sábado, 1 de julho de 2017

ESTÍMULOS


Na BD portuguesa, para além de autores com atividade tão regular quanto possível, têm igualmente lugar destacado “cometas”, vozes únicas que surgem, desaparecem, e regressam de forma imprevisível. Mas que, essencialmente, surpreendem. Uma delas pertence a Nunsky, e a sua mais recente proposta “Espero chegar em breve” (Mmmnnnrrrg) vale muito a pena. Já “Erzsébet” (Mmmnnnrrrg, 2014) tinha revelado um traço grosso com uso magnífico do negro, a lembrar Charles Burns, ao serviço de uma inesperada história de terror gótico protagonizada pela condessa húngara Erzsébet Báthory (1560-1614), uma assassina em série que procurava manter a juventude banhando-se no sangue de jovens raparigas. Neste caso a temática volta a tocar a fronteira entre estimulação e loucura, mas de uma perspetiva distinta.

Em “Espero chegar em breve” Nunsky adapta o conto “I hope I shall arrive soon”, publicado inicialmente como “Frozen Journey” na revista “Playboy” em 1980 por Philip K. Dick (1928-1982), um dos mais interessantes autores de ficção científica. Numa longa viagem intergaláctica um erro no sistema faz com que um passageiro, Victor Kemmings, acorde do sono criogénico que deveria durar toda a travessia. Paralisado, mas alerta, os dez anos de viagem que ainda faltam fazem com que Kemmings arrisque ficar louco, algo que o computador de bordo tenta evitar. A solução encontrada consiste em estimular a atividade cerebral do passageiro, fazendo com que se distraia com sonhos elaborados, construídos a partir de memórias da sua vida na Terra. Para garantir uma maior estabilidade emocional o computador utiliza tempos felizes, sugeridos pelo próprio Kemmings, que começa deste modo a (re)viver de forma artificial o passado.
Só que nunca se consegue revisitar a memória sem a contaminar, e, por mais que o computador tente, o cérebro de Kemmings apercebe-se das mentiras que lhe estão a querer contar, e recusa-as. No entanto, o computador não está programado para desistir e escolhe uma fuga para a frente, procurando produzir memórias que projetem o futuro, com a eventual chegada de Kemmings ao seu destino, construindo uma nova vida num planeta distante. A questão é que, por muito que trabalhe a lógica, não é possível ao computador levar em linha de conta as culpas e neuroses que jazem no fundo da alma humana, ou o modo retorcido como se integram num dia a dia que está a um erro do sistema de se tornar completamente disfuncional. Confrontado com simulações, Kemmings deixa de ser capaz de reconhecer a realidade, ou acreditar que ela possa existir, mesmo quando a normalidade parece regressar. As mentiras bem-intencionadas foram tantas que a verdade perdeu o valor absoluto. Não é que o conto de Dick tenha particular atualidade hoje, é que este é um tema que nunca perdeu atualidade, mas que o autor norte-americano formulou como muito poucos, a coberto da ficção-científica. E que Nunsky trabalha de forma brilhante, com o traço grosso e o uso do negro a iluminarem com as suas qualidades opressivas.

Apesar de mais linear do ponto de vista narrativo, “Erzsébet” tinha algo que “Espero chegar em breve” não tem. Espaço. Com mais cem páginas, a espiral de loucura da condessa Báthory desenhava-se de forma metódica, com um uso excelente de páginas mudas. Um luxo agora ausente, havendo um acumular de texto e algumas questões na legendagem; que, apesar da excelente ideia de letras em branco sobre fundo negro, é por vezes menos legível (sobretudo nas falas do computador). Mas esta é uma questão menor numa obra onde o questionar das fronteiras da consciência levanta mais uma discussão sobre o que é, na realidade, a realidade.


Espero chegar em breve. Argumento e desenhos de Nunsky (adaptando Philip K. Dick). Mmmnnnrrrg. 42 pp., 10 Euros.



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