Há obras absolutamente
essenciais na sua monumentalidade (qualquer que seja o formato), que, para além
do elogio que resulta da edição, merecem algo muito simples: serem lidas.
Chamem-se “Bíblia”, “Dom Quixote”, “Ulisses”. Ou “From Hell”/“Do inferno” de
Alan Moore e Eddie Campbell, editada em finais de 2017 pela Devir numa iniciativa
que merce todo o aplauso. Apesar de existirem questões não triviais relacionadas
com a tradução/texto, estas têm de se relativizar numa obra que explora, não
apenas os assassínios atribuídos a Jack o Estripador em 1888, mas toda a
envolvência sociocultural, no fundo fazendo uma autópsia da época vitoriana.
Que, e isto é talvez o mais relevante, na sua essência se estende pelas Guerras
Mundiais até aos nossos dias, com outras matrizes, mas mantendo as mesmas
estruturas de poder, seja político, económico, mágico, religioso ou qualquer
outro. Mais ou menos autoritário, mais ou menos democrático.
Publicada em fascículos
entre 1989 e 1998, e mais tarde reunida em livro, esta é uma obra-limite de
vários pontos de vista. Para além das mais de 500 páginas de BD, há copiosas
notas, nas quais Alan Moore explica as fontes consultadas e o raciocínio que esteve
na base de cada representação ou diálogo (mesmo que estes sejam todos
inventados). Não é algo menor: neste caso as notas são parte integrante da
obra, e devem ser lidas em paralelo, cena a cena. Noutra perspetiva: dadas as
ligações (surpreendentes? estapafúrdias?) sugeridas, o modo como forem (ou não)
lidas transforma “Do inferno”. Há também elementos de meta-narrativa onde Moore
discorre sobre o grau de verosimilhança de cada opção, bem como potenciais
alternativas, e refere mesmo pontos de desacordo com o desenhador Eddie
Campbell. O qual, por sua vez, utiliza de forma brilhante o seu estilo numa
sucessão de linhas cruzadas a preto e branco, das quais tanto pode emergir uma
névoa londrina de enganos, como detalhes cristalinos, desviando-se por vezes pela
aguada em representações fora do bairro infecto de Whitechapel. A
planificação-base inclui três linhas de três vinhetas cada por página, uma
simplicidade enganadora que pode ser utilizada para vincar uma ação ou criar
paralelismos entre eventos. Mas sobretudo induz no leitor uma regularidade que
alerta quando a regra não é mantida, como a apresentação da Rainha Vitória, os
cenários dos crimes, ou as igrejas eivadas de simbolismo do arquiteto barroco
Nicholas Hawksmoor. Neste último caso é evidente a dissecção metafórica da
Londres-protagonista (tão detalhada quanto a de Mary Kelly realizada pelo
Estripador), apresentada através de um discurso que, cruzando simbolismos de
todas as correntes (pagãos, gnósticos, maçónicos, cristãos), não deixa de ser
por vezes pedante (escudado na natureza do protagonista humano), criando o
contraste entre o erudito e o ignaro, o conhecimento e a ignorância, a beleza e
a brutidade; que são a base de todas as sociedades.
No meio disto tudo
talvez o menos relevante seja a teoria defendida em “Do inferno” quanto à
identidade do Estripador. Sendo esta uma obra de ficção tem, ao contrário de um
documentário, de propor algo concreto, e a escolha (baseada sobretudo numa
fonte) tem implicações na estrutura. O presumível culpado, bem como a evolução
pessoal e social que o terá levado a encarnar “Jack”, é apresentado logo no
início, e o encadear de eventos gerido de forma lógica; incluindo uma vasta
conspiração (cuja credibilidade será avaliada por cada leitor) criada para
ocultar os crimes. Mas os próprios autores estão cientes das limitações
especulativas do livro, semelhantes a todos os outros sobre a temática. Paira
no fim uma mensagem fundamental: na sua concretização, investigação e possíveis
ocultações, este foi um crime coletivo, cometido sobre as mais vulneráveis. Um
tipo de crime que tende a ficar sem castigo.
Do inferno. Argumento de Alan Moore, desenhos de Eddie Campbell. Devir.
576 pp., 40 Euros.
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