Há prazeres e admirações (secretos ou menos), que tendem a
ser rotulados como “masculinos” (embora essa seja uma posição misógina), e que
poderiam ser classificados como (mais) ofensivos, se não estivessem algo
disfarçados. Como a violência extrema de alguns desportos organizados, ou em
histórias “hardboiled” onde a amoralidade tem um toque de decência que evita o
niilismo extremo. Frank Miller ou Martin Scorsese poderiam ser citados neste
contexto.
O multifacetado escritor de policiais norte-americano
Donald Westlake (1933-2008) criou um pseudónimo que reflete bem esse modo de
estar. Publicado em 1962 “The Hunter” foi o primeiro dos livros de “Richard
Stark”, a maioria protagonizada pelo criminoso profissional Parker. O estatuto
icónico do livro é marcado por duas adaptações cinematográficas (“Point Blank”
de John Boorman, com Lee Marvin, 1967; “Payback” de Brian Helgeland, com Mel
Gibson, 1999), embora sempre com modificações ao original, justificadas porquanto
o que importa é o tom. Um tom de inexorabilidade que marca a vingança de um
(super)criminoso traído pelos seus comparsas (incluindo a mulher), e que é
captado brilhantemente pelo canadiano Darwyn Cooke em “Parker: O caçador”
(Devir).
Cooke gere diferentes mecanismos nesta adaptação. Há
sequências “clássicas” em banda desenhada, interligadas com momentos de texto
ilustrado onde é dado espaço à prosa, e ainda cenas em que o desenho consegue
expressar sozinho as subtilezas da história, sobretudo depois das coordenadas
estarem definidas. Por outro lado, o estilo lembra as reinterpretações
pseudo-retro da “linha clara” franco-belga, em que o estilo de Hergé ou Jacobs
foi recriado por novos autores, adaptado a personagens mais complexas, e
sobretudo a protagonistas cujo posicionamento era mais dúbio do que “Tintin”.
Para além da influência de nomes clássicos da BD norte-americana do
policial/horror (como Alex Toth), com o seu estilo angular Cooke evoca Serge
Clerc, Yves Chaland ou Daniel Torres. E o uso do preto e branco matizado, e não
das cores planas habituais na linha clara, modifica totalmente o modo como o
leitor aborda o desenho, reforçando o tom sombrio, num registo visual que
lembra uma versão mais negra da série televisiva “Mad Men”.
Narrativamente a história desenvolve-se sem surpresas.
Contra tudo e contra todos Parker vai paulatinamente ajustando todas as suas
contas, recorrendo a todos os meios e surpreendendo quem julga estar a lidar
com apenas um homem isolado “normal”. Tal com como as personagens de Frank
Miller em “Sin City” Parker é um super-herói em espírito, que não em poderes ou
uniformes. Claro que há danos colaterais (sobretudo mulheres), e Parker fica
chateado com isso. Mas nada o para. Podia ter morrido no fim? Podia, e a
história funcionava na mesma. Mas era inútil, porque a personagem é sobretudo
uma ideia, um golem para si mesmo, que assim vive para segregar testosterona
noutras histórias.
“Parker: O caçador” é um livro muito bem feito, visualmente
soberbo, que glorifica o modo como se pode ser um sacana e, ao mesmo tempo, ter
princípios que elevam a personagem acima dos outros sacanas. Porque há três
defesas universais para os sacanas: jurar que nada de útil se faz sem sacanice,
declarar toda a gente sacana, e apontar sacanas piores. O mundo, em resumo.
Parker: O
caçador. Argumento e desenhos de Darwyn Cooke, adaptando obra “The
Hunter” de Richard Stark (Donald Westlake). Devir. 140 pp., 20 Euros.
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