A dinâmica editorial
recente tem obliterado a memória de um tempo onde tudo parecia muito difícil.
De tal modo que nem sempre se consegue dar a atenção devida a lançamentos,
marcados também por circunstâncias especiais. Por exemplo, “V for Vendetta”,
obra escrita pelo notável argumentista inglês Alan Moore e incluída na coleção
Novelas Gráficas 2 (Levoir), gerou redobrado interesse pela presença do
desenhador David Lloyd, e pelo facto de a máscara de Guy Fawkes usada pelo
protagonista ter sido apropriada pelo grupo Anonymous. No entanto, esta boa
fábula distópica (publicada entre 1982-85) é relativamente linear, e está a
anos-luz da construção minuciosa de “Watchmen”, a obra referencial ao nível de
super-heróis escrita por Moore e desenhada por Dave Gibbons, que a Levoir
lançou numa excelente edição. Desde logo: é o livro que quem diz detestar
super-heróis tem de ler, para pelo menos os detestar com critério. Porque é
óbvio que os próprios autores desconfiam de um género cujo interesse no mercado
anglófono tem muito a ver com popularidade.
Publicado originalmente
como uma mini série de 12 números em 1986-87 é difícil explicar hoje a
importância de “Watchmen” a um público habituado aos inúmeros filhos bastardos,
que aplicam uma versão aguada das suas “receitas” (porque é um pouco disso que
se trata) a heróis muito mais conhecidos. Porque quase tudo de interessante que
se lê e vê hoje com estas personagens tem raízes em “Watchmen” e, noutro
contexto, “The Dark Knight Returns” de Frank Miller (também de 1986). Por outro
lado, é provável que a história não tivesse sido possível se não utilizasse
personagens obscuras, que a DC Comics adquiriu à Charlton Comics, e que Moore
teve total liberdade para desconstruir/reconstruir, mantendo, apesar disso, “tipos”
nos quais se reconhecem outros heróis: o justiceiro solitário perturbado
Rorschach (Question, Batman), o soldado/agente secreto Comedian (Nick Fury,
Captain America), o herói com poderes cósmicos Dr. Manhattan (Silver Surfer,
Superman), os heróis de base tecnológica Nite Owl e Ozymandias (Iron Man,
Batman), a super-heroína que navega o sexismo omnipresente Silk Spectre (Wonder
Woman, Black Canary).
Para além de homenagens
a inúmeros autores e às diferentes épocas de histórias de super-heróis, que
pouco dirão a leitores contemporâneos, o fulcro de “Watchmen” é simples: como é
que se poderia, realisticamente, equacionar a presença de vigilantes mascarados
com superpoderes na sociedade? Como seria o seu quotidiano? Que reações
despoletariam na população? Quais seriam os seus objetivos e linhas de ação?
Como poderiam ser (ou não) controlados pelo poder político? De que modo se
enquadrariam na História e se renovariam, desde o seu aparecimento nas décadas
de 1930, aos anos 1980? As respostas a que Moore chega, não só a partir da
história em si, mas dos suplementos a cada capítulo que ajudam a contextualizar
a ação, assentam numa abordagem feroz, social, económica e política. Para além
de pormenores esclarecedores, como a instrumentalização de tais personagens ter
alterado acontecimentos, permitindo uma vitória dos EUA no Vietname (e a Nixon
evitar Watergate), o elemento perturbador resulta da criação de uma espécie de
“realpolitik” de licra, que obviamente nada deve ao heroísmo ou ao patriotismo,
e que leva a história para uma ultra distopia, no sentido em que é construída
com a melhor das intenções, como quase tudo o que é verdadeiramente péssimo.
A planificação
repetitiva (geralmente nove vinhetas iguais em filas de três por página),
ligada ao desenho elegante, rígido e nada espetacular de Gibbons acaba por ser
o veículo gráfico ideal para o texto e conceitos de Moore, no sentido em que
ilumina sem distrair. A banda desenhada é feita de equilíbrios, e em “Watchmen”
o grafismo “conservador” esconde o alcance de um livro extraordinário para quem
estiver disponível, utilizando o título da biografia do primeiro Nite Owl, a espeitar
debaixo da máscara.
Watchmen.
Argumento de Alan Moore, desenhos de Dave Gibbons. Levoir. 432 pp., 39,90
Euros.
Sem comentários:
Enviar um comentário