Numa cultura obcecada
com quem é quem e fez o quê quando, as questões de autoria são prementes,
sobretudo quando se trata de algo visto como positivo. Em arte esse
reconhecimento parece óbvio e necessário, fora exceções como Banksy, e deixando
de lado criações coletivas. Pelo menos até nos lembrarmos que muitos trabalhos
clássicos (da arquitetura, à poesia e textos místico-religiosos) são coletivos,
com uma ligação a nomes (a existir) muitas vezes ténue, feita para nos
“proteger” de ter de considerar obras fundadoras como anónimas, órfãs de autor.
As histórias entrelaçadas que compõem “Nagual” (Quarto de Jade) jogam com esta
ideia.
“Nagual” inspira-se nas pinturas murais de Teotihuacan, a grande cidade-estado
multiétnica do México pré-colombiano, que teve grande pujança em meados do
primeiro milénio, entrando posteriormente em declínio. Anterior à dominância dos Astecas, que lhe deram o nome pelo
qual é conhecida hoje, era considerada por eles como o berço dos deuses, as suas imponentes
pirâmides abandonadas uma fonte de mistérios já nessa altura. Utilizando um
preto e branco de contraste vibrante e com poucas zonas de sombra (dadas pelo
texto), nas seis narrativas que compõem “Nagual” assistimos
aos vários passos da criação de um mundo, até desembocar nas criaturas que o
tentam interpretar, com lendas e gravuras. Usando uma mescla hipnótica de
formas geométricas e representações estilizadas de elementos mitológicos
(serpentes emplumadas, jaguares, aves, árvores, coiotes, humanos) diretamente
inspiradas na arte pré-colombianas, glosa-se o nascimento de céu, estrelas,
montanhas, rios, canções, violências, medos. Que levam a reflexões clássicas,
das tentativas de interpretar os mistérios da existência, à fúria quanto às suas
limitações e inevitável fim. E com o
conceito de nagual enquanto transmutação (física ou psicológica) de ser humano em
animal pairando sobre cada ser que se introduz na narrativa. Como muitas vezes sucede em
relatos que se querem fundadores, o texto tende a entusiasmar-se num excesso de
simbolismo lírico que se pode tornar cansativo, apesar do vigor poético do
desenho. Desse ponto de vista as últimas
histórias, que introduzem claramente os humanos-intérpretes (“O Umbigo da
Terra” e Zacuala”), são particularmente conseguidas; no sentido em que
confrontam o concreto com as representações, e fazem melhor uso da ligação
entre texto e imagem.
Uma questão
não-acessória, e que liga à introdução do texto, é que em lado nenhum de “Nagual” aparece o nome do autor. Sugerindo uma criação coletiva
anónima que espelha a realidade atual de Teotihuacan, cujo poder se esvaiu com o próprio
(desconhecido) nome original, e cuja mitologia, como o nagual, pode dar origem
a transmutações inesperadas
(no frontispício do livro surge uma imagem da estilizada “lucha libre”
mexicana...). Mas, tal como com os alter-egos de Tiago Manuel, a autoria é óbvia
para quem segue o trabalho de Diniz Conefrey, e assumida no site da Quarto de
Jade, editora que dinamiza com Maria João Worm. “Nagual” prolonga uma linha de
exploração gráfica e conceptual que vem do notável “Livro dos dias” (também
sobre o México pré-colombiano) mas também, num certo sentido, do abstrato
“Meteorologias” (em que “anónima” era a temática). Mas quem encontrar o livro
sem esse contexto (e/ou num futuro distante, quiçá pós-apocalíptico...) pode
não ter acesso a esta informação. Encarará “Nagual” como hoje se admiram
tapeçarias, cerâmicas, esculturas e pinturas nos mais variados contextos, cujas
autorias se foram sumindo no tempo. Terá de construir em volta a sua própria
mitologia.
Nagual. Argumento e desenhos de Diniz Conefrey. Quarto de Jade.
136 pp., 21 Euros.
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