Nas várias histórias da Banda desenhada portuguesa há por
vezes a tentação de colocar asteriscos em algumas entradas, incluindo no
(reduzido) número de autores inquestionáveis. Porque se há nomes que devem
figurar na história da linguagem, quer do ponto de vista nacional, quer
internacional (Bordallo Pinheiro, Stuart Carvalhais, Carlos Botelho, E.T.
Coelho); há outros relevantes mas claramente num patamar inferior, cujas
insuficiências são desculpadas por afinidades geracionais ou estéticas. E há
outros ainda que, apesar de excelentes, se tem plena noção que poderiam ter
sido algo mais. Fernando Relvas podia ter sido um grande autor mundial. É um
grande autor português. Chega e sobra; terá de chegar.
Para se perceber a importância de Relvas enquanto
referência é útil entender, não só o seu excepcional talento gráfico e
narrativo, mas o modo como foi capaz de apropriar estilos e referências para
criar ambientes e discursos claramente portugueses, mas que não eram limitados
por isso. Só se pode subverter o que se domina. É certo que há o Relvas
humorista nonsense de “Espião Acácio”, o Relvas (sub)urbano de “L123”, o Relvas
caótico das histórias do jornal “Se7e”, que na verdade mistura os outros dois.
Mas há ainda o menos conhecido Relvas da BD histórica focada nos Descobrimentos
de “Em Desgraça”, a que se junta agora o mais recente “Nau Negra/The Last Black
Ship”, com texto em inglês (El Pep).
Misturando desenho com tecnologia digital a primeira
observação óbvia é que há uma evolução notória em relação ao anterior “Li
Moonface”, onde a segunda componente dominava, e do qual quanto menos se falar
melhor. Na narrativa passada no Japão do início do século XVII cruzam-se
personagens e histórias, jogos de gato e rato entre aristocratas e plebe,
japoneses e ocidentais, portugueses e holandeses. Soldados, mercenários,
exploradores, escravos libertados, religiosos, comerciantes, traficantes,
aventureiros. Com o choque entre as diferentes culturas como pano de fundo,
algumas personagens são exatamente o que parecem, outras disfarçam intenções,
memórias e segredos; de todos sabemos algumas coisas, os protagonistas parecem
esconder muito mais do que o que revelam.
“Nau Negra” é construída de sequências e momentos,
individualmente consistentes, por vezes mesmo graficamente brilhantes (como a
cena de trocas de mercadoria, legal e menos). Mas há também lacunas e
incongruências que tardam em coalescer, algo que o texto expositivo
simultaneamente revela e tenta solucionar. Alternando tipos de representação
literais e simbólicos, narrativa em tempo real e “flashbacks”, ao brilhantismo
espontâneo em roda livre falta um trabalho editorial, algo que, de resto,
sempre escapou ao autor. Alguém que lhe dissesse quando parar, onde focar,
lembrasse quem é quem na história e o que falta resolver. No final a sensação
mantém-se em termos dos momentos conseguidos que refletem sobre o que podia ter
sido.
Claro que isto não devia ter importância nenhuma, e se
calhar nem é de bom tom mencionar, mas produzir arte com Parkinson faz com que
livros como “Nau Negra” sejam, para além de tudo o mais, pequenos milagres a
desfrutar.
Nau Negra/The
Last Black Ship. Argumento e desenhos de Fernando Relvas. El Pep. 86 pp.,
17 Euros.
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