Já aqui se referiu que
a Arte de Autor tem assumido a linha editorial que vinha da Meribérica e ASA,
de certo modo interrompida (fora exceções pontuais) aquando da entrada desta
última no grupo Leya. Note-se que o trabalho editorial é muito bom, e há
apostas contemporâneas interessantes (“Eu, Assasino”, “O azul é uma cor
quente”). Mas a ligação é clara quando, por exemplo, não se podendo editar
“Blake & Mortimer” (um sucesso de vendas cujos direitos não seriam fáceis
de adquirir), se editam paródias menores dessa série (“SOS Meteorologia”, de
Veys e Barral), ou uma biografia do seu criador, Edgar Pierre Jacobs, com o
mesmo tipo de registo gráfico. No entanto, e apesar de tom ainda assim
reverencial que a obra adota, “A Marca Jacobs”, de Rodolphe e Alloing é um
trabalho que vale a pena conhecer, sendo sobretudo interessante o percurso
histórico e os acasos e rivalidades que levaram à construção do chamado estilo
“linha-clara” (com Hergé como importante “personagem secundária”, neste caso).
Por outro lado, e para
além de “Corto Maltese”, a editora tem apostado em criadores italianos,
republicando a série “Druuna” de Paolo Eleuteri Serpieri (n. 1944), incluindo
os dois primeiros episódios (“Morbus Gravis” e “Druuna”, aqui designado
“Delta”) num único tomo. Uma história de ficção-cientifica num mundo em
dissolução, e numa era (1986-87) em que os “mutantes” gerados por exposição a
radioatividade substituíam os “zombies” enquanto “leitmotiv” desestabilizador,
“Druuna” pode ser lida como glosando os perigos e a opressão de um mundo
tecnológico que perdeu a alma. Ou enquanto desculpa para um registo de erotismo
“soft-core” com variantes S&M às quais a protagonista é submetida, por
necessidades narrativas, e de modo algum por facilidade ou voyeurismo... Ou,
sem ironia (até porque a edição é “para adultos”), como ambas as coisas. De
facto, o desenho de Serpieri é fabuloso dentro do género realista, a história
interessante e o universo convincente (sobretudo nas partes mais esquálidas).
Apesar de tudo, “Druuna” mantém qualidades e merece ser (re)apreciada hoje,
sobretudo por quem não a conhecer.
Um outro autor da mesma
geração em que a editora aposta é Milo Manara (n. 1945), lançando o mais
recente (a excelente primeira parte de “Caravaggio”) e um dos mais antigos, “O
Rei Macaco” (1977), uma colaboração com o argumentista Silverio Pisu
(1937-2004). É certo que é inevitável ligar “Druuna” às “mulheres de Manara”,
considerando, não só o traço de ambos os autores, mas o modo estereotipado com
que retratam figuras femininas, e ao facto de Manara ter a mesma tendência de
Serpieri para descair num erotismo avulso (como muitos pintores “clássicos” que
raramente são criticados por isso, poder-se-ia argumentar). Mas o preto e
branco de “O Rei Macaco” está muito distante, por exemplo, de “O Clic”. O
argumento de Pisu recria a antiga lenda chinesa do mesmo nome, seguindo os
principais momentos do protagonista homónimo de forma bastante fiel, da
cosmologia à evolução do herói (de rebelde, a imortal, a burocrata, a
libertador, a prisioneiro). Injetando aqui e ali modernidade nas lições sobre
crescimento, poder e orgulho que estão na base da narrativa. Mas esta é uma
história imaginada na Itália dos anos 1970, e alguns elementos não budistas ou
taoistas refletem também um momento sociopolítico mais ou menos revolucionário
(se bem que não cego, nem dogmático), ao qual a história (também) de adapta.
Na verdade, se há
crítica a fazer às excelentes edições de “O Rei Macaco” e “Druuna” é que se perdeu
a oportunidade para uma contextualização apropriada, que vincasse o seu lugar
histórico. Mesmo que os livros “valham por si mesmos” e apenas se tenha pensado
num público que já os conhece (o que é legítimo, mas redutor), já não são
exatamente os que foram lidos há 30-40 anos. O mundo mudou, e poucos livros
ficam na mesma.
O Rei Macaco. Argumento de Silverio Pisu, desenhos de Milo Manara. Arte
de Autor. 90 pp. 20 Euros.
Druuna (Morbus Gravis & Delta). Argumento e desenhos de Paolo Eleuteri
Serpieri. Arte de Autor. 150 pp. 21 Euros.
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