sábado, 2 de setembro de 2017

MULHERES


A maré impressionante de edições de qualidade nos mais variados géneros (com destaque para as coleções “Novelas Gráficas” Levoir/PÚBLICO) tem um efeito secundário muito bem-vindo: a possibilidade de surgirem apostas em obras menos óbvias. É o caso dos dois livros da dupla franco-dinamarquesa baseada em Estrasburgo e constituída pela argumentista Anne-Caroline Pandolfo e pelo desenhador Terkel Risbjerg, editadas pela GFloy. Muito diferentes em tom, estilo e natureza das protagonistas, em ambos se sente um olhar empenhado em torno de questões de género, um olhar do/no feminino.
“O astrágalo” adapta “L’astragale” (1965), romance da escritora francesa Albertine Sarrazin (1937-1967), cuja curta e agitada existência (de abandono, abuso, institucionalização, crime e prisão) deu origem a três obras semiautobiográficas, das quais esta é a mais conhecida. Já o recém-editado “A Leoa” é uma ambiciosa BD biográfica sobre a grande escritora dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962). Em ambas há um claro interesse em mostrar a posição subalterna que as mulheres tiveram (têm) que transcender, e o modo com um universo masculino as tentou (tenta) controlar. É certo que as protagonistas não podiam ser mais diferentes: uma marginal de classe baixa sem grande educação formal, e uma burguesa nobre por casamento, a quem, apesar de tudo, foram dadas oportunidades. Mas a leitura conjunta mostra bem a posição dos autores, entendida do histórico ao contemporâneo: a opressão é a mesma, varia o grau e o modo como é exercida. No caso de “O astrágalo” o simbolismo de ser a fratura de um pequeno osso do pé (que dá o nome ao livro) a deixar Anne à mercê do mundo não deixa de ser sintomático.
Note-se que em ambas as obras o foco é, não bem o controlo, mas as estratégias para dele se libertar. Nomeadamente através da marginalidade, quer literal (“O astrágalo”), quer via a figura tutelar de um pai que não encaixava na sociedade dinamarquesa (e que acabaria por se suicidar), mais tarde através dos grandes espaços africanos e seus habitantes (“A Leoa”). Mas há outro ponto importante a unir estas histórias: os “fracassos” de Anne/Albertine enquanto ladra e de Karen enquanto agricultora em África talvez as tenham conduzido ao sucesso na escrita, embora se sublinhe que Blixen assinou a princípio com o pseudónimo masculino Isak Dinesen, e teve a honra duvidosa de ter tido os seus manuscritos rejeitados por todos os editores dinamarqueses, com o sucesso no seu país natal a ser posterior à sua “descoberta” no mundo anglo-saxónico. E, sobretudo em “A Leoa”, é notório o foco na vontade da protagonista em projetar a incompreensão que lhe era votada no sentido de compreender o Outro.

Para além deste posicionamento temático há ainda a relação texto/imagem. Desse ponto de vista não se pode dizer que o desenho de Terkel Risbjerg seja particularmente virtuoso ou inspirador, sobretudo no tratamento da figura humana. Mas o seu registo, num constante fugir da representação realista, tem uma qualidade efabulatória interessante, que complementa bem a escrita de Anne-Caroline Pandolfo. A qual, por sua vez, tende a ser muito pouco subtil, reforçando em permanência os motes e linhas de ação, como por exemplo no repetir dos simbolismos referenciais que rodeiam a vida de Blixen. É, pois, o desenho a ter o principal papel na criação de nuances, quer utilizando um traço decidido a preto e branco (com grandes manchas de negro) a caraterizar o ambiente que rodeia a protagonista em “O astrágalo”; quer as cores suaves em tom de aguarela a marcar o onírico, a fantasia e os grandes espaços em “A Leoa”. Nas obras desta dupla é de facto evidente uma das caraterísticas mais interessantes da banda desenhada, no sentido em que o todo é mais do que a soma das partes.


O astrágalo. GFloy, 224 pp., 14 Euros.
A Leoa: Um Retrato Gráfico de Karen Blixen. GFloy, 192 pp., 18 Euros.
Argumento de Anne-Caroline Pandolfo, desenhos de Terkel Risbjerg.



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