Pensadas inicialmente
para a revista “Granta” (só uma foi publicada na altura) as duas histórias que
compõem “Comer/Beber” (Tinta da China) constituem a mais recente, e muito
badalada, obra da dupla Filipe Melo e Juan Cavia. “Sleepwalk” (comer) tem como fulcro
uma tarte de maçã (a receita está no fim do livro), e passa-se entre o Arizona
e o Texas, em 1984. “Majowski” (beber) gira em torno de uma garrafa de
champanhe, e tem lugar sobretudo num restaurante em Berlim, entre 1935 e 1943.
Se o ritmo de “Sleepwalk”
faz jus ao título, a história surpreende por aquilo que não diz, um relato de
dissolução inexorável feita de solidões cruzadas, que o leitor terá de
reconstruir. Como um conto escrito por Sam Shepard, inspirado por imagens de
Edward Hopper iluminadas pelas cores do deserto. Até pelo fôlego temporal,
“Majowski” é mais complexa, talvez também porque baseada em eventos reais (há
um pequeno dossiê no final), contando com colaborações no argumento e arte, e
com cores apropriadamente mais carregadas. Aqui o principal mérito é o modo
como, em curtos episódios numa história já de si curta, texto e desenho
conseguem definir de forma credível a evolução necessariamente complexa de
personagens e do próprio regime nazi ao longo de vários períodos (da glória de
Marlene Dietrich, aos bombardeamentos dos aliados). Fugido da Polónia em 1917,
o protagonista vê-se enredado num ambiente que o projeta, ao mesmo tempo que o
oprime, e essa contradição é muito bem trabalhada. Uma contradição que espelha,
num certo sentido, a posição do protagonista de “Sleepwalk”, simultaneamente
amigo e carrasco.
Distante das citações
pop do cinema fantástico na série “Dog Mendonça e Pizzaboy”, ou da abordagem
alegórica mais “pesada” da Guerra Colonial de “Os Vampiros”, no díptico
“Comer/Beber” parece haver alguma preocupação em manter referências
universalizantes reconhecíveis que lhe concedam desde logo outra dimensão de
leitura; sejam a Berlim hitleriana, ou os grandes espaços do sudoeste dos EUA.
Mas estas são claramente histórias mais intimistas, que respiram a evolução de
uma época (“Majowski”) ou o silêncio (“Sleepwalk”). Onde o saciar de duas
necessidades básicas surge enquanto redenção que transcende o momento, graças a
uma garrafa que sobrevive anos de chumbo, ou a uma receita que ressuscita uma
última vez. E nas quais, de forma reveladora, não há sinal dos elementos
sobrenaturais ou fantásticos que caraterizaram as obras anteriores.
Perguntar-se-á: mas,
dada a sua aparente simplicidade (mormente quando comparada com “Os Vampiros”),
merece “Comer/Beber” todo o destaque mediático que teve? Sem dúvida, não só
pelo modo inteligente como estão construídas as duas histórias, mas por poderem
representar um primeiro passo muito interessante rumo a outro tipo de
narrativas na evolução da dupla Melo e Cavia. Não é que a pergunta não seja
válida, está é mal formulada. O problema não é o espaço que Filipe Melo soube
conquistar, antes os (misteriosos) critérios que parecem limitar destaques
similares para as muitas notáveis obras (incluindo de autores portugueses) que
as nossas excelentes editoras de banda desenhada têm vindo a publicar.
Comer/Beber. Argumento de Filipe Melo (com Nádia Schilling), arte de Juan
Cavia (com Juan Cruz Rodriguez e Sandro Pacucci). Tinta da China. 64 pp., 12
Euros.
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