Crises
à parte a Europa continua a ser um destino de sonho para imigrantes das mais
variadas proveniências. Neste caso jovens marroquinos que buscam Barcelona escondidos
na parte de baixo de autocarros turísticos, aproveitando viagens aos enclaves
de Ceuta e Melila. Antes, durante e depois da viagem não são (apenas) símbolos.
São sobretudo miúdos, com todo o que isso implica.
“Khalid” dos espanhóis Damián e
Jordi Pastor é um livro que se assume enquanto registo documental levemente
ficcionado. Uma espécie de reportagem “baseada em factos reais”, que, como
todas as reportagens consequentes, defende com empenho um posicionamento
perante uma realidade social. Este é um livro sobre integração, que não esconde
os riscos daquilo que defende.
Em “Khalid”
contam-se duas histórias paralelas, de dois irmãos em posições opostas da
mesma diáspora. Numa escolha gráfica interessante (que é também útil a esconder
bem algumas limitações) o desenho angular a preto e branco de Jordi Pastor é
complementado pela cor amarela (como o deserto?) quando conta a odisseia
clandestina de Khalid, que deixa Marrocos para se juntar ao irmão Rachid;
enquanto o azul (como o mar?) pontua a vida de Rachid, já em Barcelona.
A
história de Khalid é mais simples e linear. Marcado por um ambiente social e
familiar pobre, não é preciso muito para estimular o protagonista a seguir o
caminho do irmão rumo a uma vida melhor. Na travessia ingénua para Barcelona,
ao medo e à esperança junta-se uma descrição curiosa da “etiqueta” dos
imigrantes clandestinos, de como se distribuem os ”lugares” entre os eixos dos
autocarros turísticos, de como se combatem vigilantes e os vapores dos tubos de
escape. A viagem de Khalid culmina com a generosidade que por vezes sorri aos
errantes, quando lhes podia calhar crueldade.
O
que Khalid vai fazer da sua vida em Barcelona não sabemos, mas o que vai encontrar
é conhecido desde início: a sua viagem iniciou-se com uma mentira do irmão
Rachid, sugerindo uma vida fácil e desafogada na Catalunha. Na verdade, Rachid
vive numa instituição de apoio a jovens imigrantes, onde técnicos bem
intencionados procuram trabalhar a sua integração social. Mas, e é aqui que o
livro foge da previsibilidade anunciada, a integração que Rachid procura não é
bem a que lhe é oferecida. O seu objetivo é uma existência de ócio, provocações
e pequenos roubos. Chegado ao sonho, não há qualquer gratidão em Rachid, apenas
a vontade de usufruir, sem culpa. No seu deambular pela cidade apenas o local
de nascimento o distingue de outros adolescentes com interesses semelhantes.
Se
o percurso de Rachid é encarado com crescente exasperação pelos seus guardiões,
tal apenas se deve a esse mesmo percurso, não ao facto de se tratar do um
imigrante. Rachid é aqui apenas mais um jovem com potencial que precisa de ser
ajudado a encontrar um caminho útil. O tema da sua origem apenas é abordado
pelos riscos que trás à própria instituição. Se nos bairros de Barcelona há
pouca paciência para jovens desordeiros, menos ainda haverá para o mesmo
fenótipo, com um genótipo não-nativo. No entanto, o argumento de Damián foca-se
sempre no aspeto local e individual, a passagem para uma abordagem global terá
de a fazer cada leitor. Desse ponto de vista a história pode ser facilmente
entendida e interpretada de perspectivas diametralmente opostas, de inclusão e
exclusão.
Seja
como for, no limite é sintomático que no título deste livro apenas surja o nome
do irmão ingénuo, generoso e grato, que tenta; e não o do irmão sabido, que
exige e explora. Mas na vida temos de conviver com ambos, e não estamos livres
que se transformem em permanência uns nos outros. Faz parte do ato de crescer.
E entender isso faz parte do nosso próprio crescimento.
Khalid. Argumento de Damián e desenhos de Jordi Pastor. Norma
Editorial (Coleção Nómada). 2013.
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