Algumas personagens, autores ou locais tornam-se, por
diferentes motivos, figuras de culto. A admiração profunda de leitores pode ser
sinal de um universo fascinante, ou de provincianismo “geek”. Ou algo de intermédio.
Depende, como sempre, da perspectiva de quem aborda cada fenómeno, seja visitar
a Dublin de Joyce, as convenções de “Trekkies” (fãs de “Star Trek”) ou procurar
sinais de Corto Maltese em Veneza. Mas em banda desenhada dificilmente se
encontra um fenómeno como Tex Willer.
Criado pelo argumentista Gian Luigi Bonelli e pelo
desenhador Aurelio Galleppini na Itália do pós-guerra (1948) à primeira vista
pouco distingue “Tex” de outros registos em que autores europeus
recriaram/reinterpretaram o Velho Oeste norte-americano, como antes o escritor
alemão Karl May, como mais tarde os também italianos filmes de “Western
Spaghetti”. Mesmo em banda desenhada os exemplos abundam, como “Jerry Spring”
(criado por Jijé em 1954) ou “Blueberry” (Charlier/Giraud, 1963). “Tex” tem, no
entanto, um apelo que transcende o mero fascínio pela iconografia do “Western”
(Gary Cooper terá inspirado a personagem) e a sua clássica dicotomia Bem/Mal.
Desde logo o volume de histórias, patente ainda hoje nas versões brasileiras em
qualquer (sobrevivente) banca nacional de jornais e revistas. Imitando a
estratégia de produção em massa dos super-heróis as BDs de “Tex” foram/são
criadas por vários autores. No entanto há uma manutenção de linha editorial
impressionante ao nível do desenho e do argumento. “Tex” pode ser reajustado
levemente, mas nunca é reinventado, como o foram quase todos os super-heróis, a
essência mantém-se constante. Claro que há autores mais talentosos do que
outros, mas “Tex” não desce abaixo de um patamar mínimo de qualidade; embora
esse patamar (histórias muito repetitivas e previsíveis, e um desenho meramente
funcional) apenas seja aceitável para os convertidos que retribuem a
fidelidade, e pouco interesse a um leitor de banda desenhada com algum
critério.
Então porquê falar de “Tex”? Porque há histórias que
transcendem em muito a média. Aproveitando a popularidade da personagem em
Portugal a Polvo recuperou uma delas, “Patagónia”. Com um desenho muito
elegante e detalhado de Pasquale Frisenda, no registo realista habitual em
“Tex”, o argumento de Mauro Boselli é de facto muito interessante. Primeiro,
desloca a personagem para as pampas, fazendo um “Western” mais a sul,
revisitando situações familiares numa nova geografia. Depois identifica e
trabalha as contradições do universo. É que, se “Tex” é um justiceiro
“freelancer” como convém a qualquer herói, há uma vertente humanista em relação
ao que estava em jogo na época, refletida no facto de a personagem ser
igualmente “Águia da Noite”, chefe honorário dos Navajos. Ou seja, “Tex” é
simultaneamente “cowboy” e índio. E sabe-se qual foi o resultado desse embate,
na Patagónia como no Arizona, mesmo que não transpareça sempre na ficção.
Boselli não foge ao posicionamento contraditório, por vezes ingénuo, de “Tex”.
Para além de personagens complexas, o tom de “Patagónia” é de um realismo
cruel, em que a boa vontade e a razoabilidade no diálogo entre culturas
esbarram na ambição (ou no “realismo”?). O desmoronar gradual da missão
justiceira num genocídio em que o herói, apesar de cumprir tudo o que dele se
espera, apenas limita o inevitável é uma construção inteligente na sua
inexorabilidade, e o desenho vibrante de Frisenda sublinha, com alguma ironia,
a desilusão inerente. Celebrando “Tex” sem o trair, mas também sem negar a
História em que se insere, “Patagónia” é um complexo “Western” atípico, que se
recomenda.
Patagónia. Argumento de
Mauro Boselli, desenhos de Pasquale Frisenda. Polvo. 228 pp., 17 Euros.
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