Falar de banda
desenhada e ilustração é (também) discutir um mundo onde palavras e (sobretudo)
imagens se cruzam das mais diversas, e inesperadas, maneiras. Sugerindo, mais
do que contando, mostrando portas, mais do que as abrindo. Até aquelas alturas
em que nos perguntamos quando acabou aquilo a que estávamos habituados, e
nasceu outra coisa qualquer.
Em “Retratos” André
Ruivo propõe, precisamente, onze retratos em grande formato desenhados sem
linha a preto, utilizando blocos de cores fortes e texturas a evocar lápis de
cera ou giz. Mas quem são estas pessoas? Quanto mais se contemplam, mais
parecem vagamente familiares, mais as cores vibrantes e pouco naturais assumem
potenciais significados, mais nos preocupamos com as personalidades e possíveis
vidas que estarão por detrás da representação, com as ligações entre elas. E
traçamos outros retratos, em paralelo aos do autor.
Diametricamente oposto
do ponto de vista gráfico é “O livro das imagens” de Sei Miguel, mais conhecido
enquanto compositor e músico. O autor revela aqui um interessante traço fino a
negro, cuja fragilidade surreal anima composições realizadas entre 2012 e 2015,
potenciadas pelas várias possibilidades de “leitura” de cada desenho. O livro
desde logo assume alguma narratividade em potência, um diálogo entre o nome de
cada ilustração, os elementos gráficos, e o modo como os seus diferentes níveis
se organizam no espaço. Por ali pululam sugestões de conflitos e hesitações,
elementos de fábulas, monstros, lendas. Também aqui o prolongamento do olhar
cria familiaridade, e começamos a encadear histórias retiradas de cada imagem,
que nunca sabemos bem se eram aquelas que o autor tinha em mente, mas que (nos)
fazem sentido.
Por último, o
monumental “Desenhos efémeros” de António Jorge Gonçalves é uma obra estimulante,
que dá testemunho da consolidação impossível de (parte de) uma notável obra,
que há muito deixou as fronteiras da banda desenhada. Porquê impossível? Pela
natureza dos trabalhos revisitados aqui, um pouco a BD, mas mais cenografias
para teatro, os desenhos rápidos a passageiros no metro; e sobretudo as
diversas performances de desenho ao vivo do autor, dialogando com música,
escrita, bailado, representação. É esta a evolução da obra de António Jorge
Gonçalves que o livro interroga, focando todo o trabalho (técnico, concetual)
necessário para explorar um mundo no qual desenhos projetados sobre telas ou
edifícios em tempo real, à medida que vão sendo produzidos, ganham vida própria
num contexto específico, não só de espaço, mas também de tempo, que a
fotografia (ou mesmo o vídeo) dificilmente apreenderiam. O livro compensa a
tangente ao impossível com reflexões sobre esse diálogo permanente, quer do
próprio autor, quer mediante textos de acompanhantes-cúmplices de percurso.
Particularmente interessante é o modo como o autor enquadra esta sua evolução,
como que utilizando a performance para “obrigar” um planeamento mais cerebral a
dar lugar à rapidez instintiva no depurar de traço e composição; para mais
tarde se afastar e analisar (de novo cerebralmente) o que aconteceu. E até que
ponto se pode falar de diálogo entre formas de expressão, e não apenas
encontros fortuitos? Como integrar os diferentes tempos de produção onde
desenhar, por exemplo, parece andar sempre atrás do instantâneo da música? Quem
potencia o quê, quando, como? E ainda: o que fazer a seguir?
Numa altura em que são
contínuas as edições de diferentes tipos de banda desenhada (e ainda bem), é
bom experimentar obras que nos desafiam a ir além das diversas caixas em que
nos fomos inserindo; e a pensar se temos mesmo a certeza daquilo que temos a
certeza.
Desenhos efémeros. Desenhos de António Jorge Gonçalves. Orpheu
Negro, 336 pp. 28 Euros.
Retratos. Desenhos de André Ruivo. Mmmnnnrrrg/The Inspector Cheese
Adventures. 11 pp., 10 Euros.
O livro das imagens, 2012-2013-2014-2015. Desenhos de Sei Miguel. O Homem do
Saco/Marmita de Gigante. 84 pp. 13,50 Euros.
Sem comentários:
Enviar um comentário