Quando um filme ganha a Palme d’Or no Festival de Cannes de 2013, e se descobre que é
baseado numa banda desenhada, fica-se com natural curiosidade de ver um e ler a
outra, sem ligar muito ao ruído que parece envolver ambos. Mas... e se o ruído,
por não ser apenas exatamente isso, for mesmo o que há de mais interessante a
discutir?
A relação entre banda desenhada e cinema
nunca foi muito pacífica. Do lado da BD, bem entendido. Sobretudo por o
percurso de ambos, após uma origem formal moderna quase simultânea, ter
conduzido a uma atualidade onde a BD continua a buscar o reconhecimento que
para o cinema é um dado adquirido. Por exemplo, se ainda se levantam questões quando
à fidelidade na adaptação para cinema de obras literárias marcantes, no caso do
material de partida ser uma banda desenhada, não só por vezes isso nem sequer é
evidente, como não se ouvem grandes protestos quando surgem alterações
significativas na transição.
A não ser que aconteça algo como o que
sucedeu com a BD Le Bleu est une couleur chaude, da francesa Julie Maroh (Glénat 2010), cuja adaptação
para cinema resultou em La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2, realizado por Abdellatif Kechiche,
(Palme d’Or Cannes 2013, com vários prémios para realizador e para as duas
atrizes principais).
Desde já um resumo de
opinião formada após múltiplas leituras/visualizações: sendo interessantes, nem
um nem outro são completamente conseguidos no modo como (ab)usam mecanismos
narrativos repetitivos que se tornam desinteressantes, e no caso específico do
filme de Kechiche, desonestos. O (à partida inexplicável) prémio de Cannes e a
valorização subsequente da BD (bem como a polémica que rodeou um e outra)
explicam-se, não só por abordarem temas “fraturantes”, mas porque, parecendo
ser sobre exatamente a mesma coisa, são sobre coisas diferentes, usando as
mesmas personagens e cenários (e mesmo alguns momentos-chave). Trata-se, no
fundo, de uma questão da Reflexão e da Mensagem (com maiúsculas) que se querem
transmitir. E isso é de facto interessante.
Não que Abdellatif Kechiche
esconda o seu propósito, desde logo por utilizar um título de todo distinto da
BD, e pelo modo como chega a esse título. O nome do filme justifica-se em duas partes. Adèle é o nome de uma das duas
protagonistas, que se chama Clementine na BD. O facto de ser a única personagem
que muda de nome na adaptação (que não o é), e ter “ganho” precisamente o nome
da atriz que representa o papel (Adèle Exarchopoulos)
parecem demonstrar alguma fusão obsessiva entre personagem/atriz por parte do
realizador, algo que transpareceu de várias análises ao filme. No fundo um
pormenor titilante para quem se quiser deixar titilar, mas que tem
consequências. Seja como for, a segunda protagonista é sempre Emma na BD ou no
cinema (interpretada por Léa Seydoux). Quanto à referência aos Capítulos 1 e 2
da vida de Adèle, convém explicar o que é (na BD) o Capítulo 3. Desde já chamo
a atenção para o “spoiler alert”.
No
original Le Bleu est une couleur chaude,
é uma história de amor e descoberta (e negação) da (homo)sexualidade com claros
reflexos autobiográficos, e alguma afinidade com o trabalho de Alison Bechdel,
utilizando um registo que varia entre o documentário urbano e o drama. As
opções de Maroh são bastante lineares, desde as diversas situações e personagens
que cumprem a função de retratar as várias possibilidades necessárias para a
narrativa à medida que as protagonistas consolidam a sua ligação (repulsa,
afastamento, preconceito, aceitação, amor, relutância; diferentes relações com
amigos, familiares e colegas), à utilização das manifestações contra a política
educativa do governo francês, mostrando, não só as várias dimensões da evolução
das personagens, mas também como os revolucionários se podem juntar ou afastar
consoante as causas. Do ponto de vista gráfico há a mesma legibilidade, fora
alguns apontamentos muito interessantes em que situações tensas ou
temporalmente longas são resolvidas através de curtas sequências sem palavras; ou
o óbvio símbolo de afirmação e diferença que é o cabelo azul de Emma. O
objetivo é fazer passar uma mensagem de libertação e tolerância o mais clara
possível.
História
centrada nas duas protagonistas, a artista gráfica Emma é o fulcro/pilar à
volta do qual evolui a mais jovem estudante de liceu Clementine/Adèle. Não que
Emma não tenha dúvidas e temores (profissionais e pessoais), mas o leitor nunca
tem dúvidas quanto à sua maturação como pessoa; evidente quando perde com
naturalidade o cabelo azul, por já não precisar dele para se definir.
Clementine/Adèle é outra história.
Na
BD o Capítulo 1 é pois sobre o encontro das protagonistas, e de como a
descoberta de Emma é fundamental no assumir gradual de Clementine/Adèle
enquanto lésbica (e pessoa). O Capítulo 2 desenvolve a ruptura na relação entre
ambas, essencialmente devido às dúvidas identitárias e imaturidade de
Clementine/Adèle. No Capítulo 3 há um breve reencontro, onde feridas são
curadas e o amor triunfa. Breve, porque Clementine/Adèle morre de doença
cardíaca, que ataca quando faz amor com Emma numa praia, imersas ambas numa
felicidade adiada, finalmente redescoberta. Sim, isso mesmo, mais penosamente melodramático
e telenovelístico (até por ser genuinamente assumido) seria difícil... Desse
ponto de vista não se pode censurar Kechiche por ter dispensado este Capítulo.
A
parte de leão da BD (o Capítulo 1) é contada em “flashback” por
Clementine/Adèle, através dos seus diários, que Emma lê após a sua morte, numa (auto)reflexão
temperada pela distância. E é aí, na descoberta do amor, no lento assumir da
homossexualidade, e em todas as dificuldades em gerir ou ajustar as relações
pessoais, sociais e familiares em causa, que Le Bleu est une couleur chaude, se torna uma banda desenhada eficaz,
honesta, envolvente, e, fora alguns exageros e pormenores forçados, terna. É
sobretudo relevante o modo como Julie Maroh consegue traduzir coragem ancorada
em pequenos gestos quotidianos (marcados também por decepção e crueldade), que
são revolucionários precisamente por não o parecerem. Esta é (também) uma BD
claramente militante, que usa a experiência pessoal para um retrato global
(como o notável Stuck Rubber Baby de
Howard Cruse), e não há, nem que escamotear esse facto, nem que diminuir a obra
por causa disso. Em banda desenhada não há muitos autores mais militantes que
Joe Sacco, por exemplo. Fica ao critério do leitor se a morte demasiado
encenada de Clementine/Adèle na BD é entendida por Julie Maroh enquanto
“castigo” por não ter sabido assumir até ao fim, e em permanência, o amor da
sua vida, e, por inerência, não se ter assumido a si mesma.
Curiosamente
o filme La vie d'Adèle
- Chapitres 1 et 2 segue mesmo de muito
perto a BD, se excluirmos a já referida não inclusão do Capítulo 3. Mas a
mensagem é aqui completamente distinta. Se a relação entre as protagonistas é
central (e voltaremos a isso), o que está em causa no seu desmoronar é mais uma
visão de atitude perante a vida que não tem necessariamente a ver sobretudo com
orientação sexual (como na BD), mas antes com outras escolhas. No filme a
ruptura entre Emma e Clementine/Adèle tem lugar porque o seu crescimento
bifurcou: a primeira, Artista, existe num estádio de desenvolvimento superior,
enquanto a segunda, professora/educadora infantil, tem uma existência “banal”. Não
é claro (mas é de certo modo sugerido) se há aqui uma equivalência entre
escolha sexual e profissional, mas a traição (heterossexual) de
Clementine/Adèle surge, não só devido a inseguranças pessoais, mas por
sentimento de marginalização. Algo que parece confirmar-se no final aberto do
filme, quando Clementine/Adèle sai da “vernissage” da exposição que consagra
Emma (sinalizando a impossibilidade de reconciliação), e é seguida por um jovem
admirador. Um jovem que desistiu do sonho de ser ator (sendo de ascendência
magrebina apenas lhe calhavam papéis de terrorista... um bom toque do
argumento) para trabalhar numa imobiliária. Ou seja, desceu ao nível de
Clementine/Adèle, a sua relação é possível. Emma está num outro patamar.
É
fácil perceber portanto como se poderá ter achado que o filme trai o espírito
da BD, valorizando elementos distintos, e não tanto a descoberta de relações
pessoais e sexuais num determinado contexto sociocultural. Por exemplo, o filme
Mosquita y Mari da realizadora
chicana lésbica Aurora Guerrero (2012) está muito mais próximo de Le Bleu est une couleur chaude, porque
há um investimento autobiográfico de ambas as criadoras, que querem mostrar as
dificuldades acrescidas que tiveram para serem quem são num contexto o mais
“normal” possível (sem complicar com outro tipo de reflexões), e que estão a tentar
fazer Arte para quem as quer entender, não para quem quer glosar outros
interesses usando as suas histórias como ponto de partida. No caso de Mosquita y Mari e Le Bleu est une couleur chaude, o objetivo maior é aplicar ficção
para potenciar o que se pretende seja uma mistura de
documentário/manifesto/guia.
Embora
se deva sempre considerar a qualidade final de um objeto, seria ingénuo não
considerar aqui uma outra (longa e complexa) temática. A que discute quem tem o
“dever”, mas sobretudo o “direito” (entre aspas, a meu ver), de contar o quê
sobre quem, algo que surge sempre com temas fraturantes, nomeadamente
relacionados com a questão da Identidade (cultural, rácica, sexual). É uma
questão importante, até por não ser assumida diretamente em muitas análises. Só
para dar exemplos recentes que podem ter passado mais despercebidos: a abordagem
da escravatura (e, mais globalmente, da relação entre negros e brancos) nos EUA
levantou questões em Django Unchained
de 2012 (Quentin Tarantino é branco) e mesmo em 12 Years a Slave de 2013 (Steve
McQueen é negro, mas britânico); enquanto alguns claros viés encontrados
noutras abordagens de temática mais contemporânea, como os filmes de 2013 The Butler (Lee Daniels) ou sobretudo Fruitvale Station (Ryan Coogler), não
tiveram tanta atenção dos mesmos quadrantes (os dois últimos realizadores são
negros norte-americanos).
Não
que o sexo esteja ausente de La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2, muito pelo contrário. Na verdade as (muito) longas cenas
de sexo entre as protagonistas são conhecidas. Quanto a isso, três coisas. As
cenas de sexo existem na BD, em versão curta. No filme são gratuitas, mas
encenadas de modo a parecerem transgressoras (Kechiche pode ter tirado inspiração de Bruno Dumont, um realizador muito interessante, mas aparentemente
impune a esse nível). São, sobretudo, exageradamente longas, e a sua duração
não acrescenta nada, a não ser testar os limites da paciência do espetador,
como quaisquer outros excessos noutros filmes (violência, melodrama, etc.). Se
reclamar (ou sair da sala, como sucedeu nalguns casos) vai parecer conservador,
se aprovar não se livra da acusação de “voyeur”, uma acusação de resto feita a
Kechiche, e percebe-se porquê. Como se percebe, depois de ver as cenas, o peso
de uma alteração tão específica no nome de uma das protagonistas. Curiosamente
as cenas de sexo até nem são onde se sente mais o olhar do realizador sobre a
atriz Adèle Exarchopoulos. Por exemplo, a cena do treino de batuques com as
crianças é até mais reveladora, por misturar a inocência aparente da situação com
a ausência de Léa Seydoux.
Nestas coisas é sempre bom pensar em alternativas, e após sair
do cinema não pude deixar de imaginar o que sucederia se as mesmíssimas cenas
de sexo neste filme fossem protagonizadas por um casal heterossexual ou por um
casal homossexual masculino. Ou ainda se o filme fosse realizado por uma mulher
lésbica. Ou, por último, se as cenas fossem protagonizadas por dois atores
convincentes que, independentemente no sexo, não encaixassem em quaisquer
cânones de atratividade comummente aceites na indústria cinematográfica (e
sociedade em geral). Não tenho grandes dúvidas que muitos dos mesmos críticos
que elogiaram o filme o achariam gratuito; duvido seriamente que ganhasse
prémios fora do circuito restrito de festivais LGBT, ou tivesse, no máximo, a
atenção de Shortbus (de John Cameron
Mitchell, 2006) ou do mais recente e muito curioso L’inconnu du Lac (de Alain Guiraudie, 2013). O que temos, de facto, é erotismo lésbico visto
por um olhar masculino, o erotismo “transgressivo” mais aceitável de todos,
basta ir a qualquer site pornográfico. La
vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2 transforma-se aqui numa decepção, o que
minimiza o filme como um todo.
Realizador
franco-tunisino Abdellatif Kechiche utiliza muito bem essa dualidade (e os
diálogos entre culturas) para fazer, quer filmes excelentes a todos os níveis (La graine et le mulet, 2007), quer filmes mais interessantes
na temática e intenção, do que na concretização (Vénus noire, 2010). La vie
d'Adèle - Chapitres 1 et 2,
pertence à segunda categoria, e é talvez o filme mais sobrevalorizado a que
alguma vez assisti. No entanto, os resultados e interesses distintos que surgem
a partir de tantos elementos comuns tornam o duo Le Bleu est une couleur
chaude/La vie d'Adèle muito
relevante na extensa relação entre cinema e banda desenhada, no sentido em que
a sua análise em conjunto permite outro tipo de descobertas. Como sempre
aprende-se mais em qualquer diálogo quando há discordâncias.
Le
Bleu est une couleur chaude. Argumento e desenhos
de Julie Maroh (lido na versão inglesa: Blue Is the
Warmest Color, Arsenal Pulp Press 2013)
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