A banda desenhada
procura mesclar desenhos e palavras de modo a criar um significado que
transcende (de vários pontos de vista) cada uma das contribuições individuais.
Certo? Nim. Em BD o elemento crucial são desenhos sequenciais, que procuram
transmitir uma mensagem quando considerados em conjunto, e que podem, ou não,
ser acompanhados de palavras. Um desafio clássico na produção de BD superlativa
é evitar que o desenho ou texto vivam apenas do seu próprio virtuosismo, e
desde o início da linguagem que há exemplos excelentes de banda desenhadas
“mudas”. Mas o que pode transmitir um conjunto de desenhos? Uma história? Uma
impressão? Um estado de espírito? E esses desenhos têm de ter uma base
“realista”, compreenderem representações reconhecíveis? Ou podem ser totalmente
abstratos? Podem, como é óbvio, ser o que um autor quiser, e o que um leitor
estiver disponível para abordar, embora a ligação entre estes dois pontos nem
sempre seja uma linha, quanto mais reta. Um ponto de partida em BD é a
antologia “Abstract Comics” (Fantagraphics, 2009), editada por Andrei Molotiu,
onde se incluem perspetivas distintas, quer lidas historicamente a posteriori, quer contemporâneas, e
realizadas com esse objetivo em mente.
Em Portugal dois
exemplos interessantes (e com excelente trabalho editorial) representam duas
abordagens diferentes nesta discussão. “Break Dance” (Mmmnnnrrrg) é um caderno
de desenhos de André Ruivo, muito bem recriado na sua espontaneidade
construída, e no qual se retratam, de forma independente, diversas personagens
claramente humanas em diferentes atividades, mas distorcidas até ao limiar do
grotesco. As distorções parecem indicar, quer interpretações impressionistas do
autor sobre pessoas eventualmente reais, e de como se expõem/escondem/revelam
em público, quer uma vertente libertária de experimentar a forma humana sem
explicações. Individualizadas, é inevitável no entanto que a sequência de
ilustrações sugira no leitor um retrato global. Se sobre as figuras
representadas, se sobre o autor seria outra discussão.
Em “Meteorologias”
(Quarto de Jade) Diniz Conefrey vai mais longe, no sentido em que as
representações são (quase) completamente abstratas; e mais perto, no sentido em
que há uma relação sequencial clara entre desenhos, com elementos gráficos que
podem ser de certo modo “acompanhados” ao longo nas páginas nas suas evoluções
e metamorfoses. Pode ser deformação profissional, mas elementos da capa lembram
neurónios, e uma caraterística comum às distintas obras num excelente preto e
branco que compõem o livro é evocar fluxos, sejam eles vento, vasos sanguíneos,
água, transmissão de informação, alterações de estados de espírito. Por outro
lado, há uma oscilação hipnótica entre a tranquilidade quase “zen” de linhas e
manchas nalguns momentos, e o potencial de raiva de um traço em fúria noutros.
Paradigmático dos objetivos do autor é, logo em “Membrana Fóssil”, o facto de o
enquadramento em quadrícula de vinhetas (elemento clássico da BD), inicialmente
domesticado, seja rompido pelo desenho, que assim extravasa os limites que a si
próprio se impôs.
É natural que muitos
leitores se afastem instintivamente deste tipo de obras “sem história”, que
exigem um compromisso de quem as aborda, e que, por sua vez, não podem exigir
mais de quem delas se afasta. Mas, tal como os trabalhos em cinema de Dziga
Vertov, Andy Warhol, Norman McLaren ou Guy Maddin, são fundamentais para se
perceber o potencial da linguagem da banda desenhada, e desconstruir as suas
limitações.
Meteorologias. Ideias e desenhos de Diniz Conefrey. Quarto de Jade. 164
pp., 18 Euros.
Break Dance. Desenhos de André Ruivo. Mmmnnnrrrg. 120 pp. 18 Euros.
Sem comentários:
Enviar um comentário