Aquando da publicação
de “Miracleman”, com o material escrito para a personagem por Alan Moore nos
anos 1980 referiu-se que, de relevante, faltavam as histórias de Neil Gaiman.
E, prosseguindo o seu excelente trabalho, a G. Floy Studio apresenta agora “Miracleman:
A idade do ouro”, que reúne argumentos de Gaiman magnificamente ilustrados, com
estilos adaptados a cada história, por Mark Buckingham. Realizadas nos inícios
da década de 90, às histórias que compõem este volume deveriam seguir-se os
arcos narrativos “Silver Age” e “Dark Ages”; o primeiro ainda iniciado, o
segundo esboçado. Para já é o que temos, e vale muito a pena conhecer.
Note-se, desde logo,
que não faz sentido apreciar este volume sem ter lido as histórias de Moore,
que estabelecem o contexto sobre o qual Gaiman constrói. Há até alguma
reverência na abordagem, incluindo uma prosa a espaços rebuscada, que a
tradução acentua. Mas, se após uma desconstrução brilhante do universo de
super-heróis Moore parecia não saber muito bem o que construir sobre as suas
ruínas (fá-lo-ia em “Watchmen”), Gaiman é inteligente nas escolhas. Para além
de trabalhar as consequências lógicas de um mundo governado por um super-herói
que, no fundo, funciona como Deus; o que Gaiman faz de notável é balizar as
suas personagens para além do contexto fantástico em que se movimentam. “A
idade do ouro” não é bem sobre Miracleman, mas sobre a sua influência em alguns
dos seus súbditos “normais”. De que modo reagiria a sociedade à presença de um
Deus “real”, interventivo e omnipresente, e dos seus filhos mais do que
humanos? Que peregrinações e pedidos lhe fariam (e como responderia ele)? O que
aconteceria a profissões geradas por conflito e guerra num mundo de harmonia? E
a paz oferecida por Miracleman seria suportável para todos, ou haveria
nostálgicos pelos “bons velhos tempos”? Embora se notem hesitações no criar de
um todo a partir das várias histórias independentes (o juntar de todas as personagens
na última história é revelador disso mesmo), se isto parece uma antecipação a
alguns momentos de “Sandman”, a série marcante de Gaiman, é muito natural;
histórias de pessoas normais postas perante circunstâncias extraordinárias (por
vezes sem as compreender) são onde o autor mais brilha.
Claro que nem sempre a
fórmula resulta em pleno. Adaptando um conto do próprio Gaiman “Como falar com
raparigas em festas” (Bertrand Editora) conta com o desenho dos notáveis
autores brasileiros Gabriel Bá e Fábio Moon (“Daytripper”). As espectativas
eram elevadas, e talvez por isso se sinta alguma frustração pela ligeireza do
projeto. O desenho é dinâmico e a ideia excelente, mais uma vez baseada numa
realidade banal. Um jovem adolescente (no qual se reflete o próprio Gaiman)
sente dificuldades em falar com as deslumbrantes raparigas presentes numa festa,
porque parecem ser de outro planeta. E se fossem mesmo? Ou encarnações de
lendas, de formas poéticas, de mitos? Mas a BD em si nunca funciona tão bem
como a ideia, sobretudo porque não se decide sobre qual a lógica a apresentar
aos leitores, quanto é suposto que saibam, quanto é suposto ser revelado. Na
verdade, como em “Miracleman”, talvez tivesse sido interessante incluir um
posfácio, ou notas de leitura.
Em resumo: se em
“Miracleman” Gaiman ainda não era o grande argumentista de “Sandman”, em “Como
falar com raparigas em festas” já não é. Mas o que escreve vale, em ambos os
casos, muito mais do que a maioria, e os desenhos dos seus colaboradores nestes
projetos são excelentes. Sem ser bem ouro, brilha, provoca, e encanta na mesma.
Miracleman: A idade do ouro. Argumento de Neil Gaiman, desenhos de Mark
Buckingham (cores de D’Israeli). G. Floy Studio. 192 pp., 16 €.
Como falar com raparigas em festas. Argumento de Neil Gaiman, desenhos de Fábio
Moon e Gabriel Bá. Bertrand Editora. 64 pp., 14,40 €.
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