No âmbito da Exposição Central do Festival AmadoraBD2016, Espaço, Tempo e Banda Desenhada (comissariada por Eduardo Côrte-Real e Susana Oliveira) foi-me pedido um texto sobre esta temática, enquanto Biólogo que trabalha no Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) e no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Como não encontro o texto online, e como não parece haver catálogo, mesmo que em pdf (ainda?) fica aqui.
A banda desenhada é uma arte vadia, que vive de misturas entre elementos, e, sobretudo, de um olhar que vagueia. Já cansa referir
que a BD aperfeiçoou uma linguagem própria e única, basta focarmo-nos nas suas
especificidades. Neste caso não necessariamente (só) sobre obras com as quais
há particular afinidade pessoal, mas sobre as que nos fazem questionar a
linguagem. Coisa tão diversas como, desde logo, o estilo de desenho, onde, por
exemplo, o toque ligeiramente caricatural permite que as reportagens duríssimas
de Joe Sacco no Médio Oriente (“Palestine”, 1993-96; “Footnotes in Gaza”, 2009)
mantenham a sua credibilidade apesar da distância estabelecida pela mediação
gráfica. Tal como as metáforas de Art Spiegelman em “Maus” (1991) permitem um
profundo e simbólico revisitar da natureza do Holocausto (e de difíceis
relações familiares) de um modo que dificilmente deixaria de ser ridículo noutro
tipo de suporte.
De facto, em
histórias que se pretendem “realistas” esta constante aproximação/distanciação
mediada, a uma primeira vista pelo desenho, depois pelo texto e, finalmente,
pela interligação entre os dois elementos é particularmente interessante na
banda desenhada de natureza autobiográfica, onde o conceito de invasão remota de
privacidade é permanente. Antes de ler o que quer que seja o desenho
esquemático de John Porcellino (“Perfect Example”, 2005; ou “The Hospital
Suite”, 2014), as pinceladas grossas e fluidas que se desvanecem mais do que
definem de Li Kunwu (a trilogia “Une vie chinoise”, com colaboração ao nível do
argumento de Philippe Ôitié, 2009), o rigor geométrico de Alison Bechdel (“Fun
Home”, 2006) e David B, (“L’Ascencion de l’haut mal”, 1996-2003), o ascetismo de
espaços vazios de Chester Brown (“Paying for it”, 2011), ou o virtuosismo fotográfico e
sanguíneo de Fabrice Néaud (“Journal”, 1993-2002) balizam desde logo o tipo de
ligação ao leitor que o autor está disponível para assumir. Esta possibilidade
de o desenho evocar de imediato um ambiente que condiciona a leitura é
naturalmente extensível a histórias inteiramente ficcionadas (não as há
totalmente “reais”), como todo o universo de Philippe Druillet (anos 1960-80) ou
em “As Cidades Obscuras” de François Schuiten e Benoit Peeters (1983-2008),
série na qual cada ambiente urbano minuciosamente criado influencia o tom e
fluxo da narrativa. Também é possível despoletar este mesmo tipo de reação com
palavras, de modo a percebermos o universo no qual nos querem envolver quase
independentemente do desenho? Embora se perca a mediação gráfica imediata, é o
que sucede com os trabalhos dos melhores argumentistas (sobretudo quando
acompanhados por desenhadores menos virtuosos), podendo citar-se a esse nível a
ligação do fantástico ao sociopolítico de Neil Gaiman (em “Sandman”, 1988-1996),
Alan Moore (em todo o lado), Kurt Busiek (“Astro City”, 1995-presente), Grant
Morrison (“The Invisibles”, 1994-2000), ou Warren Ellis (“Transmetropolitan” 1997-2002,
“The Authority”, 1999-2000, “Planetary”- 1999-2009, ou o recém-iniciado “Trees”).
Para outro exemplo menos mediático é interessante conhecer os também recentes (2013-16)
“Jupiter’s Circle” e Jupiter’s Legacy” de Mark Millar.
Noutra perspetiva é
sempre bom recordar que o espaço entre vinhetas implica a participação
(permanente, ativa, inconsciente) do leitor nas transições, unindo as
diferentes imagens. As quais podem representar, não só diferentes espaços, mas
distâncias temporais de nano-segundos a décadas. Como o olhar em BD vagueia,
pode percorrer uma página, considerando a sequência de vinhetas (caso existam)
ou o todo, andando para a frente e para trás, no espaço como no tempo. No romance
gráfico mudo “Here”
(2014) o conceito de Richard McGuire leva este paradoxo espácio-temporal a um radicalismo
limite, mostrando um mesmo espaço físico ao longo de um tempo
extraordinariamente longo, do início de vida na Terra aos nossos dias; e
conseguindo transmitir reflexões que vão do civilizacional ao pessoal. Um livro espelhado deste é o
também mudo “3”” de Marc-Antoine Mathieu (2011), onde o tempo da história são
apenas os 3 segundos do título, com o autor a utilizar “zoomings” extremos e
reflexos em várias superfícies para representar espaços, apresentar personagens
e interligar as suas histórias.
Este potencial da banda
desenhada em termos de usar (e, portanto, subverter) o espaço enquanto tempo
não é de modo algum novo, e tem sido trabalhado em termos formais (quer
enquanto elemento narrativo, quer enquanto exercício “puro”) desde os tempos fundadores,
por exemplo, em “The Upside
Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo” de Gustave Verbeek (1867-1937)
histórias nas quais o desenho era “lido” num primeiro sentido, depois invertido
e lido uma segunda vez, concluindo-se a história na imagem invertida do desenho
inicial. Um mesmo espaço (visto de perspetivas distintas), dois tempos, algo
que naturalmente só funcionava com um desenho caricatural, aberto a
interpretações visuais mais “flexíveis”. Mais
recentemente vale a pena conhecer autores como Fred, Chris Ware, Ray Fawkes,
Brecht Evens, Lewis Trondheim, Étienne Lécroart, Jochen Gerner, Sergio Garcia,
entre muitos outros. No entanto a grande questão que se põe nessas obras é
saber se se esgotam no “mero” virtuosismo formal (por mais inteligente e rico
que seja), ou se tentam utilizar as inovações no registo enquanto ferramentas
narrativo-dramáticas. Étienne Lécroart, um dos cultores do OUBAPO (Ouvroir
de BAnde dessinée POtentielle) por exemplo, encaixa no primeiro destes perfis, (veja-se
“Cercle vicieux” de 2000, uma BD capicua), Fred no segundo, com Mathieu e Ware algures no meio. Nas
séries “Philémon” (Fred, 1978-87) e Julius Corentin Acquefacques (Mathieu, 1990-2013)
as personagens desafiam a estrutura da banda desenhada, saindo das vinhetas,
atravessando-as para “viajar no tempo” com motivações onírico-poéticas (Fred),
ou de modo a questionar mesmo os vários aspetos da linguagem em si numa
narrativa de base kafkiana (Mathieu). Por seu lado, a edição de “Building
Stories” (2012) de Chris Ware consiste em vários livros e cartazes de distintos
formatos no interior de uma caixa, com o leitor a construir o seu caminho entre
a solidão “Hopperiana” das personagens. Mas vale a pena referir outros exemplos
de transgressões, se calhar menos óbvios.
Por exemplo, em “One
Soul” de Ray Fawkes (2011) cada uma das dezoito vinhetas retangulares de igual
tamanho em cada duas páginas, e que se repetem ao longo da obra, correspondem a
uma personagem, a uma vida. A cada duas páginas temos direito a um instante
dessa vida em evolução. Do negro uterino à eventual morte, e regresso ao negro.
Desde a Pré-História aos nossos dias cada personagem representa, para além de
si mesma, uma era e um modo de vida, variando o género, o estatuto social, a
personalidade. E o que se apreende destas vidas? Depende da leitura. Podemos
escolher ler “na vertical”, personagem a personagem; e, em cada duas páginas do
livro, apenas apreciar uma vinheta até ao fim. Depois voltar ao princípio, e fazer
o mesmo para as restantes dezassete vidas. Ou podemos ler “na horizontal”,
página a página, de modo a perceber o modo como as diferentes personagens
reagem a momentos cronologicamente semelhantes das suas vidas, e de que modo
evoluem. Já o belga Brecht Evens em “The Wrong Place” (2011) cria personagens feitas
literalmente de cor, que as carateriza ainda antes de se perceber exatamente
quem são. As personagens até “falam” na respetiva cor, com as legendas de cada
uma no mesmo tom predominante que o utilizado para a figura humana. Evens usa mesmo
a cor para guiar o olhar, estabelecer fronteiras e sentidos de leitura muitas
vezes na ausência de quaisquer vinhetas no sentido clássico do termo.
Mas nem só de usos inovadores
e inesperados da linguagem deve viver o gosto pela banda desenhada, mau seria
se assim fosse. À abertura deve acrescentar-se a exigência na construção da
obra, no fluir da narrativa, nas mensagens que se pretendem transmitir. Um
dos livros mais interessantes surgidos nos últimos anos é “Les ignorants:
Récit d'une initiation croisée”, de Étienne Davodeau (2011), no
fundo, um longo diálogo entre o autor de BD Étienne Davodeau e o
agricultor/enólogo Richard Leroy; e que resulta numa aprendizagem mútua.
Davodeau aprende o mundo vitivinícola, Leroy o da banda desenhada. Na verdade,
o diálogo só é possível porque ambos professam filosofias comparáveis. Davodeau
é um autor bem-sucedido com interesses fortes, que não ambiciona ser autor do
novo “Astérix”; Leroy um pequeno produtor renomado, que pretende produzir (poucos)
bons vinhos da maneira mais não-invasiva possível. Os métodos, filosofias e
processos criativos têm pois claros paralelismos, ao nível da dimensão, visão,
e do controlo de qualidade que ambos exigem nas respetivas criações. O rigor de
um na poda das videiras é correspondido pelo rigor do outro na aprovação de
provas de cor.
Talvez a mensagem principal deste excelente livro seja pois que o diálogo
entre disciplinas é possível, e pode ser extremamente fértil. Desde que, para
além da abertura necessária para entender o Outro, a visão que os
intervenientes tenham das respetivas disciplinas seja semelhante. E o mesmo é
válido para as correspondentes ignorâncias, para a disponibilidade em as
superar. É que não há mal nenhum em procurar banda desenhada que conforte, lembre outros
tempos, que glose (ou mesmo repita) temas, estilos e heróis reconhecíveis. Mas
o verdadeiro exercício permanente é este: perceber que num mundo cínico onde se
diz que tudo já foi inventado há ainda novidades a propor; obras que nos
desafiam e elevam. Basta procurar.
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