Utilizar qualquer linguagem para questionar o mundo só pode
ser bom. A não ser que não seja o mundo que queremos questionado, que as
questões não sejam as que queríamos colocadas, que sejam colocadas por
indivíduos que não achamos apropriados. Ou que não gostemos das respostas.
Nesse caso até se podem discutir livros sem os ler.
Vem isto a propósito de duas bandas desenhadas
autobiográficas muito interessantes, “Pyongyang” (Devir) e “O árabe do futuro”
(Teorema), que retratam, respectivamente, a Coreia do Norte vista por um
ocidental (o canadiano Guy Delisle), e a Líbia e a Síria vistos através das
memórias de infância do filho de uma francesa e de um sírio (Riad Sattouf).
Nenhum dos retratos é lisonjeiro. Embora denotem pesquisa e enquadramento
adicional, um reduz um povo a robôs manipulados por uma elite megalómana; o
outro mostra os países árabes em causa enquanto antros de desorganização e
repressão.
Com o curto tempo disponível Delisle apenas procurou
confirmar o que já “sabia” sobre a Coreia do Norte, e não o esconde. Não quer
dizer que “Pyongyang” não seja parte de uma realidade, mas falta a componente
humana, a que não teve livre acesso, dada a coreografia controlada da própria
visita. Nesse caso, para alguns, nem deveria ter feito o livro; tendo-o feito,
não se trata de um objecto digno de análise. Com Riad Sattouf há outra questão:
não contextualiza as suas experiências (claramente traumáticas) ou a sua
herança árabe, o ponto de vista acompanha a vida adulta ocidental do autor, que
parece tão externo à Síria dos anos 1970-80 como Delisle à Coreia do Norte.
Alguns leitores podem ir mais longe, no sentido em que um “renegado” trunfa um
“ignorante”. E há outra crítica a Sattouf: a de a sua visão ser a de uma
criança marcada por relações familiares, com destaque para o pai, que oscila
entre a escola ocidental e as raízes sírias, gerindo contradições que parecem
insanáveis (como a admiração por ditadores), e que (é uma mensagem subliminar
do livro) questionam mesmo se um diálogo Ocidente-Oriente é viável.
Compare-se pois “O árabe do futuro” a outras relatos.
Abordando, quer o regime do Xá, quer o dos Aiatolas, “Persépolis” de Marjane
Satrapi é também enviesado e moldado por experiências familiares, mas é mais
complexo em termos de enquadramento. Os muito pesquisados livros de Joe Sacco
sobre a Palestina mostram gente digna, que sofre horrores sob ocupação
israelita. Mas se no mundo de Sattouf parece evidente que pessoas dignas devem
existir, no mundo de Sacco é igualmente lógico que existam corruptos e incompetentes
que não são relevantes naquele contexto (Satrapi descreve de tudo). Tudo faz
parte, com tudo temos de lidar. Uma Palestina livre seria mais ou menos
democrática e boa para viver do que Israel? Deve ter o direito de existir, o
resto seria com os palestinianos.
A questão é que uma BD que representasse a ideia de Paris
(suja, não-igualitária, cruel) descrita por um dos norte-coreanos com quem
Delisle dialoga (e que visitou França, também de forma supervisionada) podia
ser mais bem recebida por alguns leitores do que “Pyongyang” (nem que fosse
pelo exotismo da visão). Como obras mais solidárias sobre o mundo árabe seriam
mais celebradas do que “O árabe do futuro”. Ou seja, pode-se achar que os
autores não têm as credenciais para falarem do que falam, mesmo que tenham
vivido o que viveram. Nos EUA há casos similares, historicamente lógicos mas
que, vistos de fora, parecem surreais; como certos objetos culturais apenas
poderem ser apropriados por subsegmentos da população. A palavra “nigger “(“the
N word” para quem a não pode dizer) por exemplo, a propósito da qual se
recomenda o monólogo do (negro) Chris Rock sobre a diferença entre “black men”
e “niggers”. Que se poderia livremente traduzir (salvo as devidas distâncias)
como a diferença entre “portugueses” e “tugas”, elementos da comunidade a que
nos orgulhamos de pertencer versus comportamentos que nela nos envergonham.
O que me leva à questão fundamental, relacionada com a
divisão imbecil mas constante do mundo em variáveis categóricas, que evitam
dúvidas e facilitam o histrionismo. Ou seja, com o “Paradigma da Gravidez”. Não
se está “um pouco grávida”. Não se pode ser do Porto e do Benfica. Nos EUA a
identificação oficial é num só grupo étnico, independentemente de eventuais
misturas. E ainda acusam a BD de ser simples e maniqueísta... Uma pessoa não
pode arriscar ter um comportamento ou uma opinião identificados como sendo
racista, sexista, comunista, socialista, idealista, capitalista, fascista, anti
ou pró isto ou aquilo, sem ser automaticamente rotulada. E a partir daí
transferem-se para o indivíduo todas as caraterísticas associadas. O pior de
tudo acaba por ser a expressão “politicamente correto”, não por causa do
conceito muito válido por detrás dela, mas porque é apropriado de ambos os
lados de uma barricada com igual “eficácia”. Fora momentos em que todos se
atropelam para estar de acordo, geralmente num contexto abstrato quanto a
causas e soluções (a crise dos refugiados, por exemplo), esse tipo de atitude é
muito útil, porque ajuda a definir lados de forma clara. Desse ponto de vista é
interessante o modo como os comportamentos extremados se tendem, perversamente,
a respeitar. Dialogar na proximidade é mais difícil do que discordar nas
margens.
Tal como pontos de vistas e realidades históricas, os
livros têm de ser lidos à luz das suas limitações, contextos e objetivos. Em
vez de serem descartados ou louvados como base apenas no que supostamente
representam, ou no que poderiam/deveriam ser. Nenhum deles nos vai, por si só,
transmitir a Verdade.
João Ramalho-Santos
O árabe do
futuro (Ser jovem no Médio Oriente, 1978-1984). Argumento e
desenhos de Riad Sattouf. Teorema. 160 pp., 19 Euros.
Pyongyang. Argumento e
desenhos de Guy Delisle. Devir. 180 pp., 22 Euros.
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