uma vasta conspiração (cuja credibilidade será avaliada por cada leitor) criada para ocultar os crimes. Mas os próprios autores estão cientes das limitações especulativas do livro, semelhantes a todos os outros sobre a temática. Paira no fim uma mensagem fundamental: na sua concretização, investigação e possíveis ocultações, este foi um crime coletivo, cometido sobre as mais vulneráveis. Um tipo de crime que tende a ficar sem castigo.


Do inferno. Argumento de Alan Moore, desenhos de Eddie Campbell. Devir. 576 pp., 40 Euros.

domingo, 15 de abril de 2018

SACIAR


Pensadas inicialmente para a revista “Granta” (só uma foi publicada na altura) as duas histórias que compõem “Comer/Beber” (Tinta da China) constituem a mais recente, e muito badalada, obra da dupla Filipe Melo e Juan Cavia. “Sleepwalk” (comer) tem como fulcro uma tarte de maçã (a receita está no fim do livro), e passa-se entre o Arizona e o Texas, em 1984. “Majowski” (beber) gira em torno de uma garrafa de champanhe, e tem lugar sobretudo num restaurante em Berlim, entre 1935 e 1943. 

Se o ritmo de “Sleepwalk” faz jus ao título, a história surpreende por aquilo que não diz, um relato de dissolução inexorável feita de solidões cruzadas, que o leitor terá de reconstruir. Como um conto escrito por Sam Shepard, inspirado por imagens de Edward Hopper iluminadas pelas cores do deserto. Até pelo fôlego temporal, “Majowski” é mais complexa, talvez também porque baseada em eventos reais (há um pequeno dossiê no final), contando com colaborações no argumento e arte, e com cores apropriadamente mais carregadas. Aqui o principal mérito é o modo como, em curtos episódios numa história já de si curta, texto e desenho conseguem definir de forma credível a evolução necessariamente complexa de personagens e do próprio regime nazi ao longo de vários períodos (da glória de Marlene Dietrich, aos bombardeamentos dos aliados). Fugido da Polónia em 1917, o protagonista vê-se enredado num ambiente que o projeta, ao mesmo tempo que o oprime, e essa contradição é muito bem trabalhada. Uma contradição que espelha, num certo sentido, a posição do protagonista de “Sleepwalk”, simultaneamente amigo e carrasco.

Distante das citações pop do cinema fantástico na série “Dog Mendonça e Pizzaboy”, ou da abordagem alegórica mais “pesada” da Guerra Colonial de “Os Vampiros”, no díptico “Comer/Beber” parece haver alguma preocupação em manter referências universalizantes reconhecíveis que lhe concedam desde logo outra dimensão de leitura; sejam a Berlim hitleriana, ou os grandes espaços do sudoeste dos EUA. Mas estas são claramente histórias mais intimistas, que respiram a evolução de uma época (“Majowski”) ou o silêncio (“Sleepwalk”). Onde o saciar de duas necessidades básicas surge enquanto redenção que transcende o momento, graças a uma garrafa que sobrevive anos de chumbo, ou a uma receita que ressuscita uma última vez. E nas quais, de forma reveladora, não há sinal dos elementos sobrenaturais ou fantásticos que caraterizaram as obras anteriores.
Perguntar-se-á: mas, dada a sua aparente simplicidade (mormente quando comparada com “Os Vampiros”), merece “Comer/Beber” todo o destaque mediático que teve? Sem dúvida, não só pelo modo inteligente como estão construídas as duas histórias, mas por poderem representar um primeiro passo muito interessante rumo a outro tipo de narrativas na evolução da dupla Melo e Cavia. Não é que a pergunta não seja válida, está é mal formulada. O problema não é o espaço que Filipe Melo soube conquistar, antes os (misteriosos) critérios que parecem limitar destaques similares para as muitas notáveis obras (incluindo de autores portugueses) que as nossas excelentes editoras de banda desenhada têm vindo a publicar.


Comer/Beber. Argumento de Filipe Melo (com Nádia Schilling), arte de Juan Cavia (com Juan Cruz Rodriguez e Sandro Pacucci). Tinta da China. 64 pp., 12 Euros.