Há temas fraturantes
cuja gestão raramente é linear, a não ser que se opte por versões que não
deixam lugar a dúvidas, de preferência cristalizadas em História. A exploração
do Homem pelo Homem é um dos melhores exemplos, no sentido em que o Holocausto
ou a escravatura permitem criar narrativas e personagens complexas, mesmo amb
íguas e contraditórias,
sem que o leitor se esqueça nunca de que lado está a razão, ou quais os valores
que importam.
Prosseguindo uma aposta
muito consistente na banda desenhada brasileira a Polvo lançou “Cumbe” de
Marcelo D’Salete, coletânea de quatro histórias curtas pelas quais passam
diferentes aspetos da vida de escravos de ascendência africana em engenhos e
fazendas. Desde logo não há surpresas nas escolhas feitas pelo autor. A fuga, a
revolta, mas também a assimilação e a identidade, são tópicos omnipresentes; e
qualquer tentativa de romper com o “status quo” é acompanhada por retaliações e
castigos, com uma intensidade que por vezes até parece excessiva. A questão é
que a escravatura enquanto tema narrativo não pode dar azo a finais felizes, a
não ser que se trate do seu. Não é isso que se passa neste livro, que, na
verdade, existe num espaço-tempo de relações que se presumiam imutáveis. E
inevitáveis.
Em “Calunga” um escravo
tenta fugir levando a sua amada. Mas esta hesita, o amor revela-se mais obsessão,
e a sequência de eventos mostra que a escravatura não disfarça nem desculpa
outras relações de poder; na crueldade humana é sempre possível descer mais
baixo. O mesmo sexismo é evidente em “Sumidouro”, desta vez na relação sexual
entre dono e escrava, de como agita a família da fazenda, e de como é
racionalizada hipocritamente de modo a ser social e literalmente invisível.
“Cumbe” e “Malungo” são histórias de revolução e de vingança, e das motivações
complexas que animam os seus protagonistas para além do “simples” desejo de
liberdade. Revolta mal sucedida na primeira história, melhor na segunda, como
convém à narrativa final de um livro que nunca hesita quanto ao modo como se
posiciona.
As histórias de “Cumbe”
caraterizam-se por fugirem à literalidade e usarem uma base contemplativa,
trabalhada por diálogos escassos, por vezes mesmo fragmentados e crípticos. O
estilo detalhado de desenho angular algo rígido complementa muito bem o tipo de
posicionamento narrativo, no sentido em que a banda desenhada tem aqui um sabor
de fotografia coreografada, de pequenas peças trágicas. O estender das
histórias utilizando desenhos expressivos sem palavras representa a qualidade
inexorável e opressiva das situações que rodeiam os protagonistas. Por outro
lado, o que fica por dizer em termos de texto, e que se ressente a uma primeira
leitura, acaba por resultar em abordagens subsequentes, no sentido em que as
situações de que Marcelo D’Salete parte são tão claras no seu posicionamento e
alcance que uma maior literalidade poderia condicionar o uso de uma ferramenta
útil e aqui claramente assumida, mas perigosa: o óbvio. Caso as escolhas
tivessem sido outras, e a narrativa mais expositiva, corria-se o risco de
transfigurar o óbvio de ponto de referência para o leitor em “apenas” óbvio.
Com tudo o que isso implica em termos de alienar leitores, sobretudo em
temáticas muito glosadas e fortes como esta. Assim, são precisamente as
qualidades crípticas, aliadas a uma representação ampla, silenciosa e rigorosa
dos espaços, que ajudam “Cumbe” a transcender as armadilhas que podia ter
criado para si mesmo.
Cumbe. Argumento e desenhos
de Marcelo D’Salete. Polvo. 168 pp., 15 Euros.
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