segunda-feira, 28 de novembro de 2016

SELVA


Manuel Caldas é uma figura incontornável em termos de restauro de histórias clássicas de banda desenhada através da sua editora Libri Impressi; e o seu último projeto é um marco na BD portuguesa. “A lei da selva”, história protagonizada por leões em África, foi publicada originalmente na revista “O Mosquito” entre fevereiro e julho de 1948, e revela o primoroso trabalho gráfico de um dos maiores autores nacionais, Eduardo Teixeira Coelho, com texto de Raul Correia. Esta edição surge enriquecida com uma história curta de Coelho inédita em Portugal, e sobretudo com notas do editor, de José Ruy (discípulo de Coelho), e um bom enquadramento crítico de Domingos isabelinho, elementos que costumam faltar neste tipo de obras históricas.

Há duas formas de olhar para este livro, hoje. E não necessariamente sobre o bom e o menos bom, mas sobre o que o livro é, e o que não é. Apesar do esforço de contextualização de Isabelinho, o texto (excessivo, gongórico) de Raul Correia pode não atrapalhar agora que remontado para não cobrir partes do desenho, mas raramente ajuda. Desse ponto de vista, o contraste com a (totalmente distinta) história curta “Bodas índias” (publicada na revista espanhola “Chicos” em 1954) é evidente. Depois há a importante (e pouco referida) diferença de o livro poder ser lido em algumas horas, quando a história original foi apreciada página a página ao longo de meses numa revista. O que faz com que, se o desenho mantém o vigor, saltem à vista muletas narrativas (veja-se o uso repetitivo das palavras “fulvo” e “formidável”) que teriam passado despercebidas numa leitura semana a semana. Mas “A lei da selva” é, antes de mais, um tratado vibrante de movimento e emoções num irrepreensível preto e branco, que deve ser lido hoje por todos os autores com interesse em representações realistas. Para além do rigor anatómico E. T. Coelho tem capacidades inatas para um dinamismo dramático mas económico, capaz de resumir emoções poderosas e que impressiona sem excessos, ao contrário, por exemplo, do norte-americano Burne Hogarth, seu contemporâneo e uma grande referência a este nível.
Em termos de história “A lei da selva” não é nada do que aparenta a uma primeira vista. As longas horas de observação no Jardim Zoológico podem ter garantido uma representação correta do movimento e expressões animais, que Coelho utiliza de modo sublime, mas do ponto de vista etológico o livro dificilmente poderia estar mais errado quanto às caraterísticas e ao modo de vida dos leões que o protagonizam; e essa falta de rigor é um problema grave para qualquer olhar crítico. No entanto, pode contra-argumentar-se que este não é um livro sobre animais na savana, mas uma narrativa que resulta de antropomorfizações óbvias, com o pormenor de as personagens humanas nele retratadas serem o mais esquemáticas e o menos expressivas possíveis. O exercício mental a fazer é, simplesmente, trocar os leões por seres humanos. Aí sim, a história faz todo o sentido, e o comportamento é enquadrável numa trama de tragédia e redenção de um herói solitário, vista através do Portugal no final dos anos 1940. O que permite que, a coberto de uma narrativa poética, animalista e “irracional”, Coelho e Correia contem, numa revista infanto-juvenil, uma história cruel de extrema violência que não ficaria atrás de filmes de “gangsters” para adultos. Mais uma vez, o contraste com o cândido e inocente (embora problemático a outros níveis) “Bodas índias” não poderia ser maior.

“A lei da selva” é um notável trabalho que pode ser encomendado diretamente ao editor. É pena que o livro não possa contar com uma capa mais estimulante, bem como uma edição e distribuição com outros recursos (como sucedeu com “Os doze de Inglaterra”, também de Coelho, pela Gradiva). Mas é talvez o preço a pagar pela independência sem a qual Manuel Caldas não seria o editor que é.

A lei da selva. Desenhos de Eduardo Teixeira Coelho, texto de Raul Correia. Libri Impressi/Manuel Caldas (mcaldas59@sapo.pt). 60 pp., 12 Euros.

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