sexta-feira, 26 de agosto de 2016

COIMBRA


A cidade de Coimbra existe num estado de bipolaridade permanente. Os 726 anos da Universidade e a classificação da Alta enquanto Património Mundial pela UNESCO em 2013 tanto podem servir como referência de uma construção em permanência, como enquanto lembrete de algo estagnado que um dia foi grandioso, mas que agora não tem outra atividade possível senão lembrar-se melancolicamente disso mesmo, vivendo de História e turismo. No fundo, uma espécie de Portugal simbólico dentro de Portugal, que, convenientemente, até tem o Portugal dos Pequenitos. De facto, as referências a Coimbra enquanto uma espécie de bode expiatório do supostamente lusitano medo de existir depois de se ter existido são comuns; dá sempre jeito haver algo em que possamos verter as nossas inseguranças sem grandes riscos ou justificações, de modo a vincar a ideia de empreendedorismo cosmopolita que nos interessa, por mais pindérica que seja. É inegável que Coimbra se presta a isto, e a grande luta que tem de travar é a de trabalhar sem deixar de celebrar, construindo respeitosamente por cima dos 726 anos da Universidade, como se fossem apenas ontem. 


Curiosamente, ou talvez não, o potencial reformador de um percurso de recriação e reapropriação é por vezes revelado com particular sensibilidade por obra do acaso, aos olhos de um total desconhecido. É o que sucede com “O Segredo de Coimbra”, a primeira obra em banda desenhada do autor belga Étienne Schréder, hoje mais conhecido por participar em vários “Blake & Mortimer” pós-Jacobs. O pretexto foram os instrumentos do Gabinete de Física, criado na Universidade após a Reforma Pombalina de 1772, e hoje parte do Museu da Ciência. Com o propósito de educar com rigor, mas também com um pendor lúdico e artístico, a coleção é notável, e esteve na base da exposição “Os Mecanismos do Génio” realizada no âmbito da Europália de 1991, em Charleroi, Bélgica (mais tarde também patente na Gulbenkian). Explicar o funcionamento dos instrumentos em três línguas (flamengo, francês,  inglês) pareceu ao comissário Laurent Busine muito pesado, decidindo-se por isso a utilizar a linguagem da BD para esse efeito, recorrendo a sequências “mudas”; e Étienne Schréder chegou a Coimbra com o propósito de fazer os esboços necessários. Mas os instrumentos impuseram, também, uma história, publicada originalmente em 1994. Em “O Segredo de Coimbra” um jovem príncipe é educado para a governação de um reino magnífico, que apenas antevê das janelas do seu palácio. Rodeado por instrumentos e livros tem grandiosos sonhos de modernização, alimentados pelo rigor da ciência. Mas a ciência tanto revela e liberta, como pode ser utilizada para aprisionar e iludir; a grandeza de um reino pode, na verdade, ser pouco mais do que uma ilusão de ótica, uma anamorfose apenas visível quando espelhada numa superfície com uma dada forma, um simulacro que só parece imponente quando visto de um determinado ângulo, uma obra inacabada que ninguém sabe ou pode concluir. Apesar de nada conhecer de Portugal, com o seu desenho clássico e linear, no qual se impõem os instrumentos e a arquitetura de Coimbra, Schréder captura uma essência reconhecível, oculta numa história simples de redenção; de um reino e do seu príncipe.

A excelente reedição da obra em português, francês e inglês (uma estreia) por parte da Universidade em parceria com a editora G.Floy, com o acrescento de uma história curta inédita em livro e que liga o século XVIII à década de 1950, lembra que deve ser possível utilizar o património de uma forma aberta e construtiva; não apenas enquanto o fardo que não queremos carregar, mas que também nunca poderemos pousar.

O Segredo de Coimbra. Argumento e desenhos de Étienne Schréder. G.Floy Studio/Universidade de Coimbra. 68 pp., 12,5 Euros.


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