Manuel Caldas é uma
figura incontornável em termos de restauro de histórias clássicas de banda
desenhada através da sua editora Libri Impressi; e o seu último projeto é um
marco na BD portuguesa. “A lei da selva”, história protagonizada por leões em
África, foi publicada originalmente na revista “O Mosquito” entre fevereiro e
julho de 1948, e revela o primoroso trabalho gráfico de um dos maiores autores
nacionais, Eduardo Teixeira Coelho, com texto de Raul Correia. Esta edição
surge enriquecida com uma história curta de Coelho inédita em Portugal, e
sobretudo com notas do editor, de José Ruy (discípulo de Coelho), e um bom
enquadramento crítico de Domingos isabelinho, elementos que costumam faltar
neste tipo de obras históricas.
Há duas formas de olhar
para este livro, hoje. E não necessariamente sobre o bom e o menos bom, mas
sobre o que o livro é, e o que não é. Apesar do esforço de contextualização de
Isabelinho, o texto (excessivo, gongórico) de Raul Correia pode não atrapalhar
agora que remontado para não cobrir partes do desenho, mas raramente ajuda.
Desse ponto de vista, o contraste com a (totalmente distinta) história curta
“Bodas índias” (publicada na revista espanhola “Chicos” em 1954) é evidente. Depois
há a importante (e pouco referida) diferença de o livro poder ser lido em
algumas horas, quando a história original foi apreciada página a página ao
longo de meses numa revista. O que faz com que, se o desenho mantém o vigor,
saltem à vista muletas narrativas (veja-se o uso repetitivo das palavras
“fulvo” e “formidável”) que teriam passado despercebidas numa leitura semana a
semana. Mas “A lei da selva” é, antes de mais, um tratado vibrante de movimento
e emoções num irrepreensível preto e branco, que deve ser lido hoje por todos
os autores com interesse em representações realistas. Para além do rigor
anatómico E. T. Coelho tem capacidades inatas para um dinamismo dramático mas
económico, capaz de resumir emoções poderosas e que impressiona sem excessos,
ao contrário, por exemplo, do norte-americano Burne Hogarth, seu contemporâneo
e uma grande referência a este nível.
Em termos de história
“A lei da selva” não é nada do que aparenta a uma primeira vista. As longas
horas de observação no Jardim Zoológico podem ter garantido uma representação
correta do movimento e expressões animais, que Coelho utiliza de modo sublime,
mas do ponto de vista etológico o livro dificilmente poderia estar mais errado
quanto às caraterísticas e ao modo de vida dos leões que o protagonizam; e essa
falta de rigor é um problema grave para qualquer olhar crítico. No entanto,
pode contra-argumentar-se que este não é um livro sobre animais na savana, mas
uma narrativa que resulta de antropomorfizações óbvias, com o pormenor de as personagens
humanas nele retratadas serem o mais esquemáticas e o menos expressivas
possíveis. O exercício mental a fazer é, simplesmente, trocar os leões por
seres humanos. Aí sim, a história faz todo o sentido, e o comportamento é
enquadrável numa trama de tragédia e redenção de um herói solitário, vista
através do Portugal no final dos anos 1940. O que permite que, a coberto de uma
narrativa poética, animalista e “irracional”, Coelho e Correia contem, numa
revista infanto-juvenil, uma história cruel de extrema violência que não
ficaria atrás de filmes de “gangsters” para adultos. Mais uma vez, o contraste
com o cândido e inocente (embora problemático a outros níveis) “Bodas índias”
não poderia ser maior.
“A lei da selva” é um
notável trabalho que pode ser encomendado diretamente ao editor. É pena que o
livro não possa contar com uma capa mais estimulante, bem como uma edição e
distribuição com outros recursos (como sucedeu com “Os doze de Inglaterra”,
também de Coelho, pela Gradiva). Mas é talvez o preço a pagar pela
independência sem a qual Manuel Caldas não seria o editor que é.
A lei da selva. Desenhos de Eduardo Teixeira Coelho, texto de Raul
Correia. Libri Impressi/Manuel Caldas (mcaldas59@sapo.pt). 60 pp., 12 Euros.
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