segunda-feira, 19 de novembro de 2018

EDUCAÇÃO


Cada geração (seja lá como for que se defina essa entidade fluida) tem como ponto de honra do seu percurso zurzir educativamente na que lhe sucede. Porque “no nosso tempo é que era, e tínhamos de estudar... (preencher espaço em branco com algo como: latim, francês, livros em papel...)”; e, por consequência, ”os miúdos de hoje não sabem nada!” Esse discurso convenientemente esquece que gerações mais novas vivem num contexto distinto (duvido que algum seu membro leia isto); ou que muito daquilo que expressam é devido a comportamentos sociais que implicam também os seus progenitores. E o sistema educativo também teria obrigação de se adaptar, apesar de ter vindo a ser cada mais desvalorizado. Um tipo de resposta pode ser superficial, implicando o prolongamento do mesmo programa por outros meios, algo que também cria novos mercados, já agora. É, notoriamente, o caso do universo fascinante das “explicações”, antes pontuais e para algumas matérias nos últimos anos do ensino secundário, hoje ubíquas para todos os assuntos, da primária ao superior.
Viver de banda desenhada não é fácil, e dar explicações de Geometria Descritiva é uma das soluções que Álvaro usa para chegar ao fim do mês. Autor de obras como “Sexo, mentiras e fotocópias” ou “Balcão trauma”, Álvaro é candidato há anos ao prémio apócrifo de “melhor humorista português a merecer um reconhecimento mais amplo”. Em “Conversas com os putos” as situações são tiradas, diz o autor, de comentários reais de explicandos; provando mais uma vez que o pior da realidade pode resultar no melhor do humor. Depois de um primeiro volume (Polvo, 2017), segue-se agora um segundo em edição própria (Insónia Edições, 2018) que, e isto é sintomático, inclui também “bitaites” dos pais dos alunos, demonstrando, se era preciso, que as gerações são produtos umas das outras; e, por conseguinte, que vamos piorando (perdão! mudando...) em sintonia uns com os outros, e com o restante universo. 

O traço caricatural de Álvaro é de uma simplicidade desarmante, muito eficaz a resumir situações, comportamentos e personalidades, sempre em risco de desaguar no grotesco. É nesse controlo de exageros que se joga a parte visual do seu humor, como na obra seminal sobre o pequeno (grande) poder do funcionário rígido e incompetente “Sexo, mentiras e fotocópias”. E se em “Balcão Trauma” surgiam desequilíbrios, os momentos de “Conversas com os putos (e com os pais deles)” mostram um Álvaro em plena forma. Não só pelo humor por vezes inacreditável das situações em si, mas porque, apesar de serem curtos episódios isolados, ao longo do livro Álvaro deixa claro que o problema vai bem para lá da pusilanimidade das pessoas com quem interage, e para quem as explicações são uma obrigação sem grande sentido. Se há sempre a tentação de pairar por cima do oceano de ignorância numa posição de superioridade intelectual (e moral), a verdade nua e crua é que o autor é mais refém da sua educação do que os seus explicandos, ou os ainda mais preocupantes progenitores. Os primeiros em breve esquecerão tudo o que foram forçados a “marrar”, os segundos demonstram que não é preciso muito para triunfar na vida, desde que “triunfar” signifique conseguir pagar explicações aos filhos. Claro que há exceções e exemplos de compaixão e generosidade, necessários até para aliviar a carga potencialmente negativa e de sentido único que uma abordagem destas poderia ter. Mas o essencial é isto: não estamos a educar bem, e devíamos fazer algo sobre isso. Sermos capazes de rir das nossas limitações já é um (bom) princípio.


Conversas com os putos. Argumento e desenhos de Álvaro. Polvo. 64 pp., 7,90 Euros.
Conversas com os putos (e com os pais deles). Argumento e desenhos de Álvaro. Insónia (insonia.edicoes@gmail.com). 80 pp., 11 Euros.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

MUÇULMANA


Vivemos num mundo multicultural que se vai tornando global; ou num mundo globalizado no qual o multiculturalismo assume contornos locais, entre a normalidade, o trágico e o turístico? Seja como for é necessário conviver com a diferença, se bem que pareça sempre haver, em cada contexto específico, “diferenças mais diferentes do que outras”. Algo que também se tem de refletir do universo dos super-heróis, e um dos exemplos mais interessantes, relevante para lá da banda desenhada, é a nova “Ms. Marvel” (G. Floy Studio).

Americana de New Jersey, a premiada argumentista G. Willow Wilson cresceu numa família ateia, e foi um período de descoberta sobre as diversas religiões a conduzi-la, já em adulta, ao Islão, ao qual se converteu, tendo vivido um período no Egito e adotado o “hijab”. E é na sua comunidade norte-americana de origem que a adolescente filha de imigrantes paquistaneses Kamala Khan, se vai transformar na nova “Ms. Marvel”, equilibrando a vontade de inserção com o valor de tradições, mesmo quando estas parecem repressivas. E, sobretudo, mostrando com os seus retratos do dia a dia que a “cultura muçulmana” é tão variada como qualquer outra, e não se reduz a arquétipos. Ou que estes também têm as suas nuances, de afirmação a refúgio num contexto onde a aceitação não é total, apesar de todas as referências culturais comuns, sobretudo para a geração que cresce nos EUA. Apesar da premissa estar nos antípodas de outras personagens, esta é também uma história sobre dominar os “poderes” que se obtêm quando se passa da adolescência para a idade adulta, e de conjugar a vida para fora de casa com a vida familiar, uma tradição que vem da Marvel dos anos 1960, com o “Homem-Aranha” criado por Stan Lee e pelo recentemente falecido Steve Ditko.



Destinado a um público que se identifique com a realidade da protagonista, “Ms. Marvel” enquadra-se no tom da chamada literatura “YA” (“young adult”) na qual pontificam contemporaneamente muitas autoras (de S.E. Hinton a J.K. Rowling). É um rótulo como qualquer outro, mas, trabalhando uma mescla inteligente de banal e extraordinário, o traço na fronteira entre o realismo e a caricatura do canadiano Adrian Alphona (“Runaways”) é aqui fundamental, ao não deixar a história resvalar, nem para o dramatismo (onde tem mais dificuldades), nem para a leveza.
É certo que, neste primeiro volume, o contorcionismo da protagonista para acomodar as diferentes realidades que compõem o seu mundo subitamente em mutação é bastante mais interessante do que as suas aventuras como o novo (e ainda pouco hábil) paladino de Jersey City. Mas é um começo promissor para uma ideia tão original como necessária. Será “Ms. Marvel” capaz de captar um público potencialmente relevante que poderá não conseguir olhar para além dos super-heróis, que são, na verdade, o que menos importa aqui? Por exemplo, leitoras ou todos os interessados no lidar simultâneo de diferentes diferenças? Seja como for, esta é uma série estimulante, que consegue provocar com a sua busca de uma normalidade que não se sabe qual seja, em circunstâncias que nunca serão normais. Bem-vindos ao mundo real.



Ms Marvel 1: Fora do normal. Argumento de G. Willow Wilson, desenhos de Adrian Alphona. G. Floy Studio. 120 pp., 13 Euros.