Colectânea de trabalhos do autor sul-africano branco Anton
Kannemeyer (curtas bandas desenhadas, ilustrações, cartoons, pinturas) “Papá em
África” volta a sublinhar a
Mmmnnnrrrg/Chili Com Carne como uma das melhores editoras a trabalhar em
Portugal, porque publica mais livros que quem se interessa por banda desenhada
tem mesmo de conhecer. “Conhecer”, repito, não meramente “Adorar” ou
“Detestar”.
Misto de denúncia, reflexão e provocação, o fascínio e
poder de choque provocados por Kannemeyer não estão nas histórias realistas de
natureza autobiográfica ou alegórica (embora seja excelente a que cita “Hulk”),
mas no modo como o autor se apropria do grafismo reconhecível de Hergé no polémico
“Tintin no Congo”, revisitando as posições paternalistas do livro de uma
perspectiva pós-colonialista, e questionando as relações de poder na África do
Sul durante o Apartheid e imediatamente a seguir. Embora estereótipos cruéis
sejam igual e deprimentemente visíveis nos dois outros álbuns iniciais a preto
e branco de Hergé, o anterior (“Tintin no País dos Sovietes”, 1930), e o
seguinte (“Tintin na América”, 1932), no primeiro caso o álbum nunca foi
redesenhado ou colorido (sugerindo que o autor o “deserdou”), enquanto o
segundo fala de um país dominador e “bully” (de certa forma tornando-o mais
“aceitável”?). É pois o racismo colonialista sobre um outro considerado
inferior de “Tintin no Congo” (1931, versão a cores em 1946) que tende a
concentrar as atenções.
Claro que pegar em algo icónico e questioná-lo
subvertendo-o é hoje tão banal como o seu reverso (a desconstrução/homenagem),
e Hergé já foi sujeito a vários exercícios deste género. Mas o microcosmos
isolado que foi a África do Sul do Apartheid criou quadros referenciais únicos
(veja-se, noutro contexto, o documentário de 2012 “Searching for Sugar Man”,
sobre o músico Sixto Rodriguez), e Anton Kannemeyer destaca-se aqui pela
violência com que faz chocar as diferentes realidades do seu país, usando de
forma muito interessante um estilo ilustrativo que foi criado especificamente
para ser “limpo” e “neutro”. Isto apesar de a natureza do livro, reunindo
vários tipos de peças de diferentes épocas, o tornar desequilibrado enquanto
objeto, um conjunto de instantes.
A questão em obras como esta é, não só distinguir o genuíno
da pose, mas perceber se o papel de algo que se pretende funcione como
consciência ou memória se esgota num mero cultivar de denúncia e diferença,
apenas para provar que tais coisas podem existir. Garantindo ao mesmo tempo que
nunca serão consequentes, por existirem segregadas em parcelas fáceis de
classificar, digerir e arquivar. Como é,
apesar de tudo, este livro.
Quando refiro nas minhas aulas teorias erradas, perigosas e
insultuosas da história da Ciência, que eram antes de aceitação quase unânime
(incluindo questões de raça, género ou sexualidade), tento sempre evitar que os
alunos se percam nas mensagens acessórias quase sempre subjacentes nos textos
disponíveis (que tendem a contrastar um presente iluminado, com um passado
feito de ignorâncias “óbvias”) para os focar no essencial. Que é isto: nunca
podemos usar o passado para exonerar o presente; a preocupação deve sempre ser
identificar (e, se possível, corrigir) o que estamos a fazer hoje que daqui a
vinte anos (ou menos) será visto unanimemente como nós vemos agora erros de
outras gerações. Embora cortar esta espiral histórica de injustiça pareça muito
difícil.
Até quando terá a África do Sul democrática de usar o Apartheid como panaceia
justificativa para o que não consegue resolver? Ou o Brasil o colonialismo
(e/ou a ditadura)? Ou Israel o Holocausto? Sem escamotear o que quer que seja,
estas continuam a ser realidades difíceis demasiado úteis e convenientes,
também porque muitas vezes servem para dar respostas fáceis. O importante de
“Papá em África” é pois não deixar circunscritos os demónios que evoca.
Papá em África. Argumentos e
desenhos de Anton Kannemeyer. Mmmnnnrrrg/Chili Com Carne. 64 pp., 15 Euros.
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