Um
aspeto menos debatido da BD de reportagem e reflexão biográfica relaciona-se,
não necessariamente com o revelar daquilo que se viveu, mas com o ter-se vivido
um embrião de outras coisas. E se um colega de liceu se tivesse mais tarde tornado
o Canibal de Milwaukee? E se tivéssemos feito partidas na escola com Jeffrey
Dahmer, um dos mais famosos assassinos em série nos EUA? Como se revisitaria
esse tempo? Foi este o pretexto para My Friend Dahmer,
do cartoonista Derf Backderf (mais conhecido apenas como Derf); a edição
francesa ganhou em 2014 um Prémio Revelação no último Festival de BD de
Angoulême, o mais importante certame europeu.
Partilhar o espaço próximo de uma sala de aula com jovens pessoas
em evolução, e assistir mais tarde ao sucesso que têm na sua vida, é um das
melhores sensações de ser Professor, uma profissão cuja “narrativa” nacional
corrente se reduz, infelizmente, a folhas de Excel instrumentalizadas. Mas
claro que também há momentos (raros, e ainda bem) em que se é confrontado, por
exemplo, com o facto de se ter orientado anos antes o trabalho laboratorial de
um assassino e da sua vítima.
Nessa altura há duas respostas canónicas: não acreditar que
algo do género fosse possível; ou não ficar muito surpreendido porque “havia
ali qualquer coisa que não batia certo”. Antigos alunos do Liceu Paul Revere em
Bath, Ohio poderiam ter tido uma destas reações em 1991 quando Jeffrey Dahmer
foi finalmente preso em Milwaukee, Wisconsin, 12 anos e 17 mortes após um
percurso que se iniciou, precisamente, após acabar o Secundário. Se bem que
aqui a maior parte deles optaria pela segunda hipótese. E esse é, desde logo, o
principal motivo de interesse de My
Friend Dahmer, já que a sensação que fica é a de alguém que estava, de
facto, num percurso inevitável. Assim sendo, porque não foi detectado antes, não
só na Escola Secundária, mas mais tarde? Na verdade visto a posteriori, parece quase incrível como, apesar de ter feito quase
tudo para ser apanhado, Dahmer conseguiu evitar captura durante anos, chegando
a ser escoltado a casa pela polícia com uma das vítimas, que tinha fugido e que
o assassino recapturara na rua (drogada, a vítima não conseguiu atrair a
atenção das autoridades). Branco, de classe média, calado, educado, Jeffrey
Dahmer podia não ter o “carisma” sedutor de Ted Bundy, para quem foi cunhado o
termo “serial killer” (e cuja “carreira” acabava quando a de Dahmer começava),
mas tinha outra caraterística: não sendo propriamente invisível, era o tipo
estranho que todos escolhiam não ver.
Para entender devidamente a dimensão deste livro é preciso
perceber, não só o fascínio particular com as várias dimensões de Jeffrey
Dahmer (homossexual reprimido, canibal, necrófilo, colecionador de pedaços
humanos, para além de assassino), mas sobretudo a relação nostálgica que os
Norte-Americanos têm com a Escola Secundária, cujo final é encarado com o
verdadeiro ritual de passagem para a vida adulta, profissional. O secundário é
não poucas vezes definido em absolutos, como o melhor ou pior período da vida
de alguém, sendo revisitado em reuniões periódicas regulares, décadas após a
sua conclusão. Por outro lado, cada ano (9º ao 12º) é encarado como uma
unidade, não há turmas (ou apenas uma Turma gigantesca) mas diferentes
disciplinas que se podem escolher para diferentes percursos, com algumas
formações obrigatórias e atividades comuns (as mais emblemáticas serão o Baile
de Finalistas e o Livro de Curso no 12º ano). Ou seja, apesar de divididos em distintos
grupos socioculturais, há uma sensação de micro-comunidade. Ter partilhado essa
comunidade com alguém como Jeff Dahmer teria forçosamente de deixar marcas.
Este foi um homem que acabou o Ensino Secundário e entrou na vida adulta a
matar. Mas o ímpeto teria de vir de trás.
Autor da tira The
City, publicada em vários jornais norte-americanos, Derf realizou
igualmente Punk Rock & Trailer Parks (2010), relato ficcionado da cena punk em Akron no Ohio na
década de 1980. My Friend Dahmer é curiosamente anterior, não só no
tempo real que aborda (final da década de 1970), mas enquanto obra que Derf
iniciou em 1994, logo após Dahmer ter sido assassinado na prisão, onde cumpria
16 penas perpétuas consecutivas. Percebe-se porquê. Se há algo mais perturbador
do que o percurso de um assassino é pensar como se aborda esse percurso sem ser
banal, oportunista, mórbido. Até porque o estilo gráfico de Derf, e sobretudo
as figuras humanas alongadas, fazem sobressair naturalmente o grotesco em
qualquer representação, notando-se a
influência de Crumb, mas sem o humor.
Mesmo com a planificação neutra e o tom fatual quase monocórdico que o livro
privilegia, o desenho caminha sempre na fronteira entre a normalidade com que
Derf e os seus colegas viviam o momento, e a corrente subterrânea que, no mesmo
espaço-tempo, movia Dahmer.
My Friend Dahmer não é uma mera memória
biográfica, surge como resultado de pesquisas, não só junto de outros colegas
(cujos nomes foram alterados), mas de muito do imenso material publicado sobre
Dahmer. Tudo o que Derf encontrou para tentar explicar a evolução do jovem alto
e desengonçado que era utilizado pelos colegas para pregar partidas,
fingindo-se de deficiente mental nas mais variadas circunstâncias (algo que os
colegas referiam como “doing a Dahmer”), e sendo introduzido em eventos onde
nunca deveria ter estado, quer em pessoa, quer através de caricaturas
(desenhadas pelo próprio Derf).
Tal como com Ted Bundy, a história
de Jeff Dahmer é retrospetiva, e tenta explicar tudo, sem verdadeiramente
explicar nada. Há uma família distante, uma mãe com distúrbios mentais. Há uma
homossexualidade nunca integralmente assumida, desde o começo com laivos de
necrofilia. Há um fascínio pela morte, com a disseção e preservação de animais.
Há um alcoolismo juvenil grave que o parece anestesiar ao longo de todo o 12º
ano. Há um divórcio litigioso que acaba por deixar Dahmer sozinho numa casa
isolada após a conclusão do liceu, sem nada para fazer, que não cometer o seu
primeiro crime. Derf consegue gerir muito bem o ritmo narrativo, misturando memórias
pessoais com hipóteses sobre potenciais momentos marcantes no percurso de
Dahmer. Como elementos permanentes a permear o livro Derf usa a sensação de
catástrofe iminente e o sentimento de incredulidade, que tornam a atmosfera de My
Friend Dahmer uma mistura de cativante e insuportável.
Claro que há uma outra coisa muito importante a registar. O
facto de em todo o livro ser óbvio que ninguém tentou estabelecer qualquer
ligação com Jeffrey Dahmer, que não fosse para o utilizar em partidas. É algo
triste que o nome, O meu amigo Dahmer,
seja por isso a coisa mais errada nesta obra. Mas My Classmate Dahmer/O Meu Colega Dahmer não soaria tão bem. É que Derf
não era “amigo” de Dahmer, ninguém era. Dahmer era apenas o estranho solitário,
usado para chocar, para sempre desconhecido.
Não que isso desculpe o que quer que seja. Mas é um pouco
perturbador que Derf procure responsabilizar a família ou o sistema educativo
por não ter detetado os problemas óbvios e ajudado Jeffrey Dahmer quando talvez
ainda fosse útil, e pareça desculpabilizar toda a comunidade onde estava
inserido, de onde emergiu. E na qual o autor se incluía. Na sua
(auto)reportagem Derf está sempre a espreitar o melhor modo de sair, de olhar
por fora. E não pode. É mais uma tensão a juntar a todas as outras que rodeiam
o nascimento de um assassino, que um dia foi um simples jovem, perturbado e
invisível. Como muitas vezes sucede My Friend Dahmer é
um excelente livro, não só pela construção elaborada que cumpre um determinado
objetivo, mas por aquilo que se lê nas entrelinhas, e que não parece ter sido
intencional. É que os monstros podem não ter amigos, mas não se fazem sozinhos.
My Friend Dahmer. Argumento e desenhos de Derf Backderf. Abrams ComicArts.
2012.
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