Quando tudo parece
correr bem é difícil questionar o estado das coisas. Em contraposição, e
considerando o mundo nos últimos anos, não deixa de ser natural que se
privilegie hoje a reflexão sobre instituições e ideias que deveriam funcionar
muito bem no papel, mas que já não parecem capazes de responder a novos
desafios. Ou deveremos mesmo duvidar do papel em que foram inicialmente
escritas?
O muito interessante
“Democracia: Uma história sobre a coragem de mudar o mundo” (Bertrand) procura contextualizar o estabelecimento do modelo
democrático inicial em Atenas, não só em termos das suas limitações, mas do
modo como se relaciona com uma visão contemporânea das relações de poder e de
quem o exerce, dois mil e quinhentos anos depois. A aposta editorial está certamente ligada ao
sucesso do livro anterior da mesma equipa gráfica, “Logicomix”, sobre a obra
científica e filosófica de Bertrand Russell, mas se nesse livro o papel dos
argumentistas Apostolos Dioxiadis e Christos Papadimitriou era decisivo,
“Democracia” é um projeto pessoal do desenhador grego Alecos Papadatos,
concebido com o argumentista Abraham Kawa. A história foca-se nas tribulações
de um jovem ateniense, que conta as suas aventuras aos companheiros de armas
antes da famosa batalha contra os persas em Maratona, com histórias dentro de
histórias em que deuses, lenda e realidade se confundem. Graças a esses
mecanismos narrativos percorre-se a história, política e governação da cidade
de Atenas, quem exerce o poder, de que modo o exerce, e que outras alternativas
se poderiam propor. Mas alternativas para quê, exatamente? De modo a garantir
maior representatividade? Dar voz a quem não a tem? Apenas para assegurar
pragmaticamente um governo onde as pessoas (as que tinham esse direito em
Atenas, sublinhe-se) se sentissem ouvidas, mesmo que na verdade apenas fossem
habilmente instrumentalizadas?
A ambição de tentar
referir demasiados assuntos (por vezes com pormenores que levam muito tempo a
enquadrar), fazem com que o resultado possa ser algo pesado, com um equilíbrio
tenso entre História e estória. Ou seja: sente-se alguma dificuldade em criar
situações e personagens que “cumpram” as funções expositivas que os autores
delinearam sem isso parecer forçado. Mas é louvável o modo como se procuram
evitar finais felizes artificiais e estereótipos, embora nem sempre seja
possível, mormente do ponto de vista gráfico. Sobretudo é inevitável ler
“Democracia” à luz contemporânea, e essa era uma intenção clara dos autores. As
manobras políticas descritas ao longo do livro podem girar em torno das
alterações para o primeiro modelo dito democrático em Atenas, mas é evidente
que a democracia e o carisma heroico de uns podem ser o elitismo e a tirania de
outros, e os fins acabam quase sempre por justificar os meios.
Na verdade, as
justificações de deuses e humanos sucedem-se em “Democracia”, mas não deixam de
vincar que o poder é, simplesmente, aquilo que sempre foi: poder. Gerido com
força, dinheiro, retórica. Nesse sentido é interessante ver os espartanos
enquanto força militar ocupante, a arte clássica grega (vasos, estátuas,
templos) enquanto veículo de propaganda; e sobretudo o Oráculo de Delfos
enquanto Agência de Rating, ou uma qualquer entidade reguladora, tanto mais
perigosa quanto é descaradamente manipulável sem o parecer. Também, como
sempre, a manipulação tem intenções, e não é certo que as “boas” sejam
necessariamente melhores do que as “más”. Embora o livro termine com uma
mensagem de confiança, o caminho narrativo trilhado vai um pouco ao arrepio do
subtítulo da obra, no sentido em que o mundo não pareceu mudar assim tanto, a
vigilância tem de ser permanente, e todos os erros e atropelos podem ser
justificados com boa fé, a pior fé de todas. Limitarmo-nos a repetir Churchill
e defender que a Democracia é o pior sistema de governo à exceção de todos os
outros é, hoje, uma escapatória curta.
Democracia: Uma história sobre a coragem
de mudar o mundo. Conceito de Alecos
Papadatos, história de Alecos Papadatos e Abraham Kawa, argumento de Abraham
Kawa, desenhos de Alecos Papadatos com cores de Annie di Donna. Bertrand
Editora. 240 pp., 19 Euros.
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