O canadiano Chester Brown é um dos mais importantes
autores contemporâneos de banda desenhada (Underwater,
Ed the Happy Clown, The Playboy, I Never Liked You, Louis Riel). O
autobiográfico Paying
for It discute o modo como o autor supriu um vazio na
sua vida após o fim de um longo relacionamento amoroso: com recurso exclusivo e
sistemático à prostituição, que acaba por defender como uma opção de vida
amorosa como qualquer outra, se não mesmo superior. Como todas as pessoas
inteligentes e talentosas que se envolvem com algo polémico, Chester Brown
sente necessidade de ter razão, de explicar e defender as suas posições ao
longo de cerca de 300 páginas de BD,
apêndices e notas.
Este não é um livro fácil. Mas é um livro que é
interessante conhecer e discutir.
Chester Brown sabe bem o
que escreveu e desenhou. Agradece à sua editora Drawn & Quarterly por ter
aceitado apostar numa obra complicada, mesmo do ponto de vista dos que seguem o
seu trabalho, e que poderão não simpatizar nada com as suas posições, até pelo
modo directo e agressivo como são apresentadas e defendidas. Entende até que
por motivos comerciais lhe tenham imposto um título, Paying for It, sugestivo de uma duplicidade (pagar
em dinheiro, pagar emocionalmente) que afirma nunca ter existido. Gastar
dinheiro com a prostituição sim, sentir-se culpado ou diminuído pelas suas
opções nunca. Desse ponto de visto o subtítulo A comic-strip memoir about being a john (john=cliente) é perfeito
na sua precisão. Já o efeito da Introdução de Robert Crumb é mais diícil de
prever, Crumb surge aqui numa provocação editorial transparente de
representação dupla: enquanto autor lendário e influência maior em Brown, e
enquanto misógino cuja objetificação de mulheres é muito discutida. Porque
disso tambem se trata, embora seja um tema sublimado.
Há três momentos principais em Paying fot It, balizados por fugas temáticas. O primeiro momento
relata o fim da relação amorosa (a relação de amizade mantém-se até hoje) do
autor com Sook-Yin Lee, que os seus leitores “conhecem” (no sentido em que é
possível conhecer alguém através de representações feitas por outra pessoa) de
obras anteriores. Enquanto esse (longo) processo de quebra decorre inicia-se o
segundo momento, o renunciar ao “amor romântico” e a busca de satisfação com
prostitutas. Assiste-se à profissionalização de Chester Brown enquanto cliente.
A busca de bordéis, a consulta regular de fóruns na internet para obter
críticas e recomendações sobre prostitutas de Toronto, a orçamentação da
actividade sexual; até ao momento crucial em que Brown começa a receber em
casa, simbolicamente introduzindo a prostituição no seu mundo. O último momento
corresponderá ao presente (tal como é apresentado nas notas finais): Chester
Brown numa relação monogâmica como uma mulher (“Denise”) a quem paga para ter
sexo regularmente. De várias prostitutas acabou por se fixar numa só que
(segundo ele) já não tem outros clientes. Uma prostituta com um só cliente
ainda o é? Que nome se dá a uma relação em que o homem dá dinheiro a uma mulher
pelo previlégio de ter sexo com ela? Provocatoriamente Chester Brown sublinha
que em alguns lugares se chamaria a tal coisa “casamento”.
As fugas que preenchem grande parte do livro
correspondem a conversas de Chester Brown com amigos, que funcionam, primeiro
para fazer pontos de situação, depois como pretextos para o autor discorrer
sobre a sua filosofia de vida, que se vai solidificando com o tempo. E para os
amigos contraporem (de maneira frágil, como veremos) algum espanto perante as
escolhas do autor; que só não serão mais desagradáveis (e Brown sabe-o) porque
as relações prévias são fortes. Este lote de confidentes é composto pelas
amigas Sook-Yin e Kris Nakamura, pelo irmão de Chester, e por dois importantes
autores de banda desenhada: Joe Matt e, sobretudo, o notável Seth (Palookaville, Clyde Fans, George Sprott,
Wimbeldon Green). Se o segundo é mais analítico e o que mais discute com
Brown, a participação do primeiro não deixa de ser muito curiosa. Nas suas
bandas desenhadas autobiográficas (Peepshow)
Joe Matt tornou-se conhecido por uma vida amorosa disfuncional, com recurso
imoderado à pornografia e à masturbação. Sentir a sua perplexidade perante o
estilo de vida escolhido por Brown é, como os próprios notam, revelador de
quanto a nossa idiosincrasia permanece invisível perante o brilho intenso da
dos outros.
Note-se que o estilo gráfico de Chester Brown nada
tem a ver com a caricatura exagerada e humorística de Joe Matt. Na verdade o
estilo de Chester Brown em Paying For it
é distinto do do próprio Chester Brown de livros anteriores, sublinhando o
propósito. É um estilo claro, depurado. Há poucas zonas de sombras ou uso de
tramas para dar textura ou um sugerir um ambiente onírico, predominam os fundos
negros a rodear as personagens. Nos diálogos com amigos repetem-se sequências,
perspectivas e desenhos quase indestinguíveis entre si, as caras são ainda
menos expressivas do que o habitual, ou talvez se note mais pela repetição de
poses. Pretende-se manter o leitor à distância em alguns momentos, e
facilitar-lhe o acesso ao texto noutros. O segundo objetivo é bastante claro,
no sentido em que é importante para a obra que um leitor não se distraia do
essencial, colocando-o perante um cenário “aborrecido” onde apenas o texto
sobressai. O primeiro complementa, mas é mais subtil e revela-se nas cenas de
sexo, cuja representação explícita mas clínica paradoxalmente torna-as quase
assexuadas e acessórias, uma descarga fisiológica (até, mais uma vez, pela
repetição). Paying For It pode
estimular a vários níveis, mas dificilmente a esse. Este tipo de escolhas
estilísticas tem o propósito de focar a
mensagem, mas faz com que a obra seja pesada, e menos interessante enquanto BD.
Embora possa parecer heresia, há algumas afinidades entre o trabalho de Chester
Brown aqui e o constrangimento que se vê em obras de carácter pedagógico, com
uma missão bem definida.
A missão neste caso é defender a prostituição como
um modo saudável de relacionamento entre adultos, superior a um quimérico amor
romântico monogâmico que não é razoável nem sustentável a longo prazo. Apenas
mais um tipo de contrato, como tantos outros socialmente aceites. A
prostituição devia, por consequência, ser completamente legal. Mas não pagar
impostos, nem ser regulamentada. Sem, por exemplo, bordéis identificáveis ou
testes médicos obrigatórios. Como uma coisa privada entre adultos completamente
livres, a que nenhuma autoridade tivesse acesso, por motivo algum, mesmo que de
saúde pública. Esta filosofia libertária (politicamente Brown é candidato pelo
Partido Libertário canadiano) vai-se cristalizando ao longo do livro, e acaba
por alimentar, nas suas várias vertentes, as discussões que Chester Brown vai
tendo, sobretudo com Seth. Discussões que se tornam por vezes pesadas e
desagradáveis, porque não são bem discussões. Chester Brown demorou muito tempo
a chegar onde se encontra. Sabe da impopularidade das suas ideias, que podem
colocar amigos entre a confusão e o nojo. Mas esse não é um terreno novo para o
autor, há de resto muitos pontos de contacto com o livro anterior Louis Riel, biografia ficcionada de uma
figura controversa da história do Canadá (líder dos separatistas “Métis, uma
população autóctone canadiana da província do Manitoba, no século XIX), que
hoje se lê com outros olhos; Brown trabalhava nela quando iniciou esta fase da
sua vida, e oferece um fascículo a umas das suas prostitutas.
Chester Brown pensou muito. Pensou e pesquisou (como
fez para Louis Riel). Mais: decidiu
expor-se totalmente e tem confiança no que sabe. Não já no que pensa (é uma
distinção importante), mas no que sabe. Nenhum dos seus interlocutores tem
hipótese face ao seu rolo compressor, todo o contraditório é rapidamente
desmontado, combatido, menorizado, ignorado. Por vezes, com ideias e estudos
interessantes, por vezes com retórica, por vezes com fúria. Não há grande
discussão porque em altura nenhuma do livro Chester Brown sai de uma conversa
com uma ideia diferente (nem que levemente diferente) da que já tinha. Os
diálogos são, num sentido quase clássico do termo, momentos para expor
capítulos acabados de um tratado.
É importante discutir aqui a honestidade na
representação. Um autor autobiográfico fundamental como é o francês Fabrice
Néaud (os vários volumes de Journal)
relata confrontos com (ex)amigos, amantes ou conhecidos que terão ficado
furiosos com o retrato que o autor deles fez nos seus trabalhos. Néaud diz-se
honesto naquilo que representou, mas nas situações em causa nunca há só uma
verdade. Neste caso Chester Brown evita quaisquer constrangimentos: mostrou o
livro acabado a todos os seus amigos que nele participaram (involuntariamente,
na altura) e mostrou-se disponível para alterar ou omitir. O livro ficou como
estava. Na verdade apenas Seth comenta algumas cenas num dos apêndices, e as
suas notas são de profunda amizade e respeito para com “Chet”. Admite, até, ter
revisto algumas das suas ideias pré-concebidas quanto à prostituição, mas, em
essência, faz o gesto universal de aceitar um amigo tal como é. E acrescenta
ainda a frase mais engraçada de todo o livro (admitidamente não era difícil
numa obra desta natureza): “ter uma cena em que Chester Brown e Joe Matt
discutem a natureza do amor romântico é mais ou menos o mesmo que imaginar dois
cegos a pintar o por do sol”. Mas o que queria vincar é simplesmente isto:
acredito que Chester Brown domina todas as discussões do livro porque assim foi
na realidade, não porque tenha usado o seu previlégio enquanto autor para
manipular a representação. Não é por aí. O que se passa é que nas
conversas/debates que constituem o seu fulcro Paying fot It opõe amadores para quem o tema da prostituição é
remoto, a um profissional muito bem preparado para quem o mesmo tema faz
doutrina. Esse desequilíbrio está na base do desequilíbrio da própria obra
enquanto narrativa em banda desenhada, e faz a sua força quando o tratado se
revela manifesto.
A fragillidade do livro surge quando, como bom
manifesto, não admite senão a sua absoluta justeza. Um exemplo evidente é a
possível coação sobre as prostitutas, a escravatura sexual envolvendo
imigrantes ilegais, oferta tornada possível pela procura. Brown não ignora a
questão global directamente, ignora-a ignorando o particular. Tal coisa existe,
mas não com as “suas prostitutas” que sempre lhe pareceram “absolutamente
livres”. Brown considera-se num nível superior enquanto cliente, e no seu
“nicho de mercado” (limpo, civilizado, assético) tais barbaridades não
acontecem, tudo é livre e consensual, uma economia de mercado idílica, onde
nunca houve exploração de ninguém, apenas pagamento de serviços. Daí, mais uma
vez, a sua renitência quanto a fiscalização/regulação. Isto apesar de várias
vezes as raparigas virem a sua casa acompanhadas por escoltas “com sotaque” que
lhes telefonam se ultrapassam o tempo estipulado. A ingenuidade (ou teimosia)
do autor neste aspeto chega a ser confrangedora.
Apesar de de toda a pesquisa, de toda a vontade, há
pois em Paying Fot It um fio condutor
de auto-justificação estridente, que a “neutralidade” repetitiva do desenho
ajuda a diluir limitando reações viscerais por parte de um leitor com opiniões
distintas, mas que nunca poderia eliminar. Ao contrário do que sucede em Louis Riel o leitor aqui não é convidado
a interpretar, é posto perante um ponto de vista. O tom lembra discussões de
outros temas controversos, por exemplo relacionados com investigações
científicas sobre as bases genéticas da homosexualidade ou do racismo levadas a
cabo (ou opostas) por investigadores que estão claramente determinados em
descobrir o que já “sabem”. Por outro lado, neste livro toda a discussão quase
faz esquecer que se fala aqui de mulheres concretas. E há boas razões para
isso.
De facto, a presença e representação de mulheres é
uma das questões-chave, e o elemento que perturba mais. A amiga de Chester
Brown Kris Nakamura é quem menos entende/aceita as suas opções. Quanto a
Sook-Yin Lee a relação que manteve com o autor, a culpa por a ter terminado, e
a vontade que este encontre um caminho próprio viável tornam-na quase uma
figura-espelho compreensiva. Falta a perspectiva de “Denise”, cuja não-inclusão
forma o maior vazio de Paying For It.
Chester Brown fornece “provas” gráficas de todos os pormenores autobiográficos,
menos deste elemento crucial. Quem “Denise” é e o que pensa surge apenas nas
palavras do autor. Este aparente pudor pretende garantir a privacidade, não
revelando pormenores que permitissem a sua identificação. O mesmo princípio
será válido para as restantes prostitutas: apenas o tipo corporal básico e as
conversas com o autor terão uma representação fiel. Nomes e histórias são
ficcionalizados, provavelmente ficções sobre as ficções que as próprias
prostitutas construiram, como Brown admite (chega a encontrar a mesma
prostituta com dois nomes/histórias diferentes). Sobretudo não se representam
caras. Em profundo contraste, as descrições sobre atributos físicos e
capacidades sexuais (ou sua falta) de cada prostituta são detalhadas, rigorosas
e feitas com entusiasmo. Ao gerar representações gráficas vagas e desumanizadas
sem ter o mesmo pudor com o texto, Chester Brown cria (inadvertidamente?) uma
objetificação mais vincada destas mulheres. Poderá ser honesta, mas não deixa
de ser arrepiante.
Estas são apenas algumas leituras e ideias. Haverá
mais. Paying
for It: A comic-strip memoir about being a john é daqueles livros que merece ser discutido a vários
níveis, para além de leituras óbvias e instintivas, e por vários tipos de
públicos. Mas também é natural que o não seja, porque, para além do que
defende, é uma obra com alguma estanquicidade, que, na sua vontade de
imposição, se tende a fechar sobre si mesma.
Paying for It: A
comic-strip memoir about being a john, por
Chester Brown. Drawn & Quarterly, 2011.
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