A cidade de Coimbra
existe num estado de bipolaridade permanente. Os 726 anos da Universidade e a
classificação da Alta enquanto Património Mundial pela UNESCO em 2013 tanto
podem servir como referência de uma construção em permanência, como enquanto
lembrete de algo estagnado que um dia foi grandioso, mas que agora não tem
outra atividade possível senão lembrar-se melancolicamente disso mesmo, vivendo
de História e turismo. No fundo, uma espécie de Portugal simbólico dentro de
Portugal, que, convenientemente, até tem o Portugal dos Pequenitos. De facto,
as referências a Coimbra enquanto uma espécie de bode expiatório do
supostamente lusitano medo de existir depois de se ter existido são comuns; dá
sempre jeito haver algo em que possamos verter as nossas inseguranças sem
grandes riscos ou justificações, de modo a vincar a ideia de empreendedorismo
cosmopolita que nos interessa, por mais pindérica que seja. É inegável que
Coimbra se presta a isto, e a grande luta que tem de travar é a de trabalhar
sem deixar de celebrar, construindo respeitosamente por cima dos 726 anos da
Universidade, como se fossem apenas ontem.
Curiosamente, ou talvez
não, o potencial reformador de um percurso de recriação e reapropriação é por
vezes revelado com particular sensibilidade por obra do acaso, aos olhos de um
total desconhecido. É o que sucede com “O Segredo de Coimbra”, a primeira obra
em banda desenhada do autor belga Étienne Schréder, hoje mais conhecido por
participar em vários “Blake & Mortimer” pós-Jacobs. O pretexto foram os
instrumentos do Gabinete de Física, criado na Universidade após a Reforma
Pombalina de 1772, e hoje parte do Museu da Ciência. Com o propósito de educar
com rigor, mas também com um pendor lúdico e artístico, a coleção é notável, e
esteve na base da exposição “Os Mecanismos do Génio” realizada no âmbito da
Europália de 1991, em Charleroi, Bélgica (mais tarde também patente na
Gulbenkian). Explicar o funcionamento dos instrumentos em três línguas
(flamengo, francês, inglês) pareceu ao
comissário Laurent Busine muito pesado, decidindo-se por isso a utilizar a
linguagem da BD para esse efeito, recorrendo a sequências “mudas”; e Étienne
Schréder chegou a Coimbra com o propósito de fazer os esboços necessários. Mas
os instrumentos impuseram, também, uma história, publicada originalmente em
1994. Em “O Segredo de Coimbra” um jovem príncipe é educado para a governação
de um reino magnífico, que apenas antevê das janelas do seu palácio. Rodeado
por instrumentos e livros tem grandiosos sonhos de modernização, alimentados
pelo rigor da ciência. Mas a ciência tanto revela e liberta, como pode ser
utilizada para aprisionar e iludir; a grandeza de um reino pode, na verdade,
ser pouco mais do que uma ilusão de ótica, uma anamorfose apenas visível quando
espelhada numa superfície com uma dada forma, um simulacro que só parece
imponente quando visto de um determinado ângulo, uma obra inacabada que ninguém
sabe ou pode concluir. Apesar de nada conhecer de Portugal, com o seu desenho
clássico e linear, no qual se impõem os instrumentos e a arquitetura de
Coimbra, Schréder captura uma essência reconhecível, oculta numa história
simples de redenção; de um reino e do seu príncipe.
A excelente reedição da
obra em português, francês e inglês (uma estreia) por parte da Universidade em
parceria com a editora G.Floy, com o acrescento de uma história curta inédita
em livro e que liga o século XVIII à década de 1950, lembra que deve ser
possível utilizar o património de uma forma aberta e construtiva; não apenas
enquanto o fardo que não queremos carregar, mas que também nunca poderemos
pousar.
O Segredo de Coimbra. Argumento e desenhos de Étienne Schréder. G.Floy Studio/Universidade de
Coimbra. 68 pp., 12,5 Euros.
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