domingo, 6 de novembro de 2016

VAGUEAR



No âmbito da Exposição Central do Festival AmadoraBD2016, Espaço, Tempo e Banda Desenhada (comissariada por Eduardo Côrte-Real e Susana Oliveira) foi-me pedido um texto sobre esta temática, enquanto Biólogo que trabalha no Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) e no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Como não encontro o texto online, e como não parece haver catálogo, mesmo que em pdf (ainda?) fica aqui.

 



A banda desenhada é uma arte vadia, que vive de misturas entre elementos, e, sobretudo, de um olhar que vagueia. Já cansa referir que a BD aperfeiçoou uma linguagem própria e única, basta focarmo-nos nas suas especificidades. Neste caso não necessariamente (só) sobre obras com as quais há particular afinidade pessoal, mas sobre as que nos fazem questionar a linguagem. Coisa tão diversas como, desde logo, o estilo de desenho, onde, por exemplo, o toque ligeiramente caricatural permite que as reportagens duríssimas de Joe Sacco no Médio Oriente (“Palestine”, 1993-96; “Footnotes in Gaza”, 2009) mantenham a sua credibilidade apesar da distância estabelecida pela mediação gráfica. Tal como as metáforas de Art Spiegelman em “Maus” (1991) permitem um profundo e simbólico revisitar da natureza do Holocausto (e de difíceis relações familiares) de um modo que dificilmente deixaria de ser ridículo noutro tipo de suporte.
De facto, em histórias que se pretendem “realistas” esta constante aproximação/distanciação mediada, a uma primeira vista pelo desenho, depois pelo texto e, finalmente, pela interligação entre os dois elementos é particularmente interessante na banda desenhada de natureza autobiográfica, onde o conceito de invasão remota de privacidade é permanente. Antes de ler o que quer que seja o desenho esquemático de John Porcellino (“Perfect Example”, 2005; ou “The Hospital Suite”, 2014), as pinceladas grossas e fluidas que se desvanecem mais do que definem de Li Kunwu (a trilogia “Une vie chinoise”, com colaboração ao nível do argumento de Philippe Ôitié, 2009), o rigor geométrico de Alison Bechdel (“Fun Home”, 2006) e David B, (“L’Ascencion de l’haut mal”, 1996-2003), o ascetismo de espaços vazios de Chester Brown (“Paying for it”,  2011), ou o virtuosismo fotográfico e sanguíneo de Fabrice Néaud (“Journal”, 1993-2002) balizam desde logo o tipo de ligação ao leitor que o autor está disponível para assumir. Esta possibilidade de o desenho evocar de imediato um ambiente que condiciona a leitura é naturalmente extensível a histórias inteiramente ficcionadas (não as há totalmente “reais”), como todo o universo de Philippe Druillet (anos 1960-80) ou em “As Cidades Obscuras” de François Schuiten e Benoit Peeters (1983-2008), série na qual cada ambiente urbano minuciosamente criado influencia o tom e fluxo da narrativa. Também é possível despoletar este mesmo tipo de reação com palavras, de modo a percebermos o universo no qual nos querem envolver quase independentemente do desenho? Embora se perca a mediação gráfica imediata, é o que sucede com os trabalhos dos melhores argumentistas (sobretudo quando acompanhados por desenhadores menos virtuosos), podendo citar-se a esse nível a ligação do fantástico ao sociopolítico de Neil Gaiman (em “Sandman”, 1988-1996), Alan Moore (em todo o lado), Kurt Busiek (“Astro City”, 1995-presente), Grant Morrison (“The Invisibles”, 1994-2000), ou Warren Ellis (“Transmetropolitan” 1997-2002, “The Authority”, 1999-2000, “Planetary”- 1999-2009, ou o recém-iniciado “Trees”). Para outro exemplo menos mediático é interessante conhecer os também recentes (2013-16) “Jupiter’s Circle” e Jupiter’s Legacy” de Mark Millar.
Noutra perspetiva é sempre bom recordar que o espaço entre vinhetas implica a participação (permanente, ativa, inconsciente) do leitor nas transições, unindo as diferentes imagens. As quais podem representar, não só diferentes espaços, mas distâncias temporais de nano-segundos a décadas. Como o olhar em BD vagueia, pode percorrer uma página, considerando a sequência de vinhetas (caso existam) ou o todo, andando para a frente e para trás, no espaço como no tempo. No romance gráfico mudo “Here” (2014) o conceito de Richard McGuire leva este paradoxo espácio-temporal a um radicalismo limite, mostrando um mesmo espaço físico ao longo de um tempo extraordinariamente longo, do início de vida na Terra aos nossos dias; e conseguindo transmitir reflexões que vão do civilizacional ao pessoal. Um livro espelhado deste é o também mudo “3”” de Marc-Antoine Mathieu (2011), onde o tempo da história são apenas os 3 segundos do título, com o autor a utilizar “zoomings” extremos e reflexos em várias superfícies para representar espaços, apresentar personagens e interligar as suas histórias.
Este potencial da banda desenhada em termos de usar (e, portanto, subverter) o espaço enquanto tempo não é de modo algum novo, e tem sido trabalhado em termos formais (quer enquanto elemento narrativo, quer enquanto exercício “puro”) desde os tempos fundadores, por exemplo, em “The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo” de Gustave Verbeek (1867-1937) histórias nas quais o desenho era “lido” num primeiro sentido, depois invertido e lido uma segunda vez, concluindo-se a história na imagem invertida do desenho inicial. Um mesmo espaço (visto de perspetivas distintas), dois tempos, algo que naturalmente só funcionava com um desenho caricatural, aberto a interpretações visuais mais “flexíveis”. Mais recentemente vale a pena conhecer autores como Fred, Chris Ware, Ray Fawkes, Brecht Evens, Lewis Trondheim, Étienne Lécroart, Jochen Gerner, Sergio Garcia, entre muitos outros. No entanto a grande questão que se põe nessas obras é saber se se esgotam no “mero” virtuosismo formal (por mais inteligente e rico que seja), ou se tentam utilizar as inovações no registo enquanto ferramentas narrativo-dramáticas. Étienne Lécroart, um dos cultores do OUBAPO (Ouvroir de BAnde dessinée POtentielle) por exemplo, encaixa no primeiro destes perfis, (veja-se “Cercle vicieux” de 2000, uma BD capicua), Fred no segundo, com Mathieu e Ware algures no meio. Nas séries “Philémon” (Fred, 1978-87) e Julius Corentin Acquefacques (Mathieu, 1990-2013) as personagens desafiam a estrutura da banda desenhada, saindo das vinhetas, atravessando-as para “viajar no tempo” com motivações onírico-poéticas (Fred), ou de modo a questionar mesmo os vários aspetos da linguagem em si numa narrativa de base kafkiana (Mathieu). Por seu lado, a edição de “Building Stories” (2012) de Chris Ware consiste em vários livros e cartazes de distintos formatos no interior de uma caixa, com o leitor a construir o seu caminho entre a solidão “Hopperiana” das personagens. Mas vale a pena referir outros exemplos de transgressões, se calhar menos óbvios.
Por exemplo, em “One Soul” de Ray Fawkes (2011) cada uma das dezoito vinhetas retangulares de igual tamanho em cada duas páginas, e que se repetem ao longo da obra, correspondem a uma personagem, a uma vida. A cada duas páginas temos direito a um instante dessa vida em evolução. Do negro uterino à eventual morte, e regresso ao negro. Desde a Pré-História aos nossos dias cada personagem representa, para além de si mesma, uma era e um modo de vida, variando o género, o estatuto social, a personalidade. E o que se apreende destas vidas? Depende da leitura. Podemos escolher ler “na vertical”, personagem a personagem; e, em cada duas páginas do livro, apenas apreciar uma vinheta até ao fim. Depois voltar ao princípio, e fazer o mesmo para as restantes dezassete vidas. Ou podemos ler “na horizontal”, página a página, de modo a perceber o modo como as diferentes personagens reagem a momentos cronologicamente semelhantes das suas vidas, e de que modo evoluem. Já o belga Brecht Evens em “The Wrong Place” (2011) cria personagens feitas literalmente de cor, que as carateriza ainda antes de se perceber exatamente quem são. As personagens até “falam” na respetiva cor, com as legendas de cada uma no mesmo tom predominante que o utilizado para a figura humana. Evens usa mesmo a cor para guiar o olhar, estabelecer fronteiras e sentidos de leitura muitas vezes na ausência de quaisquer vinhetas no sentido clássico do termo.
Mas nem só de usos inovadores e inesperados da linguagem deve viver o gosto pela banda desenhada, mau seria se assim fosse. À abertura deve acrescentar-se a exigência na construção da obra, no fluir da narrativa, nas mensagens que se pretendem transmitir. Um dos livros mais interessantes surgidos nos últimos anos é Les ignorants: Récit d'une initiation croisée”, de Étienne Davodeau (2011), no fundo, um longo diálogo entre o autor de BD Étienne Davodeau e o agricultor/enólogo Richard Leroy; e que resulta numa aprendizagem mútua. Davodeau aprende o mundo vitivinícola, Leroy o da banda desenhada. Na verdade, o diálogo só é possível porque ambos professam filosofias comparáveis. Davodeau é um autor bem-sucedido com interesses fortes, que não ambiciona ser autor do novo “Astérix”; Leroy um pequeno produtor renomado, que pretende produzir (poucos) bons vinhos da maneira mais não-invasiva possível. Os métodos, filosofias e processos criativos têm pois claros paralelismos, ao nível da dimensão, visão, e do controlo de qualidade que ambos exigem nas respetivas criações. O rigor de um na poda das videiras é correspondido pelo rigor do outro na aprovação de provas de cor.
Talvez a mensagem principal deste excelente livro seja pois que o diálogo entre disciplinas é possível, e pode ser extremamente fértil. Desde que, para além da abertura necessária para entender o Outro, a visão que os intervenientes tenham das respetivas disciplinas seja semelhante. E o mesmo é válido para as correspondentes ignorâncias, para a disponibilidade em as superar. É que não há mal nenhum em procurar banda desenhada que conforte, lembre outros tempos, que glose (ou mesmo repita) temas, estilos e heróis reconhecíveis. Mas o verdadeiro exercício permanente é este: perceber que num mundo cínico onde se diz que tudo já foi inventado há ainda novidades a propor; obras que nos desafiam e elevam. Basta procurar.

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