segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

TEX

Algumas personagens, autores ou locais tornam-se, por diferentes motivos, figuras de culto. A admiração profunda de leitores pode ser sinal de um universo fascinante, ou de provincianismo “geek”. Ou algo de intermédio. Depende, como sempre, da perspectiva de quem aborda cada fenómeno, seja visitar a Dublin de Joyce, as convenções de “Trekkies” (fãs de “Star Trek”) ou procurar sinais de Corto Maltese em Veneza. Mas em banda desenhada dificilmente se encontra um fenómeno como Tex Willer.

Criado pelo argumentista Gian Luigi Bonelli e pelo desenhador Aurelio Galleppini na Itália do pós-guerra (1948) à primeira vista pouco distingue “Tex” de outros registos em que autores europeus recriaram/reinterpretaram o Velho Oeste norte-americano, como antes o escritor alemão Karl May, como mais tarde os também italianos filmes de “Western Spaghetti”. Mesmo em banda desenhada os exemplos abundam, como “Jerry Spring” (criado por Jijé em 1954) ou “Blueberry” (Charlier/Giraud, 1963). “Tex” tem, no entanto, um apelo que transcende o mero fascínio pela iconografia do “Western” (Gary Cooper terá inspirado a personagem) e a sua clássica dicotomia Bem/Mal. Desde logo o volume de histórias, patente ainda hoje nas versões brasileiras em qualquer (sobrevivente) banca nacional de jornais e revistas. Imitando a estratégia de produção em massa dos super-heróis as BDs de “Tex” foram/são criadas por vários autores. No entanto há uma manutenção de linha editorial impressionante ao nível do desenho e do argumento. “Tex” pode ser reajustado levemente, mas nunca é reinventado, como o foram quase todos os super-heróis, a essência mantém-se constante. Claro que há autores mais talentosos do que outros, mas “Tex” não desce abaixo de um patamar mínimo de qualidade; embora esse patamar (histórias muito repetitivas e previsíveis, e um desenho meramente funcional) apenas seja aceitável para os convertidos que retribuem a fidelidade, e pouco interesse a um leitor de banda desenhada com algum critério.


Então porquê falar de “Tex”? Porque há histórias que transcendem em muito a média. Aproveitando a popularidade da personagem em Portugal a Polvo recuperou uma delas, “Patagónia”. Com um desenho muito elegante e detalhado de Pasquale Frisenda, no registo realista habitual em “Tex”, o argumento de Mauro Boselli é de facto muito interessante. Primeiro, desloca a personagem para as pampas, fazendo um “Western” mais a sul, revisitando situações familiares numa nova geografia. Depois identifica e trabalha as contradições do universo. É que, se “Tex” é um justiceiro “freelancer” como convém a qualquer herói, há uma vertente humanista em relação ao que estava em jogo na época, refletida no facto de a personagem ser igualmente “Águia da Noite”, chefe honorário dos Navajos. Ou seja, “Tex” é simultaneamente “cowboy” e índio. E sabe-se qual foi o resultado desse embate, na Patagónia como no Arizona, mesmo que não transpareça sempre na ficção. Boselli não foge ao posicionamento contraditório, por vezes ingénuo, de “Tex”. 

Para além de personagens complexas, o tom de “Patagónia” é de um realismo cruel, em que a boa vontade e a razoabilidade no diálogo entre culturas esbarram na ambição (ou no “realismo”?). O desmoronar gradual da missão justiceira num genocídio em que o herói, apesar de cumprir tudo o que dele se espera, apenas limita o inevitável é uma construção inteligente na sua inexorabilidade, e o desenho vibrante de Frisenda sublinha, com alguma ironia, a desilusão inerente. Celebrando “Tex” sem o trair, mas também sem negar a História em que se insere, “Patagónia” é um complexo “Western” atípico, que se recomenda.

Patagónia. Argumento de Mauro Boselli, desenhos de Pasquale Frisenda. Polvo. 228 pp., 17 Euros.



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