sábado, 5 de agosto de 2017

AUTORIA


Numa cultura obcecada com quem é quem e fez o quê quando, as questões de autoria são prementes, sobretudo quando se trata de algo visto como positivo. Em arte esse reconhecimento parece óbvio e necessário, fora exceções como Banksy, e deixando de lado criações coletivas. Pelo menos até nos lembrarmos que muitos trabalhos clássicos (da arquitetura, à poesia e textos místico-religiosos) são coletivos, com uma ligação a nomes (a existir) muitas vezes ténue, feita para nos “proteger” de ter de considerar obras fundadoras como anónimas, órfãs de autor. As histórias entrelaçadas que compõem “Nagual” (Quarto de Jade) jogam com esta ideia.

“Nagual” inspira-se nas pinturas murais de Teotihuacan, a grande cidade-estado multiétnica do México pré-colombiano, que teve grande pujança em meados do primeiro milénio, entrando posteriormente em declínio. Anterior à dominância dos Astecas, que lhe deram o nome pelo qual é conhecida hoje, era considerada por eles como o berço dos deuses, as suas imponentes pirâmides abandonadas uma fonte de mistérios já nessa altura. Utilizando um preto e branco de contraste vibrante e com poucas zonas de sombra (dadas pelo texto), nas seis narrativas que compõem “Nagual” assistimos aos vários passos da criação de um mundo, até desembocar nas criaturas que o tentam interpretar, com lendas e gravuras. Usando uma mescla hipnótica de formas geométricas e representações estilizadas de elementos mitológicos (serpentes emplumadas, jaguares, aves, árvores, coiotes, humanos) diretamente inspiradas na arte pré-colombianas, glosa-se o nascimento de céu, estrelas, montanhas, rios, canções, violências, medos. Que levam a reflexões clássicas, das tentativas de interpretar os mistérios da existência, à fúria quanto às suas limitações e inevitável fim. E com o conceito de nagual enquanto transmutação (física ou psicológica) de ser humano em animal pairando sobre cada ser que se introduz na narrativa. Como muitas vezes sucede em relatos que se querem fundadores, o texto tende a entusiasmar-se num excesso de simbolismo lírico que se pode tornar cansativo, apesar do vigor poético do desenho. Desse ponto de vista as últimas histórias, que introduzem claramente os humanos-intérpretes (“O Umbigo da Terra” e Zacuala”), são particularmente conseguidas; no sentido em que confrontam o concreto com as representações, e fazem melhor uso da ligação entre texto e imagem.

Uma questão não-acessória, e que liga à introdução do texto, é que em lado nenhum de “Nagual” aparece o nome do autor. Sugerindo uma criação coletiva anónima que espelha a realidade atual de Teotihuacan, cujo poder se esvaiu com o próprio (desconhecido) nome original, e cuja mitologia, como o nagual, pode dar origem a transmutações inesperadas (no frontispício do livro surge uma imagem da estilizada “lucha libre” mexicana...). Mas, tal como com os alter-egos de Tiago Manuel, a autoria é óbvia para quem segue o trabalho de Diniz Conefrey, e assumida no site da Quarto de Jade, editora que dinamiza com Maria João Worm. “Nagual” prolonga uma linha de exploração gráfica e conceptual que vem do notável “Livro dos dias” (também sobre o México pré-colombiano) mas também, num certo sentido, do abstrato “Meteorologias” (em que “anónima” era a temática). Mas quem encontrar o livro sem esse contexto (e/ou num futuro distante, quiçá pós-apocalíptico...) pode não ter acesso a esta informação. Encarará “Nagual” como hoje se admiram tapeçarias, cerâmicas, esculturas e pinturas nos mais variados contextos, cujas autorias se foram sumindo no tempo. Terá de construir em volta a sua própria mitologia.


Nagual. Argumento e desenhos de Diniz Conefrey. Quarto de Jade. 136 pp., 21 Euros.




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