Nada mais apropriado do
que uma ressurreição para uma revisitação, mais a mais quando a editora Arte de
Autor assume a “herança” de uma linha que vem da Meribérica/ASA, e que é
estranho chamar “clássica”, porque só o é para a nossa tradição de mercado
(mesmo assim, já não tanto); e ainda menos designar “franco-belga”, já que a
maioria das apostas com impacto até são de autores italianos. Como Manara e
Serpieri. Ou Hugo Pratt (1927-1995).
Nota prévia: o meu
filho (n. 2000) chama-se Hugo porque “Maltês” não é nome próprio, e “Corto”
seria pior ainda... Mas é bom recordar que “A balada do mar salgado” (1967) é
um relato de aventuras nos Mares do Sul com o Oceano Pacífico como maior
figura, e apenas capas posteriores põem o marinheiro maltês em destaque. Corto
foi-se sobrepondo a Caïn e Pandora Grovesnore, aos loucos Rasputine e “Monge”,
aos nobres condenados Crânio e Slütter. Ficou Rasputine como contraponto para o
futuro, Caïn e Pandora como destinos que poderiam ter sido, mas só no final
nasce o Corto Maltese protagonista. O interesse hipnótico deste livro é o
entrelaçar de temas e a profundidade das personagens com percursos complexos,
nas quais é difícil apontar “bons” e “maus”, dando-se igual peso a ponto de
vistas díspares (alemães e ingleses; indígenas e ocidentais). Há ação, viagens,
aventura, mitologia, antropologia, geografia, política, geoestratégia, intrigas
familiares. Com um fundo que inclui o início da guerra de 1914-18, onde
manobras obscuras e fins justificarão meios (sacrificando Slütter); bem como o
confronto entre colonialismo e independentismo (promovendo os adaptáveis Tarao
e Sbrindolin, sacrificando o mais genuíno Crânio).
Apesar de leituras do
livro mencionarem a influência de Joseph Conrad, Jack London ou Robert Louis Stevenson,
a inspiração para esta história terá sido “A Lagoa Azul” do irlandês Henry De Vere Stacpoole (1908), com Caïn e
Pandora no lugar de Dicky e Emmeline Lestrange (uma versão em filme lançou Brooke Shields). Só que Caïn cita Rimbaud e Stevenson,
e é impossível não ver na personagem “Monge” uma versão do Kurtz de Conrad.
Pratt era exímio a provocar com o óbvio e a trabalhar referências menos reconhecidas
(daí também a admiração de Umberto Eco).
É certo que nem todas
as aventuras de Corto Maltese atingem o mesmo nível. “A balada” e “Fábula de
Veneza” estão numa ponta, “Mu” na outra. E onde situar o relato no Alaska e
Yukon “Sob o sol da meia noite” (2015), a primeira “ressurreição” levada a cabo
pelos espanhóis Juan Díaz Canales, e Rubén Pellejero? Uma história razoável que
Pratt podia ter imaginado? Ou um falhanço que tenta um registo mais prattiano
do que Pratt? A segunda. E isto porque se Pellejero é até uma escolha lógica,
dado o seu estilo ser influenciado por Pratt (ver “Dieter Lumpen”, com Jorge
Zentner), a aproximação mimética falha precisamente pela proximidade, em
momentos-chave o estilo foge para o registo mais redondo, habitual no autor.
Por outro lado, os problemas de erudição à solta sem valor narrativo que
Canales já tinha evidenciado por vezes em “Blacksad” são aqui (sem o magnífico desenho
de Juanjo Guarnido) muito evidentes. “Sob o sol da meia noite” pisca o olho ao
cânone (Rasputine, Pandora, London), mas inclui demasiadas coisas: revoluções e
causas perdidas, histórias de amor, loucura, heroísmo, exploração (de nativos
inuit, de mulheres). Que fluem de forma forçada porque não há tempo para
trabalhar bem nenhuma delas, e não surgem personagens que não pareçam
caricaturas, apesar dos nomes históricos, que vão de Virginia Prentiss (a ama
negra de Jack London) e Matthew Henson (o explorador negro do Ártico que
acompanhou Robert Peary), ao boxeur Frank Slavin, ao explorador e baleeiro George
Comer e sua companheira inuit Shoofly (e Pameolik, que “junta” Slütter e Crânio);
acabando no homem da indústria do petróleo (e guerra) Joe Boyle, que simboliza
o substituir da aventura pelo empreendedorismo. Há cópias tão boas (ou
melhores) que os originais. Não é o caso. Felizmente a Arte de Autor teve a
feliz ideia de proporcionar ambos.
A balada do mar salgado. Argumento e desenhos de Hugo Pratt. Arte
de Autor. 183 pp., 26,95 Euros.
Sob o sol da meia noite. Argumento de Juan Díaz Canales desenhos
de Rubén Pellejero. Arte de Autor. 82 pp., 18,65 Euros.
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