A essência, resumida,
do Festival de Banda Desenhada da Amadora é que vale sempre a pena visitar pela
qualidade expositiva e dilúvio de lançamentos que representa. Há, no entanto,
fragilidades organizativas e critérios que se têm tornado monocromáticos,
evidentes nos prémios concedidos pelo Festival, de resto irrelevantes fora do
universo estrito da BD. Dito isto, “Deserto/Nuvem” de Francisco Sousa Lobo
(Chili Com Carne) é um livro excelente que merece ampla divulgação, a juntar
aos prémios de melhor álbum português, e (mais questionável) melhor argumento.
A obra é, na verdade,
composta por dois livros, unidos umbilicalmente pelos fins, numa encadernação
magnífica, que sublinha o trabalho de autor e editor. O ponto
de partida comum é a vida dos monges no Convento de Santa Maria Scala Coeli, mais conhecido como
Convento da Cartuxa,
em Évora (no concreto); e as escolhas radicais de clausura, contemplação,
afastamento do mundo e silêncio, preconizadas pela Ordem fundada por São Bruno
de Colónia em 1084, e de como se relacionam com outros modos de vivenciar o
catolicismo (enquanto conceitos).
Em ambos os livros se
entranham o desenho e planificação ascéticos de Sousa Lobo, definidos por
espaços vazios e marcados por uma única cor a jogar com o preto e branco.
“Deserto” (com o subtítulo, Francisco Sousa Lobo à volta da Cartuxa) tem a cor
da terra seca do Alentejo, e nele o autor revela um pouco da história familiar
que culmina na sua viagem de uma semana, para conhecer o Convento e os seus
habitantes por dentro, e fazer uma banda desenhada. Com o azul como cor de
acento, “Nuvem” (Francisco Sousa Lobo sobre a Cartuxa de Évora) consiste numa
série de cartas gráficas do autor aos monges cartuxos, nas quais reflete sobre
diferentes aspetos que cruzam visões da religião (católica) e da arte, misturados
com o seu percurso e referências pessoais. Cartas que, dado o isolamento dos
seus destinatários anónimos, nunca teriam resposta. Uma obra mais “interna”
outra mais “externa”; uma jogando com princípios (que talvez nunca se
concretizem), a outra apreciando realidades que talvez desiludam (por nunca
espelharem a ideia que se tem dos princípios). Não se trata aqui só de pensar a
contemplação enquanto arte, mas questionar se não pode também ser (outra)
máscara, se fica algo por dizer no silêncio que valha a pena ser dito. Até porque,
ao “falar” enquanto autor Sousa Lobo quebra o ideal que admira, mas ao qual não
consegue aderir. E, como em outros trabalhos seus, tocam-se as fronteiras entre
religião organizada e misticismo, incluindo a instabilidade mental associada a
ambos. E não menos à Arte, porventura.
No caminho que levou a “Deserto/Nuvem”, que se
pressente longo e hesitante (a vários níveis), Sousa Lobo tenta construir
pontes frágeis entre estes vários aspetos, como o harmónio de cartão que une os
livros. E, sobretudo, procura acreditar nelas. Para além do fascínio com a vida
e opções dos cartuxos, e os paralelos que o autor estabelece com a sua arte,
este é sobretudo um catálogo de dúvidas sem resposta. Como se duas obras
semifalhadas ou incompletas se resgatassem e engrandecessem mutuamente pela
união enquanto gémeas siamesas invertidas; o onirismo poético de uma
elevando-se na realidade de um Alentejo moribundo e sem rumo da outra; a qual,
por sua vez, ancora a anterior. Na sua construção inclassificável este é um
excecional trabalho de Francisco Sousa Lobo, com elogios extensíveis à Chili
Com Carne. Seria uma pena se (como os trabalhos de autores como António Jorge
Gonçalves, Tiago Manuel ou Diniz Conefrey) não passasse bem para lá do universo
da banda desenhada e dos seus rituais.
Deserto/Nuvem. Argumento e desenhos de Francisco Sousa Lobo. Chili Com
Carne. 64 + 124 pp., 18 Euros.
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