sábado, 23 de junho de 2018

AUTÓPSIA

Há obras absolutamente essenciais na sua monumentalidade (qualquer que seja o formato), que, para além do elogio que resulta da edição, merecem algo muito simples: serem lidas. Chamem-se “Bíblia”, “Dom Quixote”, “Ulisses”. Ou “From Hell”/“Do inferno” de Alan Moore e Eddie Campbell, editada em finais de 2017 pela Devir numa iniciativa que merce todo o aplauso. Apesar de existirem questões não triviais relacionadas com a tradução/texto, estas têm de se relativizar numa obra que explora, não apenas os assassínios atribuídos a Jack o Estripador em 1888, mas toda a envolvência sociocultural, no fundo fazendo uma autópsia da época vitoriana. Que, e isto é talvez o mais relevante, na sua essência se estende pelas Guerras Mundiais até aos nossos dias, com outras matrizes, mas mantendo as mesmas estruturas de poder, seja político, económico, mágico, religioso ou qualquer outro. Mais ou menos autoritário, mais ou menos democrático. 

Publicada em fascículos entre 1989 e 1998, e mais tarde reunida em livro, esta é uma obra-limite de vários pontos de vista. Para além das mais de 500 páginas de BD, há copiosas notas, nas quais Alan Moore explica as fontes consultadas e o raciocínio que esteve na base de cada representação ou diálogo (mesmo que estes sejam todos inventados). Não é algo menor: neste caso as notas são parte integrante da obra, e devem ser lidas em paralelo, cena a cena. Noutra perspetiva: dadas as ligações (surpreendentes? estapafúrdias?) sugeridas, o modo como forem (ou não) lidas transforma “Do inferno”. Há também elementos de meta-narrativa onde Moore discorre sobre o grau de verosimilhança de cada opção, bem como potenciais alternativas, e refere mesmo pontos de desacordo com o desenhador Eddie Campbell. O qual, por sua vez, utiliza de forma brilhante o seu estilo numa sucessão de linhas cruzadas a preto e branco, das quais tanto pode emergir uma névoa londrina de enganos, como detalhes cristalinos, desviando-se por vezes pela aguada em representações fora do bairro infecto de Whitechapel. A planificação-base inclui três linhas de três vinhetas cada por página, uma simplicidade enganadora que pode ser utilizada para vincar uma ação ou criar paralelismos entre eventos. Mas sobretudo induz no leitor uma regularidade que alerta quando a regra não é mantida, como a apresentação da Rainha Vitória, os cenários dos crimes, ou as igrejas eivadas de simbolismo do arquiteto barroco Nicholas Hawksmoor. Neste último caso é evidente a dissecção metafórica da Londres-protagonista (tão detalhada quanto a de Mary Kelly realizada pelo Estripador), apresentada através de um discurso que, cruzando simbolismos de todas as correntes (pagãos, gnósticos, maçónicos, cristãos), não deixa de ser por vezes pedante (escudado na natureza do protagonista humano), criando o contraste entre o erudito e o ignaro, o conhecimento e a ignorância, a beleza e a brutidade; que são a base de todas as sociedades.

No meio disto tudo talvez o menos relevante seja a teoria defendida em “Do inferno” quanto à identidade do Estripador. Sendo esta uma obra de ficção tem, ao contrário de um documentário, de propor algo concreto, e a escolha (baseada sobretudo numa fonte) tem implicações na estrutura. O presumível culpado, bem como a evolução pessoal e social que o terá levado a encarnar “Jack”, é apresentado logo no início, e o encadear de eventos gerido de forma lógica; incluindo uma vasta conspiração (cuja credibilidade será avaliada por cada leitor) criada para ocultar os crimes. Mas os próprios autores estão cientes das limitações especulativas do livro, semelhantes a todos os outros sobre a temática. Paira no fim uma mensagem fundamental: na sua concretização, investigação e possíveis ocultações, este foi um crime coletivo, cometido sobre as mais vulneráveis. Um tipo de crime que tende a ficar sem castigo.


Do inferno. Argumento de Alan Moore, desenhos de Eddie Campbell. Devir. 576 pp., 40 Euros.

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