Usar o sexo enquanto
tema nunca é linear. Até porque em banda desenhada há a possibilidade de o
desenho poder atrapalhar, deixando poucas alternativas de registo que não o
clínico ou o erótico-pornográfico, sobretudo o segundo. É o que tende a suceder
com autores que privilegiam um realismo sensual, como os italianos Milo Manara
ou Paolo Eleuteri Serpieri, em especial quando os argumentos não controlam bem
esse fator, ou parecem meros veículos para o realçar. Um bom exemplo é
“Druuna”, série de Serpieri retomada recentemente em Portugal pela Arte de
Autor com “Anima”. Aqui o excelente desenho tende a esgotar-se em si mesmo,
apesar de o facto de “Anima” ser um livro mudo (e descomplexado na sua
simplicidade) lhe dar algum interesse formal. Mas mais raro do que introduzir
elementos sensuais/sexuais numa obra, é falar abertamente sobre sexo, em vários
dos seus múltiplos aspetos. É o que sucede na série “Criminosos do sexo”, uma
bela iniciativa da Devir, com argumento do norte-americano Matt Fraction e
desenhos do canadiano Chip Zdarsky.
Fundamental nesta obra
é o trabalho de Fraction, extremamente hábil a cobrir diferentes tipos de
questões relacionadas com o tema (prazer, aventura, amor, vergonha, ciúme,
manipulação, mistério, repressão, culpa, preferências) utilizando uma
estratégia que passa por misturar experiências concretas reconhecíveis, com
doses de tragédia e humor que não deixam a história derrapar muito por causa do
seu ponto de partida. Porque falta dizer que esta é uma série sobre sexo com
matriz de super-heróis. Na verdade, ao escrever sobre “Criminosos do sexo”
fica-se com a sensação clara que qualquer descrição não lhe vai fazer justiça,
e pode afastar alguns leitores. Desde logo a premissa, que tenderá a parecer a
de um mau filme erótico. Esta é uma série protagonizada por diferentes tipos de
indivíduos, cada um banal à sua maneira, que têm como “superpoder” a capacidade
de parar o tempo cada vez que têm um orgasmo. Durante curtos instantes podem
deslocar-se numa realidade suspensa (a “calmaria”), mexer em objetos, roubar
bancos, interagir com os seus concidadãos que não sabem estar paralisados. A
história inicia-se quando os dois protagonistas se encontram, descobrindo uma
capacidade partilhada que achavam única, e começam a estimular-se mutuamente para
potenciar o seu uso, numa das muitas aproximações que Fraction faz às
caraterísticas evolutivas de uma relação. Em paralelo trocam histórias de
descoberta sexual desde a infância-adolescência, que não estariam deslocadas
numa BD muito séria sobre o modo quase milagroso como a maioria das pessoas
parece equilibrada apesar das suas experiências a este nível. Claro que, sendo
um trabalho de Fraction (veja-se “Hawkeye”) a profundidade anda sempre de braço
dado com o humor desbragado “non-sense”,
e rapidamente os protagonistas se vêm ameaçados por uma espécie de “polícia do
orgasmo”, que procura evitar que o seu poder seja abusado, que “calmaria” rime
com “anarquia”. Esta mudança constante de registos só é possível graças ao
desenho de Chip Zdarsky, porque suficientemente realista e vibrante
(particularmente no uso da cor) para gerir as situações humorísticas sem cair
na caricatura, e as situações realistas e fantásticas sem deixar cair a
credibilidade.
Com tudo para ser uma
amálgama confusa de arrogância, superficialidade e, pior que tudo, mau gosto,
“Criminosos do sexo” tem um pouco disso tudo, mas não exatamente como seria de
esperar. E é uma das obras mais surpreendentes e estimulantes dos últimos
tempos.
Criminosos do sexo, volume 1: Um truque
estranho. Argumento de Matt
Fraction, desenhos de Chip Zdarsky. Devir. 140 pp., 15 Euros.
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