Classificar o trabalho
de António Jorge Gonçalves como “inclassificável” é uma opção possível, mas
fácil. Em banda desenhada, ilustração, cartoon, cenografia ou performance há
sempre uma componente temporal, um movimento que sugere percursos, não necessariamente
uma narrativa. É certo que obras iniciais como “As aventuras de Filipe Seems”
(argumentos de Nuno Artur Silva) tinham uma matriz de BD franco-belga afiliada
à retoma contemporânea da “linha clara”, que se foi desvanecendo (em termos de
história e estilo) no último volume da trilogia, nas colaborações com Rui Zink
(“A arte suprema”, “Rei”), e em trabalhos a solo, como “O Sr. Abílio”, “Subway
Life”, ou o mais recente “A minha casa não tem dentro” (abysmo).
Resultado indireto de
um problema de saúde grave do qual o autor recuperou, mas que implicou uma
intervenção cirúrgica complexa e uma convalescença longa, é importante dizer
desde logo que, apesar de toda a atenção que (muito justamente) foi dada a este
notável livro e à história da sua génese, “A minha casa não tem dentro” merece
ser encarado de um modo “neutral”, no sentido em que o trabalho de António
Jorge Gonçalves tem um poder evocativo, entre a maravilha e o medo, que
transcende qualquer contextualização. Até porque, e apesar da tonalidade que este
adjetivo em particular sempre carrega consigo, esta é uma obra acessível,
certamente mais do que outros livros do autor, incluindo colaborações com
argumentistas. Pode não o parecer a uma primeira vista/leitura, mas as palavras
e imagens constroem, não bem uma narrativa, mas um conjunto evolutivo de
momentos ou estados de espírito, sendo de destacar o uso de cor e sombra.
O livro não mistura
palavras e desenhos, umas e outros fazem o seu caminho, com as palavras
(obedientemente em quadradinhos) a resumirem memórias de diferentes instantes,
e a balizarem conjuntos temáticos de imagens mudas de traço grosso, onde a cor
promove acentos de azul e vermelho, a princípio separados, mais tarde juntos ou
fundidos. O simbolismo é aqui para quem o quiser apanhar; e, depois de uma capa
que não o parece, o próprio autor faz um aviso eloquente logo no início: cada
leitor interpreta por sua conta e risco. Entre representações de caos
organizado sobressaem alterações de escala, personagens sem rosto, e uma menina
protagonista (?) que deambula num cenário feito de formas geométricas,
pormenores de habitações mutadas, cenas mitológicas ou espetáculos circenses. A
menina exerce apenas uma natural curiosidade, ou está à beira de se perder em
perigos insuspeitos? As mãos que tudo apontam querem proteger ou esmagar? As
multidões sem rosto representam um comentário irónico às típicas fotografias de
família espalhadas pela casa, ou são um sinal de desagregação e perda de
memória? António Jorge Gonçalves escolhe aspetos do familiar, e distorce-os numa
visão febril onde se sentem evocações de isolamento, medo, dor, esperança. No
final compreensivelmente otimista de “A minha casa não tem dentro” as figuras
humanas surgem com caras concretas, as portas abrem-se para um branco que
esperamos seja luz. (Sobre)vive-se, vence-se a dor, passa-se outro limiar.
Como, noutro registo,
Diniz Conefrey, António Jorge Gonçalves parte de uma matriz com elementos e
convenções da banda desenhada, adaptando-os a um ritmo que é apenas seu. Convidando
cada leitor a fazer o mesmo. Sem pedir explicações, nem oferecer as suas em
troca.
A minha casa não tem dentro. Desenhos e texto de António Jorge
Gonçalves. abysmo. 150 pp., 20 Euros.
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