A maré impressionante
de edições de qualidade nos mais variados géneros (com destaque para as
coleções “Novelas Gráficas” Levoir/PÚBLICO) tem um efeito secundário muito
bem-vindo: a possibilidade de surgirem apostas em obras menos óbvias. É o caso
dos dois livros da dupla franco-dinamarquesa baseada em
Estrasburgo e constituída pela argumentista Anne-Caroline Pandolfo e pelo desenhador Terkel Risbjerg, editadas pela
GFloy. Muito diferentes em tom, estilo e natureza das protagonistas, em ambos
se sente um olhar empenhado em torno de questões de género, um olhar do/no
feminino.
“O astrágalo” adapta
“L’astragale” (1965), romance da escritora francesa Albertine Sarrazin (1937-1967), cuja curta e
agitada existência (de abandono, abuso, institucionalização, crime e prisão)
deu origem a três obras semiautobiográficas,
das quais esta é a mais conhecida. Já o recém-editado “A Leoa” é uma ambiciosa BD biográfica sobre a grande escritora
dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962). Em ambas há um claro interesse em
mostrar a posição subalterna que as mulheres tiveram (têm) que transcender, e o
modo com um universo masculino as tentou (tenta) controlar. É certo que as
protagonistas não podiam ser mais diferentes: uma marginal de classe baixa sem
grande educação formal, e uma burguesa nobre por casamento, a quem, apesar de
tudo, foram dadas oportunidades. Mas a leitura conjunta mostra bem a posição
dos autores, entendida do histórico ao contemporâneo: a opressão é a mesma,
varia o grau e o modo como é exercida. No caso de “O astrágalo” o simbolismo de ser a fratura de um pequeno
osso do pé (que dá o nome ao livro) a deixar Anne à mercê do mundo não deixa de
ser sintomático.
Note-se que em ambas as obras o
foco é, não bem o controlo, mas as estratégias para dele se libertar.
Nomeadamente através da marginalidade, quer literal (“O astrágalo”), quer
via a figura tutelar de um pai que não encaixava na sociedade dinamarquesa (e
que acabaria por se suicidar), mais tarde através dos grandes espaços africanos
e seus habitantes (“A Leoa”). Mas há outro ponto importante a unir estas
histórias: os “fracassos” de Anne/Albertine enquanto ladra e de Karen enquanto
agricultora em África talvez as tenham conduzido ao sucesso na escrita, embora
se sublinhe que Blixen assinou a princípio com o pseudónimo masculino Isak
Dinesen, e teve a honra duvidosa de ter tido os seus manuscritos rejeitados por
todos os editores dinamarqueses, com o sucesso no seu país natal a ser
posterior à sua “descoberta” no mundo anglo-saxónico. E, sobretudo em “A Leoa”,
é notório o foco na vontade da protagonista em projetar a incompreensão que lhe
era votada no sentido de compreender o Outro.
Para além deste
posicionamento temático há ainda a relação texto/imagem. Desse ponto de vista
não se pode dizer que o desenho de Terkel
Risbjerg seja particularmente virtuoso ou inspirador, sobretudo no tratamento
da figura humana. Mas o seu registo, num constante fugir da representação
realista, tem uma qualidade efabulatória interessante, que complementa bem a
escrita de Anne-Caroline Pandolfo. A qual, por sua vez, tende a ser muito pouco
subtil, reforçando em permanência os motes e linhas de ação, como por exemplo
no repetir dos simbolismos referenciais que rodeiam a vida de Blixen. É, pois,
o desenho a ter o principal papel na criação de nuances, quer utilizando um
traço decidido a preto e branco (com grandes manchas de negro) a caraterizar o
ambiente que rodeia a protagonista em “O astrágalo”; quer as cores suaves em tom de aguarela a marcar o onírico,
a fantasia e os grandes espaços em “A Leoa”. Nas obras desta dupla é de facto
evidente uma das caraterísticas mais interessantes da banda desenhada, no
sentido em que o todo é mais do que a soma das partes.
O astrágalo. GFloy, 224 pp., 14 Euros.
A Leoa: Um Retrato Gráfico de Karen Blixen. GFloy, 192 pp., 18 Euros.
Argumento de Anne-Caroline
Pandolfo, desenhos de Terkel Risbjerg.
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