O interesse mais
generalizado pela banda desenhada japonesa (“mangá”) no ocidente relacionou-se,
numa primeira instância, com material que servia de base a desenhos animados.
De tal modo que muitos olharam inicialmente para o “mangá” (com as suas
particularidades narrativas e gráficas, ritmos alucinantes e desenho
esquemático tipificado, sobretudo nas figuras humanas) como algo menor, porque
não há nada mais atreito a estigmatizar do que estigmatizados. Não foi só um
autor a mudar essa perceção, mas não há dúvida que a carreira de Jiro Taniguchi
(1947-2017), talvez o mais “ocidental” dos “mangaká”, contribuiu para isso,
como atenta, entre muitos outros reconhecimentos, ter sido nomeado Cavaleiro da
Ordem das Artes e Letras em França em 2011. Em Portugal, e para além de outros
livros, basta sinalizar que o recente lançamento de “O homem que passeia” pela
Devir é já a segunda versão desta obra, desta feita editada no sentido de
leitura original (do “fim” para o “princípio” do livro, e da direita para a
esquerda na página), embora a diferença a esse nível seja mínima; se é que
existe, a não ser que se leia em japonês (por algum motivo se fala em
“tradução”). Seja como for, esta é uma obra importante que quem não conhece
deve conhecer, e os “poemas gráficos” de Taniguchi são mesmo muito
recomendáveis para leitores atentos que dizem não gostar de BD.
Em “O homem que
passeia” há dois tipos de relatos curtos (nunca são bem “histórias”), a maioria
poder-se-ia designar como “domésticos”, os últimos três centrados em mulheres
(agora) ausentes. Em qualquer caso com um protagonista anónimo que (re)descobre
recantos familiares ou subúrbios desconhecidos caminhando, encontrando
paisagens, locais e gente anónima, fazendo recados concretos, ou vagueando ao
acaso. Nestas histórias contemplativas de espírito quase “zen” onde se parece
passar muito pouco (e com muito poucas palavras) há dois elementos que chamam a
atenção. Primeiro, o detalhe no desenho primoroso a preto e branco (na antítese
dos clichés sobre “mangá”), criando um universo que o argumento, a uma primeira
vista, não parece pedir, mas que por isso mesmo se torna tão vivo e profundo.
Segundo, o facto de um leitor não conseguir deixar de projetar naqueles
momentos algo de si mesmo, quanto mais não seja para preencher a história do
protagonista que caminha; tentar entender (ou inventar) o que, literal e
figurativamente, o move. Se há momentos em que há vontade de entrar sem
hesitações no universo, e nos rendermos à serenidade meditativa que emana das
páginas, outras há em que a vontade é ficar de fora, imaginar os segredos ou
frustrações que o protagonista também deve carregar consigo, e que sublinha
caminhando.
Esta última leitura
surge mais nas últimas histórias, porquanto mais concretas ao nível de um
argumento convencional. Se bem que só a última, o relato do sabor a perda que
ficou de uma relação adúltera, entretanto terminada, se aproxima de uma forma
mais convencional; contando também com um desenho mais contrastante e menos
detalhado, de certo modo a vincar a diferença também do ponto de vista gráfico.
Nas restantes voltamos a passear por quotidianos presentes ou perdidos, reais
ou (ligeiramente) imaginados, tendo como ponto comum uma presença feminina que
serve como pretexto para divagações mentais e temáticas, como um espelho dos
percursos aleatórios de protagonistas que parecem buscar experiências novas ou
memórias adulteradas, perdidas há muito tempo atrás.
As historias de Jiro
Taniguchi não são propriamente “simples”. Quer dizer, são se o leitor assim
quiser, e dependendo do que nelas quiser projetar. Sobretudo, convidam a andar;
relembram que o caminho pode ser bastante mais interessante que o destino. Espera-se
que este caminho editorial da Devir, a prometer novas obras de referência em
termos de BD japonesa, seja igualmente bem-sucedido.
O homem que passeia. Argumento e desenhos de Jiro Taniguchi.
Devir. 250 pp., 20 Euros.
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