sábado, 23 de junho de 2018

DIÁLOGOS



Falar de banda desenhada e ilustração é (também) discutir um mundo onde palavras e (sobretudo) imagens se cruzam das mais diversas, e inesperadas, maneiras. Sugerindo, mais do que contando, mostrando portas, mais do que as abrindo. Até aquelas alturas em que nos perguntamos quando acabou aquilo a que estávamos habituados, e nasceu outra coisa qualquer.


Em “Retratos” André Ruivo propõe, precisamente, onze retratos em grande formato desenhados sem linha a preto, utilizando blocos de cores fortes e texturas a evocar lápis de cera ou giz. Mas quem são estas pessoas? Quanto mais se contemplam, mais parecem vagamente familiares, mais as cores vibrantes e pouco naturais assumem potenciais significados, mais nos preocupamos com as personalidades e possíveis vidas que estarão por detrás da representação, com as ligações entre elas. E traçamos outros retratos, em paralelo aos do autor.

Diametricamente oposto do ponto de vista gráfico é “O livro das imagens” de Sei Miguel, mais conhecido enquanto compositor e músico. O autor revela aqui um interessante traço fino a negro, cuja fragilidade surreal anima composições realizadas entre 2012 e 2015, potenciadas pelas várias possibilidades de “leitura” de cada desenho. O livro desde logo assume alguma narratividade em potência, um diálogo entre o nome de cada ilustração, os elementos gráficos, e o modo como os seus diferentes níveis se organizam no espaço. Por ali pululam sugestões de conflitos e hesitações, elementos de fábulas, monstros, lendas. Também aqui o prolongamento do olhar cria familiaridade, e começamos a encadear histórias retiradas de cada imagem, que nunca sabemos bem se eram aquelas que o autor tinha em mente, mas que (nos) fazem sentido.

Por último, o monumental “Desenhos efémeros” de António Jorge Gonçalves é uma obra estimulante, que dá testemunho da consolidação impossível de (parte de) uma notável obra, que há muito deixou as fronteiras da banda desenhada. Porquê impossível? Pela natureza dos trabalhos revisitados aqui, um pouco a BD, mas mais cenografias para teatro, os desenhos rápidos a passageiros no metro; e sobretudo as diversas performances de desenho ao vivo do autor, dialogando com música, escrita, bailado, representação. É esta a evolução da obra de António Jorge Gonçalves que o livro interroga, focando todo o trabalho (técnico, concetual) necessário para explorar um mundo no qual desenhos projetados sobre telas ou edifícios em tempo real, à medida que vão sendo produzidos, ganham vida própria num contexto específico, não só de espaço, mas também de tempo, que a fotografia (ou mesmo o vídeo) dificilmente apreenderiam. O livro compensa a tangente ao impossível com reflexões sobre esse diálogo permanente, quer do próprio autor, quer mediante textos de acompanhantes-cúmplices de percurso. Particularmente interessante é o modo como o autor enquadra esta sua evolução, como que utilizando a performance para “obrigar” um planeamento mais cerebral a dar lugar à rapidez instintiva no depurar de traço e composição; para mais tarde se afastar e analisar (de novo cerebralmente) o que aconteceu. E até que ponto se pode falar de diálogo entre formas de expressão, e não apenas encontros fortuitos? Como integrar os diferentes tempos de produção onde desenhar, por exemplo, parece andar sempre atrás do instantâneo da música? Quem potencia o quê, quando, como? E ainda: o que fazer a seguir?

Numa altura em que são contínuas as edições de diferentes tipos de banda desenhada (e ainda bem), é bom experimentar obras que nos desafiam a ir além das diversas caixas em que nos fomos inserindo; e a pensar se temos mesmo a certeza daquilo que temos a certeza.


Desenhos efémeros. Desenhos de António Jorge Gonçalves. Orpheu Negro, 336 pp. 28 Euros.
Retratos. Desenhos de André Ruivo. Mmmnnnrrrg/The Inspector Cheese Adventures. 11 pp., 10 Euros.
O livro das imagens, 2012-2013-2014-2015. Desenhos de Sei Miguel. O Homem do Saco/Marmita de Gigante. 84 pp. 13,50 Euros.

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