Desde
Joe Sacco que a banda desenhada de reportagem tem ganho cultores, embora seja
entendida de diferentes maneiras. Se Sacco faz da BD a sua ferramenta de reportagem
enquanto jornalista, Guy Delisle é um autor de BD cujas circunstâncias
transformam em “jornalista”, enquanto Emmanuel Guibert interpreta para BD os
testemunhos de outrem. Noutros caso o processo é mais linear: a BD enquanto
reportagem que desconstrói/reconstrói eventos. Como o assassinato brutal de
quatro jornalistas no Afeganistão, a 19 de novembro de 2001, quando começava a
“Guerra ao Terror”.
Lido em edição espanhola (na muito
interessante coleção “Nómada”, da Norma Editorial), Donde la Tierra Arde dos
italianos Giuseppe Galeani e Paola Cannatella é, na verdade, apenas sobre um
desses jornalistas, a italiana Maria Grazia Cutuli, na altura enviada do Corriere della Sera ao Paquistão e
Afeganistão. Na mesma altura foram mortos o espanhol Julio Fuentes (El Mundo), o australiano Harry Burton e
o afegão Azizullah Haidari (ambos da Reuters). Dias antes (11 de novembro) Johanne
Sutton (Radio France Internationale), Pierre Billaud (Radio Télévision
Luxembourg) e Volker Handloik (free-lancer, em serviço para a revista alemã Stern) tinham também morrido, mas as
circunstâncias foram distintas, neste caso tratou-se de um ataque com granadas
a um veículo dos combatentes da Aliança do Norte que os jornalistas
acompanhavam, uma semana depois assistiu-se a uma execução em que os jornalistas
eram claramente o alvo, e para a possibilidade da qual não pareciam preparados.
Desde
logo percebe-se o foco em Cutuli. Os autores são italianos, e a sua compatriota
teve de facto um percurso muito interessante enquanto jornalista que se recusou
a fazer o seu “papel natural”. Interessada nos direitos humanos (no Camboja, no
Ruanda) Maria Grazia Cutuli lutou sempre contra a tipificação, primeiro na
televisão regional da sua Sicília natal, depois em Milão. O seu objetivo sempre foi fazer
jornalismo na linha da frente dos conflitos marcantes, e lutar contra a
percepção de que, sendo mulher (e italiana), tal nunca seria verdadeiramente
possível. Para isso teve de aceitar outros tipos de trabalho (moda, sociedade),
até conseguir ser destacada para o Paquistão, onde um conjunto de
circunstâncias a fariam passar para o Afeganistão.
A altura
era de nervosismo global, após o ataque de 11 de Setembro de 2001 às Torres
Gémeas procuravam-se as bases da Al-Qaeda e Bin Laden, aguardavam-se novos
ataques, e o islamismo radical espreitava oportunidades numa zona que nunca
tinha tido uma governação linear. E, sobretudo, num tempo em que o Afeganistão
tinha sido um pouco esquecido, e deixado de “estar na moda”. Embora com
interesse estratégico inegável, tinha sido a invasão soviética de 1979-89 a colocar o país
no mapa de notícias internacionais naquele que seria um dos últimos estertores
da Guerra Fria, discutido sobretudo enquanto tal. Se antes vigorara a narrativa
simplista de “liberdade contra o comunismo imperialista”, em 2001 a viragem era
em direção à ainda mais simplista palavra-chave única “terrorismo”. No entanto,
o Afeganistão não tinha estado parado entre estes dois momentos debaixo dos
holofotes da atenção ocidental, a complexidade do seu território (geográfica,
cultural, étnica) mantinha-se, muitos dos protagonistas eram os mesmos embora
pudessem ter mudado de “designação” (alguns “terroristas” tinham sido décadas
antes “combatentes da liberdade”), e sobretudo tinham as suas agendas próprias,
recusando papéis impostos do exterior. Era esta a realidade complexa que
jornalistas como Cutuli ou Fuentes procuravam apresentar. Mas, se as zonas de
guerra nunca são boas, a altura era particularmente má. A juntar à fragmentação
de autoridade no Paquistão e Afeganistão, acrescentava-se a maior visibilidade
do sentimento antiocidental, que podia englobar tudo, incluindo, como se viu,
jornalistas.
O livro
de Galeani e Cannatella tenta abordar todos estes temas, mas sem perder de
vista o que para os autores é claramente mais importante: o percurso individual
de Maria Grazia Cutuli. Um percurso visto sobretudo do ponto de vista
profissional, diga-se. Ao contrário de outras filosofias empregues em trabalhos
biográficos (sobretudo anglo-saxónicos) a vida pessoal está ausente ou é
subentendida, fora dois ou três momentos (a relação com a irmã, por exemplo)
que parecem mesmo ter a função de mostrar que esse aspeto existia, que Cutuli
não era um robô movido pela sua profissão. O que acaba por garantir alguma
empatia adicional com o leitor, até porque a luta constante da protagonista
contra a percepção que os outros tinham dela enquanto jornalista poderia
tornar-se cansativa do ponto de vista narrativo, apesar da repetição vincar a
dificuldade da sua ascensão na carreira.
É
verdade que há muita informação no livro, considerando que apenas tem 120
páginas. O grande uso daquilo que acaba por ser mais texto ilustrado do que BD (mapas,
imagens representativas de diferentes momentos, retratos de intervenientes) faz
com que por vezes o ritmo se ressinta. Mas globalmente é esse detalhe que lhe
dá uma dimensão adicional, e os autores fazem um esforço meritório em termos,
quer do historial da região (nomeadamente o modo como foi condicionando o papel
das mulheres), quer nos episódios da vida da protagonista que a empurraram para
lá, e que funcionam como “intermezzos”. Isto embora a necessidade de
contextualizar também a situação no Camboja e Ruanda (países onde Maria Grazia
Cutuli tinha trabalhado antes) de facto distraiam do foco principal da
narrativa. Quanto ao desenho tem por base um registo fotográfico realista, apesar
de algumas dificuldades com movimento; é sobretudo funcional sem ser demasiado
apelativo, o fulcro aqui é outro. É interessante que, do ponto de vista
gráfico, os momentos mais conseguidos são aqueles em que se fazem longos
“flashbacks” históricos expositivos e o traço ganha contornos de esboço mais
ligeiro (sublinhando serem antecedentes externos à estória principal que se
conta); bem como momentos simbólicos e poéticos, quando não há necessidade de
transmitir informação documentada.
Em Donde la Tierra Arde os outros
jornalistas têm papéis claramente secundários, com o espanhol Julio Fuentes a
sobressair como uma espécie de referência e mentor para Cutuli. E cuja surpresa
perante a situação, apesar da sua experiência no caos da ex-Jugoslávia, parece
demonstrar que os riscos foram mal avaliados, que a situação no Afeganistão era
muito mais do que “apenas” explosiva. Como seria compreensível a edição
espanhola procura focar mais a atenção no seu compatriota, começado pelo nome
da obra (no original Maria Grazia Cutuli. Dove la terra brucia),
pela capa (com os dois jornalistas, apenas Cutuli surge na edição original) e
contracapa, e acabando no prefácio do escritor Arturo Pérez-Reverte, que nem
menciona Cutuli (nem seria lógico, foi originalmente escrito para homenagear o seu
amigo pessoal Julio Fuentes, e publicado no El
Mundo dois dias após a sua morte). Desse ponto de vista, ao tentar vender o
livro de um modo um pouco distinto ao qual foi concebido, é notória uma falta
de enquadramento que poderia ter sido facilmente evitada (com um dossiê
atualizado, por exemplo), mas que poucas editoras parecem disponíveis para
concretizar.
Talvez a reflexão mais interessante em Donde
la Tierra Arde se projete um pouco para além do próprio livro. O risco
mal calculado da fatídica viagem para Cabul representou de certo modo uma
derrota para um estilo de jornalismo empenhado e independente que Cutuli e
Fuentes preconizavam, por oposição a versões mais “domesticadas”, como o
“jornalismo de hotel” que se limita a retransmitir informação já processada, ou
a inclusão de jornalistas em estruturas oficiais (como os jornalistas inseridos,
ou “embedded” em colunas militares) nas
quais a sua atividade pode ser mais eficazmente monitorizada. É claro o
desprezo da protagonista pela primeira destas versões (a segunda seria
popularizada mais tarde), mas seria também interessante ver como consideraria hoje
o recente desenvolvimento em sentido oposto, o chamado “jornalismo dos
cidadãos”. Isto embora seja sempre de considerar o modo como circula e é
validada a informação, não necessariamente apenas qual ela seja, ou de que modo
é obtida. É uma reflexão que não podia ser mais contemporânea (e urgente).
Há um potencial Post Scriptum, que o livro não inclui, e que é este: o crime que
vitimou os jornalistas teve culpados, e pelo menos um foi condenado e executado
em Cabul. Contra os desejos dos familiares das vítimas, que pediram a comutação
da pena em prisão perpétua. Não é obrigatório que a barbárie triunfe, muito
menos que o faça por defeito.
Donde la Tierra Arde. Argumento de Giuseppe Galeani e desenhos de Paola
Cannatella. Norma Editorial. 2012. Edição original italiana: Maria
Grazia Cutuli. Dove la terra brucia.
Rizzoli-Lezard, 2011.
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