quarta-feira, 9 de março de 2016

Os riscos (mal) calculados: “Donde la Tierra Arde”, de Giuseppe Galeani e Paola Cannatella

Desde Joe Sacco que a banda desenhada de reportagem tem ganho cultores, embora seja entendida de diferentes maneiras. Se Sacco faz da BD a sua ferramenta de reportagem enquanto jornalista, Guy Delisle é um autor de BD cujas circunstâncias transformam em “jornalista”, enquanto Emmanuel Guibert interpreta para BD os testemunhos de outrem. Noutros caso o processo é mais linear: a BD enquanto reportagem que desconstrói/reconstrói eventos. Como o assassinato brutal de quatro jornalistas no Afeganistão, a 19 de novembro de 2001, quando começava a “Guerra ao Terror”.
Lido em edição espanhola (na muito interessante coleção “Nómada”, da Norma Editorial), Donde la Tierra Arde dos italianos Giuseppe Galeani e Paola Cannatella é, na verdade, apenas sobre um desses jornalistas, a italiana Maria Grazia Cutuli, na altura enviada do Corriere della Sera ao Paquistão e Afeganistão. Na mesma altura foram mortos o espanhol Julio Fuentes (El Mundo), o australiano Harry Burton e o afegão Azizullah Haidari (ambos da Reuters). Dias antes (11 de novembro) Johanne Sutton (Radio France Internationale), Pierre Billaud (Radio Télévision Luxembourg) e Volker Handloik (free-lancer, em serviço para a revista alemã Stern) tinham também morrido, mas as circunstâncias foram distintas, neste caso tratou-se de um ataque com granadas a um veículo dos combatentes da Aliança do Norte que os jornalistas acompanhavam, uma semana depois assistiu-se a uma execução em que os jornalistas eram claramente o alvo, e para a possibilidade da qual não pareciam preparados.

Desde logo percebe-se o foco em Cutuli. Os autores são italianos, e a sua compatriota teve de facto um percurso muito interessante enquanto jornalista que se recusou a fazer o seu “papel natural”. Interessada nos direitos humanos (no Camboja, no Ruanda) Maria Grazia Cutuli lutou sempre contra a tipificação, primeiro na televisão regional da sua Sicília natal, depois em  Milão. O seu objetivo sempre foi fazer jornalismo na linha da frente dos conflitos marcantes, e lutar contra a percepção de que, sendo mulher (e italiana), tal nunca seria verdadeiramente possível. Para isso teve de aceitar outros tipos de trabalho (moda, sociedade), até conseguir ser destacada para o Paquistão, onde um conjunto de circunstâncias a fariam passar para o Afeganistão.
A altura era de nervosismo global, após o ataque de 11 de Setembro de 2001 às Torres Gémeas procuravam-se as bases da Al-Qaeda e Bin Laden, aguardavam-se novos ataques, e o islamismo radical espreitava oportunidades numa zona que nunca tinha tido uma governação linear. E, sobretudo, num tempo em que o Afeganistão tinha sido um pouco esquecido, e deixado de “estar na moda”. Embora com interesse estratégico inegável, tinha sido a  invasão soviética de 1979-89 a colocar o país no mapa de notícias internacionais naquele que seria um dos últimos estertores da Guerra Fria, discutido sobretudo enquanto tal. Se antes vigorara a narrativa simplista de “liberdade contra o comunismo imperialista”, em 2001 a viragem era em direção à ainda mais simplista palavra-chave única “terrorismo”. No entanto, o Afeganistão não tinha estado parado entre estes dois momentos debaixo dos holofotes da atenção ocidental, a complexidade do seu território (geográfica, cultural, étnica) mantinha-se, muitos dos protagonistas eram os mesmos embora pudessem ter mudado de “designação” (alguns “terroristas” tinham sido décadas antes “combatentes da liberdade”), e sobretudo tinham as suas agendas próprias, recusando papéis impostos do exterior. Era esta a realidade complexa que jornalistas como Cutuli ou Fuentes procuravam apresentar. Mas, se as zonas de guerra nunca são boas, a altura era particularmente má. A juntar à fragmentação de autoridade no Paquistão e Afeganistão, acrescentava-se a maior visibilidade do sentimento antiocidental, que podia englobar tudo, incluindo, como se viu, jornalistas.
O livro de Galeani e Cannatella tenta abordar todos estes temas, mas sem perder de vista o que para os autores é claramente mais importante: o percurso individual de Maria Grazia Cutuli. Um percurso visto sobretudo do ponto de vista profissional, diga-se. Ao contrário de outras filosofias empregues em trabalhos biográficos (sobretudo anglo-saxónicos) a vida pessoal está ausente ou é subentendida, fora dois ou três momentos (a relação com a irmã, por exemplo) que parecem mesmo ter a função de mostrar que esse aspeto existia, que Cutuli não era um robô movido pela sua profissão. O que acaba por garantir alguma empatia adicional com o leitor, até porque a luta constante da protagonista contra a percepção que os outros tinham dela enquanto jornalista poderia tornar-se cansativa do ponto de vista narrativo, apesar da repetição vincar a dificuldade da sua ascensão na carreira.
É verdade que há muita informação no livro, considerando que apenas tem 120 páginas. O grande uso daquilo que acaba por ser mais texto ilustrado do que BD (mapas, imagens representativas de diferentes momentos, retratos de intervenientes) faz com que por vezes o ritmo se ressinta. Mas globalmente é esse detalhe que lhe dá uma dimensão adicional, e os autores fazem um esforço meritório em termos, quer do historial da região (nomeadamente o modo como foi condicionando o papel das mulheres), quer nos episódios da vida da protagonista que a empurraram para lá, e que funcionam como “intermezzos”. Isto embora a necessidade de contextualizar também a situação no Camboja e Ruanda (países onde Maria Grazia Cutuli tinha trabalhado antes) de facto distraiam do foco principal da narrativa. Quanto ao desenho tem por base um registo fotográfico realista, apesar de algumas dificuldades com movimento; é sobretudo funcional sem ser demasiado apelativo, o fulcro aqui é outro. É interessante que, do ponto de vista gráfico, os momentos mais conseguidos são aqueles em que se fazem longos “flashbacks” históricos expositivos e o traço ganha contornos de esboço mais ligeiro (sublinhando serem antecedentes externos à estória principal que se conta); bem como momentos simbólicos e poéticos, quando não há necessidade de transmitir informação documentada.
Em Donde la Tierra Arde os outros jornalistas têm papéis claramente secundários, com o espanhol Julio Fuentes a sobressair como uma espécie de referência e mentor para Cutuli. E cuja surpresa perante a situação, apesar da sua experiência no caos da ex-Jugoslávia, parece demonstrar que os riscos foram mal avaliados, que a situação no Afeganistão era muito mais do que “apenas” explosiva. Como seria compreensível a edição espanhola procura focar mais a atenção no seu compatriota, começado pelo nome da obra (no original Maria Grazia Cutuli. Dove la terra brucia), pela capa (com os dois jornalistas, apenas Cutuli surge na edição original) e contracapa, e acabando no prefácio do escritor Arturo Pérez-Reverte, que nem menciona Cutuli (nem seria lógico, foi originalmente escrito para homenagear o seu amigo pessoal Julio Fuentes, e publicado no El Mundo dois dias após a sua morte). Desse ponto de vista, ao tentar vender o livro de um modo um pouco distinto ao qual foi concebido, é notória uma falta de enquadramento que poderia ter sido facilmente evitada (com um dossiê atualizado, por exemplo), mas que poucas editoras parecem disponíveis para concretizar.
Talvez a reflexão mais interessante em Donde la Tierra Arde se projete um pouco para além do próprio livro. O risco mal calculado da fatídica viagem para Cabul representou de certo modo uma derrota para um estilo de jornalismo empenhado e independente que Cutuli e Fuentes preconizavam, por oposição a versões mais “domesticadas”, como o “jornalismo de hotel” que se limita a retransmitir informação já processada, ou a inclusão de jornalistas em estruturas oficiais (como os jornalistas inseridos, ou “embedded”  em colunas militares) nas quais a sua atividade pode ser mais eficazmente monitorizada. É claro o desprezo da protagonista pela primeira destas versões (a segunda seria popularizada mais tarde), mas seria também interessante ver como consideraria hoje o recente desenvolvimento em sentido oposto, o chamado “jornalismo dos cidadãos”. Isto embora seja sempre de considerar o modo como circula e é validada a informação, não necessariamente apenas qual ela seja, ou de que modo é obtida. É uma reflexão que não podia ser mais contemporânea (e urgente).
Há um potencial Post Scriptum, que o livro não inclui, e que é este: o crime que vitimou os jornalistas teve culpados, e pelo menos um foi condenado e executado em Cabul. Contra os desejos dos familiares das vítimas, que pediram a comutação da pena em prisão perpétua. Não é obrigatório que a barbárie triunfe, muito menos que o faça por defeito.
  

Donde la Tierra Arde. Argumento de Giuseppe Galeani e desenhos de Paola Cannatella. Norma Editorial. 2012. Edição original italiana: Maria Grazia Cutuli. Dove la terra brucia.  Rizzoli-Lezard, 2011.

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