Na BD portuguesa, para
além de autores com atividade tão regular quanto possível, têm igualmente lugar
destacado “cometas”, vozes únicas que surgem, desaparecem, e regressam de forma
imprevisível. Mas que, essencialmente, surpreendem. Uma delas pertence a
Nunsky, e a sua mais recente proposta “Espero chegar em breve” (Mmmnnnrrrg)
vale muito a pena. Já “Erzsébet” (Mmmnnnrrrg, 2014) tinha revelado um traço
grosso com uso magnífico do negro, a lembrar Charles Burns, ao serviço de uma inesperada
história de terror gótico protagonizada pela condessa húngara Erzsébet Báthory
(1560-1614), uma assassina em série que procurava manter a juventude
banhando-se no sangue de jovens raparigas. Neste caso a temática volta a tocar
a fronteira entre estimulação e loucura, mas de uma perspetiva distinta.
Em “Espero chegar em
breve” Nunsky adapta o conto “I hope I shall arrive soon”, publicado
inicialmente como “Frozen Journey” na revista “Playboy” em 1980 por Philip K.
Dick (1928-1982), um dos mais interessantes autores de ficção científica. Numa
longa viagem intergaláctica um erro no sistema faz com que um passageiro, Victor
Kemmings, acorde do sono criogénico que deveria durar toda a travessia.
Paralisado, mas alerta, os dez anos de viagem que ainda faltam fazem com que
Kemmings arrisque ficar louco, algo que o computador de bordo tenta evitar. A
solução encontrada consiste em estimular a atividade cerebral do passageiro,
fazendo com que se distraia com sonhos elaborados, construídos a partir de
memórias da sua vida na Terra. Para garantir uma maior estabilidade emocional o
computador utiliza tempos felizes, sugeridos pelo próprio Kemmings, que começa
deste modo a (re)viver de forma artificial o passado.
Só que nunca se
consegue revisitar a memória sem a contaminar, e, por mais que o computador
tente, o cérebro de Kemmings apercebe-se das mentiras que lhe estão a querer contar,
e recusa-as. No entanto, o computador não está programado para desistir e escolhe
uma fuga para a frente, procurando produzir memórias que projetem o futuro, com
a eventual chegada de Kemmings ao seu destino, construindo uma nova vida num
planeta distante. A questão é que, por muito que trabalhe a lógica, não é
possível ao computador levar em linha de conta as culpas e neuroses que jazem
no fundo da alma humana, ou o modo retorcido como se integram num dia a dia que
está a um erro do sistema de se tornar completamente disfuncional. Confrontado
com simulações, Kemmings deixa de ser capaz de reconhecer a realidade, ou
acreditar que ela possa existir, mesmo quando a normalidade parece regressar.
As mentiras bem-intencionadas foram tantas que a verdade perdeu o valor
absoluto. Não é que o conto de Dick tenha particular atualidade hoje, é que
este é um tema que nunca perdeu atualidade, mas que o autor norte-americano
formulou como muito poucos, a coberto da ficção-científica. E que Nunsky
trabalha de forma brilhante, com o traço grosso e o uso do negro a iluminarem
com as suas qualidades opressivas.
Apesar de mais linear
do ponto de vista narrativo, “Erzsébet” tinha algo que “Espero chegar em breve”
não tem. Espaço. Com mais cem páginas, a espiral de loucura da condessa Báthory
desenhava-se de forma metódica, com um uso excelente de páginas mudas. Um luxo
agora ausente, havendo um acumular de texto e algumas questões na legendagem;
que, apesar da excelente ideia de letras em branco sobre fundo negro, é por vezes
menos legível (sobretudo nas falas do computador). Mas esta é uma questão menor
numa obra onde o questionar das fronteiras da consciência levanta mais uma
discussão sobre o que é, na realidade, a realidade.
Espero chegar em breve. Argumento e desenhos de Nunsky
(adaptando Philip K. Dick). Mmmnnnrrrg. 42 pp., 10 Euros.
Sem comentários:
Enviar um comentário