terça-feira, 25 de junho de 2019

BESTAS


Nas mais diversas mitologias não é incomum encontrar relatos de heróis (impolutos ou menos, improváveis ou nem tanto) lutando contra monstros que representam o caos, a morte, desejos inconfessados, ou o medo do desconhecido. Perseu, Teseu, Hércules, Marduk, Thor, Indra, Sigurd, Dobrynya Nikitich, Iovan Iorgovan, São Jorge, e tantos outros, combatem Minotauros, Medusas, ou diferentes versões de um Dragão. E ao lembrar as lendas é fácil que heróis e monstros se transformem uns nos outros, tantos são os pontos de contacto. Escrito perto do ano 1000, o anónimo poema épico “Beowulf” é um marco na literatura anglo-saxónica, e tem tido inúmeras adaptações para os mais diversos formatos, incluindo a banda desenhada. Tantas que, à partida, se questiona a necessidade de mais uma; o que seria um grave erro, já que é imprescindível conhecer a magnífica adaptação de Santiago García, com uma vibrante intervenção gráfica de David Rubín (Ala dos Livros).

Nesta sua visão de uma história já muitas vezes contada, os autores espanhóis, sendo fiéis ao original, conseguem dar a volta a eventos que não têm como não ser previsíveis. Passada em vários reinos nórdicos na região das atuais Suécia e Dinamarca, a história é protagonizada por Beowulf, jovem guerreiro do reino dos Getas, que se oferece para combater o terrível monstro Grendel, que ronda um reino vizinho, espalhando morte e destruição. Vencido Grendel Beowulf tem seguidamente de lidar com a sua mãe, que procura vingar o filho. Mais tarde, um já envelhecido Beowulf, agora Rei relutante dos Getas, tem a sua última batalha, salvando desta vez o seu reino de um mais “clássico” dragão. Deixando de lado as inevitáveis incongruências que rodeiam mitos, e nas quais as provações sucessivas ao herói parecem surgir a pedido, a história é feita para uma orgia de ação, “oferecendo” de bandeja um (quase super) Herói, e combates com três monstros, cada um mais terrível do que o anterior. Embora comece num registo clássico, David Rubín não desdenha esse pretexto, pelo contrário. É certo que o seu virtuosismo pode por vezes confundir, e nem sempre se justifica, mas a planificação de algumas pranchas é extraordinária na sua inovação, oferecendo numa só imagem múltiplas perspetivas, o que permite criar narrativas paralelas, focar pormenores, densificar o horror, ou dar a visão de uma mesma cena através de diferentes olhares. O uso da cor (com destaque natural para o vermelho e negro) ajuda a manter um dinamismo trágico e visceral, potenciando o efeito surpreendente do desenho.

Claro que uma mera sucessão de batalhas constituiria uma abordagem superficial, e se Rubín usa soluções gráficas interessantes (incluindo o uso exclusivo do desenho) para contar as diferentes “histórias dentro da história”, Santiago García emprega de maneira inteligente outros aspetos de “Beowulf”, incluindo meditações, entre o profundo e o gongórico, sobre coragem e dever, focando na parte final o inevitável triunfo do envelhecimento, que tudo apaga, menos a lenda. A história não segue por esse lado (a não ser numa sugestão homoerótica em plena batalha), mas ao fundir Beowulf e Grendel na capa os autores sugerem uma ligação mais visceral entre herói e monstro; se bem que o Grendel-personagem tenha a subtileza de um rolo compressor, e “apenas” possa servir como encarnação de um Id desenfreado, um pretexto para heróis e seus leitores questionarem identidades e limites. Numa excelente edição luxuosa da nova editora Ala dos Livros, este é um livro que urge conhecer, provando que há sempre maneiras inovadoras para abordar as mais conhecidas lendas.

Beowulf. Argumento de Santiago García, desenhos de David Rubín. Ala dos Livros. 200 pp., 25 Euros.


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