Catedrático de literatura francesa na Universidade do País
Basco, estudioso de banda desenhada e argumentista premiado, Antonio Altarriba
é uma das mais interessantes figuras da BD espanhola, destacando-se as obras
dedicadas aos seus pais, “A arte de voar” sobre histórias do pai na Guerra
Civil Espanhola, editada na primeira coleção de Romances Gráficos
Levoir/Público, e “A asa quebrada”, sobre as vicissitudes na vida de sua mãe só
conhecidas após a sua morte, que sairá na segunda coleção. Se estes dois livros
(ambos com desenhos de Kim, num tom realista “neutro”) surgem como homenagens
biográficas sobre as quais se reflete a História de Espanha, “Eu, assassino”
(Arte de Autor) é um pouco diferente, embora comungue da mesma matriz-base.
Desde logo conta com um desenho bastante mais duro de Keko,
e o uso dramático de vermelho (talvez até excessivo) num preto e branco
contrastado que segue uma linha gráfica que vem de Milton Caniff, Alberto
Breccia e Frank Miller. Mas sobretudo o protagonista é Professor (de Arte) na
Universidade do País Basco, e muito semelhante do ponto de vista físico ao
próprio Altarriba. Uma parte importante da história implica pois a realidade
política do País Basco, por um lado, e a dinâmica do meio académico em geral,
por outro, embora seja suficientemente arguta para que esses elementos surjam
mesclados com o relato na primeira pessoa do protagonista.
Citando ao início Sade, e na introdução “O Mandarim” de Eça
de Queirós, a reflexão de Altarriba imbrica nos diferentes modos e perspetivas
de considerar a morte (individual, coletiva, simbólica, “útil”, libertária,
criadora de mitos, terrorista) e as suas consequências, de como podemos acabar
por ficar indiferentes perante a sua ubiquidade quotidiana, e quais os
mecanismos possíveis para o evitar. Com a particularidade de esta reflexão ser
conduzida por um assassino em série cujo objetivo na vida é, para além de não
ser apanhado, tratar a morte como uma das Belas Artes, cada assassinato
enquanto performance/instalação inovadora. Faz diferença o discurso
interessante e articulado do protagonista ser, em simultâneo, o de um psicopata
assassino que, no fundo, apenas se preocupa com a sua carreira (fama,
mulheres), negligenciando muito do que o rodeia (incluindo relações,
previsíveis, com uma aluna e a sua quase ex-mulher)?
Para além de eventualmente sublimar alguns eventos pessoais
(como sucedeu em obras anteriores) é neste paradoxo que reside o interesse
maior de “Eu, assassino”, e a inteligência da obra é patente, não só na
construção de argumento, mas no desenho contrastado de Keko, que sugere haver
uma dualidade que, na verdade, se esfuma. De facto, e caricaturando o que acontece
frequentemente na Academia, o psicopata criativo, original e rebelde que
protagoniza o livro acabará, não necessariamente castigado do modo “clássico”,
mas menorizado por psicopatas copiadores cinzentos, que trabalham melhor dentro
do sistema. A única solução é procurar uma outra abordagem inovadora, que lhe
permita continuar a sua carreira dupla, académica e criminal, já que, em última
análise, tornaram-se indissociáveis. Na verdade, troque-se a palavra
“psicopata” por “especialista” e estaríamos em presença de um retrato
reconhecível do meio académico. Desse ponto de vista, apesar de alguns
desequilíbrios, “Eu, assassino” é uma notável obra em forma de tese, que
perturba até pelo contexto inesperado em que integra os diversos clichés que
assume.
Esta edição prova ainda que, apesar da dinâmica editorial
corrente, há um nicho para pequenas editoras explorarem a muita qualidade
presente em diversos mercados, e em relação aos quais a realidade portuguesa
perde sempre. Depois de “Caravaggio” de Manara, a Arte de Autor volta a marcar
pontos com esta excelente edição.
Eu, assassino. Argumento de
Antonio Altarriba, desenhos de Keko. Arte de Autor. 136 pp., 20 Euros.
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