sábado, 30 de janeiro de 2016

Testosterona

Há prazeres e admirações (secretos ou menos), que tendem a ser rotulados como “masculinos” (embora essa seja uma posição misógina), e que poderiam ser classificados como (mais) ofensivos, se não estivessem algo disfarçados. Como a violência extrema de alguns desportos organizados, ou em histórias “hardboiled” onde a amoralidade tem um toque de decência que evita o niilismo extremo. Frank Miller ou Martin Scorsese poderiam ser citados neste contexto.

O multifacetado escritor de policiais norte-americano Donald Westlake (1933-2008) criou um pseudónimo que reflete bem esse modo de estar. Publicado em 1962 “The Hunter” foi o primeiro dos livros de “Richard Stark”, a maioria protagonizada pelo criminoso profissional Parker. O estatuto icónico do livro é marcado por duas adaptações cinematográficas (“Point Blank” de John Boorman, com Lee Marvin, 1967; “Payback” de Brian Helgeland, com Mel Gibson, 1999), embora sempre com modificações ao original, justificadas porquanto o que importa é o tom. Um tom de inexorabilidade que marca a vingança de um (super)criminoso traído pelos seus comparsas (incluindo a mulher), e que é captado brilhantemente pelo canadiano Darwyn Cooke em “Parker: O caçador” (Devir).




Cooke gere diferentes mecanismos nesta adaptação. Há sequências “clássicas” em banda desenhada, interligadas com momentos de texto ilustrado onde é dado espaço à prosa, e ainda cenas em que o desenho consegue expressar sozinho as subtilezas da história, sobretudo depois das coordenadas estarem definidas. Por outro lado, o estilo lembra as reinterpretações pseudo-retro da “linha clara” franco-belga, em que o estilo de Hergé ou Jacobs foi recriado por novos autores, adaptado a personagens mais complexas, e sobretudo a protagonistas cujo posicionamento era mais dúbio do que “Tintin”. Para além da influência de nomes clássicos da BD norte-americana do policial/horror (como Alex Toth), com o seu estilo angular Cooke evoca Serge Clerc, Yves Chaland ou Daniel Torres. E o uso do preto e branco matizado, e não das cores planas habituais na linha clara, modifica totalmente o modo como o leitor aborda o desenho, reforçando o tom sombrio, num registo visual que lembra uma versão mais negra da série televisiva “Mad Men”.

Narrativamente a história desenvolve-se sem surpresas. Contra tudo e contra todos Parker vai paulatinamente ajustando todas as suas contas, recorrendo a todos os meios e surpreendendo quem julga estar a lidar com apenas um homem isolado “normal”. Tal com como as personagens de Frank Miller em “Sin City” Parker é um super-herói em espírito, que não em poderes ou uniformes. Claro que há danos colaterais (sobretudo mulheres), e Parker fica chateado com isso. Mas nada o para. Podia ter morrido no fim? Podia, e a história funcionava na mesma. Mas era inútil, porque a personagem é sobretudo uma ideia, um golem para si mesmo, que assim vive para segregar testosterona noutras histórias.

“Parker: O caçador” é um livro muito bem feito, visualmente soberbo, que glorifica o modo como se pode ser um sacana e, ao mesmo tempo, ter princípios que elevam a personagem acima dos outros sacanas. Porque há três defesas universais para os sacanas: jurar que nada de útil se faz sem sacanice, declarar toda a gente sacana, e apontar sacanas piores. O mundo, em resumo.



Parker: O caçador. Argumento e desenhos de Darwyn Cooke, adaptando obra “The Hunter” de Richard Stark (Donald Westlake). Devir. 140 pp., 20 Euros.


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